terça-feira, 31 de março de 2009
Na minha rua (i)
O homem do talho atravessa a rua, ata o saco num cordel pendurado do terceiro andar, e a senhora de bata eleva o saco com (agora imagino eu) costeletas de porcos, iscas e uma morcela de sangue. Melhorou o meu dia.
E eu no Facebook.
O que me atrai tanto nos contraste e nas diferenças?
Uma miúda de sardas, que me ofereceu um livro ("The pugilist at rest"), e que hoje tem um filho e ensina História de Arte em Rochester, disse, encostada numa parede em TriBeCa (os dois bêbedos, os dois a prolongar o desassossego até ao primeiro beijo, apenas proximidade, nenhum toque ainda): "You get bored easily, don't you?"
Mas tem de ser mais que isso. Não pode ser apenas o temor da pasmaceira. Porque razão gosto de estar sentado num restaurante (meia dose de filetes 4,5 euros), com erasmus franceses, reformados que tocam harmónica e trabalhadores marroquinos manchados de tinta?
Talvez porque acredite que, tendo em conta as possibilidades da vida, seja um desperdício acreditar num livro de instruções.
I'm in a Madrid state of mind
Vete - Marlango
Ayer te eché de menos. Es un poco ridículo porque en esta nostalgia no hay nada de poéticamente interesante, ni siquiera un hueco en el corazón que haga falta curar. Tenemos buenas relaciones, lo sabes. Lo años que pasamos juntos ya hacen parte de mi código emocional. Pero ayer estaba tumbado en el sofá, un poco fumado, y igual la ausencia de huesos y de compañía y la peli rodada en Madrid que ponía la tele me llevaron otra vez hasta ahí. Mira, te aviso que estoy muy bien en Lisboa, que por fin descubro algo aquí que me pone la sangre curiosa y se próximamente me hacen uno de esos cuestionarios de verano, responderé que sí a la pregunta: eres feliz?
Pero también sabes que me gustaría estar en muchos sitios al mismo tiempo (leí demasiados comics de super héroe en niño?)Te echo de menos: la inquietud caliente de la calle Espíritu Santo, cuando llegaba de correr por el Parque del Oeste, y cruzaba las terrazas con copas llenas de hielo y voces jóvenes y piernas sedutoras. Y Maria y Quique y Zé y Marta Y Álvaro Y Kiko y Vasco y Alex y Vero y el señor Ruso - una família intera. Es verdad que muchas veces me jodiste (yo me jodi). Pero me gustaria llegar otra vez al Rincon, solo, al final de la tarde, cuando el sol aparece y desaparece en las estrechas calles de Malasaña, y esperar que lleguen, uno a uno, los miembros de mi familia madrileña. En sério, te echo de menos.
segunda-feira, 30 de março de 2009
Polis
Não sabia ainda o que me esperava mas, como treino de preparação, li o guia da cidade escrito pelo brasileiro Nelson Motta num voo a caminho de Nova Iorque. Tinha passado duas semanas a ver, uma e outra vez, as imagens dos aviões incendiários e das torres desabando sobre gente que passei a conhecer nos meses seguintes: nos obituários do New York Times, chamados Portraits of Grief – heart breaking, pulitzer winning journalism – e nas pessoas que fui conhecendo em ambos os lados do bar: o paramédico que desatou a chorar em cima dum vodka gimlet porque já não conseguia sentir nada; a mulher que me ofereceu o The End of the Affair, sublinhado e anotado, imediatamente após o fim da relação com um homem casado e seu professor; o mecânico que odiava árabes e, com um smoking e uma limusina alugada, celebrou o aniversário de Frank Sinatra em rat pack party mode, noite fora e com os irmãos na ilha de Manhattan.
Usando o guia de Nelson Motta, ainda no avião, eu queria descobrir o que aí vinha (um contrasenso, uma vez que queria tudo o que não conhecia). Ele era um estrangeiro que tinha vivido naquela cidade, e sentia-o próximo de mim da mesma forma que em criança torcia pela selecção do Brasil. Os seus ensinamentos e experiências, a sua longa missão de reconhecimento na cidade, teriam de servir-me a partir do momento em que aterrasse em Newark. No entanto, agora, não me lembro se o guia continha recomendações de restaurantes em Brooklyn Heights ou comentários sobre a parolice iluminada de Times Square. Mas lembro-me de uma ideia, qualquer coisa como: em todos os países há corrupção, a diferença (e lembrem-se que Motta é brasileiro) está na vontade da sociedade em não pactuar com essa corrupção. E puni-la.
De regresso ao voo para Nova Iorque: não fui seguramente o primeiro a gozar com as perguntas ingénuas dos formulários dos serviços de imigração norte-americanos. Querem saber, por exemplo, se somos terroristas ou se levamos armas. O nacional espertismo lusitano (o mesmo que levou os supermercados a suspender a pesagem feita pelos clientes) não entende que há certas sociedades que se baseiam em esperar o melhor dos outros, ao invés daquelas que se fundamentam na engenharia da artimanha em proveito próprio.
