quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Crónicas tropicais, no i


Final de semana carioca

É tudo muito rápido e assim que chegas já estás utilizando o gerúndio sem te dares conta e entre a casa e a praia já bebeste um chopp e há uma agitação de vendedores ambulantes, vapores de gasolina, um machete decapitando um coco com água de gelar o céu-da- -boca. Depois há cervejas na praia, o cheiro da maconha fumada por rapazes que não usam sunga e que talvez tenham profissões artísticas e se desloquem em bicicletas. Em seguida estás num lugar com mais gente e é de noite e os morros iluminados ficam mais bonitos por causa das lentes da cachaça e o teu amigo diz-te, numa festa no Centro, que nunca pensou que as brasileiras fossem tão altas. Dormes pouco e acordas cedo porque a ventoinha no tecto produz um barulhinho bom, mas não refresca. Sais para a praia e no final do dia, num terraço onde se viam urubus planando sobre os prédios, tiveste a certeza que a combinação cachaça & chopp é remédio para a felicidade. No dia seguinte: praia, feijoada, cerveja e cachaça até que a noite apareceu e no Rio podes entrar no mar sem a histeria de um sequestro. É tudo muito rápido, os dias têm a mesma intensidade das semanas em que foste feliz e a presença constante de uma suspeita: mudar de vida é mais fácil do que parece. Porque estás num lugar tão esplendorosamente novo percebes que aqui só um masoquista ficaria deprimido. Talvez não haja nenhuma lição a tirar destes dias que parecem música. Mas quando caminhas para a praia e um dos quiosques passa "Beija eu", de Marisa Monte, sabes que viver com música também é remédio gostoso para a felicidade.

O senhor Fernandes

Era de noite e na esplanada do Arpoador respirava-se a espessura da maresia quando encontrei o senhor Fernandes por acaso. Mais um evento inesperado na improbabilidade dos dias cariocas. O senhor Fernandes: escritor diário de crónicas num jornal português, executor de textos que, em Lisboa, enquanto tomo o pequeno-almoço, me põem a pensar, a sorrir, a querer escrever melhor. Há muitos anos, numa redacção, o senhor Fernandes disse-me: "Se as histórias são grandes, as palavras têm de ser pequenas." Quando o informei de que ia viver para os Estados Unidos, país que o senhor Fernandes descobriu (e sobre o qual escreveu) em longas viagens de carro, não falou como jornalista conselheiro de repórteres inexperientes, mas olhou-me com a compreensão do jovem adulto e inquieto que também saiu do seu país para viver em França, onde tinha o ofício da descoberta e de passear cães de gente com dinheiro. Com vista para o morro Dois Irmãos, tão luminoso como uma nuvem de pirilampos, o meu encontro com o senhor Fernandes parece, pelo menos na minha cabeça, retirado de um romance tropical de Graham Greene. Em vez de entre espiões ou homens destroçados pelo amor, este encontro no Rio é entre apreciadores de histórias. Falamos um pouco e trocamos piadas. Quando ele se afasta pelo calçadão estou certo que nesta cidade tenho pela frente muitas histórias e o senhor Fernandes foi enviado para me transmitir, mesmo sem o mencionar, uma verdade que não posso esquecer: se as histórias são grandes, as palavras têm de ser pequenas.

Samba do atropelamento


Rapaz, saí de Portugal há 15 anos e todos os dias tem tragédias românticas nesta cidade, não se assuste não, é assim mesmo, tem mais novela das oito no meu bairro que na televisão, mais mulher perigosa que arma ilegal, mais homem comilão que chuva de fim de tarde. Nesta cidade se ama com a mesma fúria dos bandidos. Amor mata mais que cachaça, pó e bala perdida. Eu não estava aqui na hora da desgraça, mas disseram que a garota era filha única com faculdade nos Estados Unidos e o rapaz era gringo, um desses turistas que em vez de procurar sexo com putinhas bonitinhas prefere buscar o amor, a paz de espírito e uma saída para o pessimismo chuvoso dos boletins psiquiátricos da Europa. Não se ofenda não, eu posso ter esse sotaque meio-meio, mas sou português de Chaves, e você é que perguntou o que aconteceu, só estou contando. O rapaz era músico e tinha viajado para São Paulo e quando voltou ela já não queria ser a inspiração do artista e estava saindo com um advogado de celebridades. Uma garota linda, cara de menina de colégio que virou escritora mas que podia ser actriz da Globo. Ela estava no mercado. Ele estava cruzando a rua, com certeza para lhe falar da importância do amor romântico, das sestas tropicais e de um final de semana de bagunça erótica e promessas de amor agora escangalhadas para sempre. Tenha cuidado, quando cruzar a rua por causa de uma mulher, olhe para ver se vem um ônibus. Não leu no jornal? Este ano já foram atropeladas mais de mil pessoas nesta cidade. E quantas delas não terão morrido por causa de um impulso amoroso?

Malandro nunca mais

Ele conhece a arte de consertar e limpar armas e nasceu na favela do Cantagalo: "Não deu tempo de descer, a minha avó foi a minha parteira." Mas ele também é graffiter e rapper e percebe a importância do acaso: "No ano passado, minha avó teve uma embolia e morreu nos meus braços." Ele chama-se ACME e subimos a favela espremidos entre paredes de tijolo e cimento que parecem cuspidas na cara pela humidade verde da selva.Houve um tempo em que ACME aproveitou o ofício de armeiro militar para servir traficantes. Pergunto se era perigoso e ele espanta-se como se eu tivesse perguntado de onde vêm os bebés: "Eu recebia cinco fuzil, ficava com eles em casa." Tinha medo dos polícias. E dos traficantes: teve de convencer um bandido de que uma espingarda já chegara às suas mãos com defeito: "Era um fuzil de 20 mil reais."
ACME cheirava pó: "Tinha pesadelos que entravam em minha casa para me pegar. Sempre gostei de desenhar e não estava conseguindo mais." Deixou as drogas, meteu-se na igreja, casou, é director do Museu da Favela e vive do seu trabalho artístico. Há menos de um ano a polícia invadiu o morro e capturou o rei traficante. Hoje as autoridades consideram esta favela pacificada. Continua a haver tráfico mas acabou o terror dos caprichos dos bandidos da pesada: "Se você vacilava levava um tiro na mão." Mas ACME sabe que a regeneração é trabalho para durar.
Viver na favela só pode ser - e aqui não existe outro adjectivo possível - fodido. E é por isso que não sou capaz de perguntar: "Quantas pessoas terão morrido com as armas que limpaste?"

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O poeta callboy


Conto sobre amores prostitutos, no i