Os Estados Unidos não são, seguramente, os campeões da decência humana – Kissinger, Chiney, Fox News, Enron, AIG, Wall Street, Darth Vader & Freddy Krueger – mas Nelson Motta tinha razão quando dizia que no Brasil (e eu acrescento Portugal) é menor a vontade de uma existência limpa, preferindo-se a glorificação da prática do engano.
Hoje vi Isaltino Morais dizer que era comum, há dez anos, os políticos não pagarem a totalidade dos impostos, usando um argumento do tipo: se toda a gente mija na piscina eu também posso. Isaltino não estava a pedir a clemência do tribunal ou a reconhecer a falha, estava a dizer que talvez a lei estivesse mal, uma vez que tantas pessoas honestas e capazes de dirigir o país (os políticos) praticavam a fraude fiscal.
Eu usei o mesmo argumento quando, aos 18 anos, a GNR me multou por passar um traço contínuo: “Mas seu guarda, toda a gente vira aqui”. O guarda preencheu o papel e conseguiu ser brutalmente essencial ao mesmo tempo que previsível: “E se toda a gente se atirar de uma ponte?” Felizmente, o meu caminho para o nacional isaltismo foi parado depois da terceira multa grave, com 21 anos, por excesso de velocidade.
Há mais de oitenta anos, Almada Negreiros escreveu: “Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia, se é que a sua cegueira não é incurável, e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado”.
Mesmo que eu tenha deixado de activar radares da polícia, sinto ainda a herança dessa sujidade (e de alguma testosterona), que se perpetua no tempo, que custa a limpar, e que se propaga pela atmosfera como se se tratasse da peste bubónica da decência: as fintas aos impostos, o nepotismo madeirense, as derrapagens orçamentais de milhões nas obras públicas, o entrevistado na rua que, questionado sobre os escandâlos financeiros dos bancos, responde: “Não é um roubo, é um desvio, eu se estivesse no poleiro também desviava”; os dois homens de trinta anos (filhos dessas boas famílias que fazem um péssimo trabalho) gabando-se das patranhas usadas para, infracção após infracção de trânsito, continuarem na posse da carta.
Tanto na bazófia de homem comum de Isaltino, como no pedantismo dos condutores aristocratas, é a impunidade que importa; e ser o mais esperto do bairro, ainda que isso resulte em danos para outros. Fugir da honestidade e recolher dividendos é motivo de um orgulho tão resplandecente como o orgulho do carro com jantes especiais, do telemóvel (o terceiro este ano), do passar à frente na fila do Pingo Doce.
Uma nova iorquina bêbeda, que tentei beijar na boca, disse-me uma vez, num apartamento da rua 96, entre a Lexington e a 3ª avenida: “Não interessa de onde se vem mas onde se pode chegar”. Depois mandou-me ir comprar mais cervejas.
Nelson Motta tinha razão: é a vontade de limpar que importa, porque lixo haverá sempre. Vimos de um sítio de chico-espertos triunfadores, diante dos quais as massas sussurram em aprovação: “Gamam mas ao menos têm obra feita”.
Sabendo do risco das latrinas a céu aberto, acredito que teremos de chegar a outro sítio: um sítio que tem de ser qualquer coisa de asseado.
quinta-feira, 26 de março de 2009
Mania das grandezas
Depois da maior árvore de Natal, da maior bandeira e do maior centro comercial, o país orgulha-se de, em breve, ser casa da maior loja da marca Ikea na Europa. Em Frielas. Estou aqui que não posso. Até ao verão quero ver mais um record: que tal a maior meia dose de mãozinha de vaca? Com grão, claro está.
terça-feira, 24 de março de 2009
Tenha medo, tenha muito medo
Nunca vi nada assim. Não é a primeira vez que escrevo isto, mas preciso de repetir: nunca vi nada assim. E mesmo que me digam que os gregos são mais mediaticamente futeboleiros que os portugueses (parece que têm 13 jornais desportivos), começo a ter dúvidas que haja um país que telenoveliza o futebol como nós, e uma comunicação social que alimente a besta como se fosse um implacável traficante de heroína. Sem escrúpulos. "É o que as pessoas querem ver", dizem os responsáveis pela comunicação social, com o mesmo encolher de ombros dos traficantes, como a mesma preguiça de quem só quer chegar a casa e calçar os chinelos e adormecer diante da intermitência faladora da tv.
Há um comentador, Rui Santos, na Sic Notícias, que, sozinho, fala mais de uma hora e meia no horário nobre de domingo. Há três programas cujo o formato é exactamente igual, cada um com três comentadores (oh originalidade!) nos três canais de notícias portugueses. Há fóruns e mais fóruns, onde a vox populi tenta superar a profissão de camionista ou professor de escola secundária para, nesses dois minutos de tempo de antena, sentir-se parte do painel oficial de comentadores.
Há presidentes de clubes, há o responsável de comunicação do Benfica, que discursa como se fosse um elemento da oposição a Fidel Castro. O Jornal da Noite da Sic, 24 horas após o final da Taça da Liga, abre (durante vários minutos) com a Taça da Liga (que tinha acontecido, repito, na noite anterior). O jornal Jogo chama "Ferrari" ao fiscal de linha, porque dizem que é do Benfica. Fazem-se ameaças de morte ao árbitro do jogo.
Quando o Vata marcou o golo ao Marselha, na semi-final da Taça dos Campeões Europeus, saltei de tal forma em cima da cama, a ouvir o relato, que o meu pai pensou que estivessem a assaltar a casa. Mas a verdade é que agora não consigo associar o meu gosto pelo futebol a esta pobreza massificada. Não percebo porque tudo isto é tão importante. E numa derradeira tentativa de perceber esta voracidade parola, em que o jornalismo se começa a parecer com as multidões que cospem e gritam e agridem nas portas dos tribunais, começo a imaginar-nos a nós, os portugueses, como a família na qual ninguém acabou a escolaridade obrigatória, e cujo o desinteresse pelo mundo é substituído pela dormência de seguir as novelas do futebol na televisão. É mais fácil viver neste estado de hipnose futebolística, através do outro - do dirigente indignado, do jogador birrento, do árbitro ameaçado -; é mais fácil não mexer o corpo desinteressado do sofá ou da cadeira do café e, no entanto, largar opiniões com a certeza e a pompa de um comentador televisivo.
Dizem que precisamos de escapes para a dureza e tristeza da vida real. E que tal fazer com que a vida real seja mais apetecível e mais alegre?
O que é mais estranho ainda: é que o nosso futebol nem é assim tão bom, os jogos são soporíferos, os jogadores mandriões, os dirigentes são tão incompetentes e maníacos do ego como são alguns autarcas e criminosos, os árbitros falham na curva com demasiada frequência. Somos um pouco napolitanos: convivemos com uma coisa feia e mafiosa, o futebol nacional, mas que faz parte de nós, como a Camorra faz parte da vida dos napolitanos.
Um estudo dado a conhecer hoje, informa que as crianças portuguesas passam a maior parte do seu tempo, diante da televisão, a ver novelas e futebol ou programas relacionados com futebol. Primeiro, porque esses são os programas que os pais escolhem ver. Segundo, porque essa é a programação que as televisões oferecem. Este é o nosso admirável mundo novo.
What a wonderful world of waste.
segunda-feira, 16 de março de 2009
Note to self (ii)
Aos 32 anos as ressacas precisam de muito mais horas de sono e, pelo menos, dois dias de recuperação. Se saíres no sábado, o teu domigo passa a ser na segunda-feira. Nunca te imaginaste a dizer isto e, provavelmente, nem te servirá de lição, mas aqui fica: as tuas células danificadas pelos comportamentos excessivos já não recuperam com velocidade juvenil. Ou seja, pequeno rapaz: já não tens 18 anos. Mas também já não tens sentimentos de culpa. É a natural lei das compensações.
Could you be the most beautiful girls in the world?
Quando vivia em Madrid havia, previsivelmente, conversas repetidas quando conhecia locais pela primeira vez – as diferenças no desenvolvimento entre Portugal e Espanha, a razão pela qual os espanhóis não entendem uma palavra do que dizemos ou como são bonitos e bem educados os homens portugueses. Eu e os meus amigos lusitanos do sexo masculino dizíamos que sim a essa ideia generalizada de que os machos portugueses punham os espanhóis no banco dos suplentes. E embora a nossa confirmação tivesse tanto de científico como as aparições de Nossa Senhora de Fátima, resolvi não perder muito tempo a pensar no assunto assim que percebi que os homens espanhóis têm, tantas vezes, cara de pão saloio e os modos de um estivador desempregado após a crise de 1929.
Não sei quem ganha no campeonato ibérico da beleza. Mas hoje, cruzando (determinadas partes de) Lisboa, percebi como há mulheres portuguesas tão bonitas. E só por isso, muito obrigado.
Sobre a qualidade enganosa das segundas-feiras
Após um fim de semana de diversão que magoa o corpo – privação de sono, horários irregulares das refeições, ingestão de substâncias que alteram os estados de consciência, movimentos de dança –, a manhã de segunda-feira assustou-me. E nem o boletim meteorológico optimista serviu de escudo almofadado para a péssima notícia, chegada por mensagem escrita, quando mal tinha saído da cama.
Dois outros telefonemas de trabalho (“Hoje não me dá jeito que passes cá, falamos amanhã” e “Podemos mudar o almoço para a próxima semana?”) empurraram-me para o trabalho de sofá: ver espisódios do The Office americano ou escrever um texto que me encomendaram?
Mas depois desci a rua, cruzei as duas da tarde da praça do Rossio, luminosas e encandescentes, subi o Chiado, almocei com um amigo que vive longe, fiquei a tarde inteira sentado numa poltrona, num café com janelas abertas e brisas que nos fazem acreditar na precocidade do verão, bebi chá gelado, comecei a escrever o que me pediram, e ainda regressei outra vez a pé, observador participante do desassossego da cidade, percebendo que tantas das coisas que vi pelo caminho e que me fizeram feliz apenas existem no momento – jamais poderão transformar-se em textos de blog.
Às vezes, quando é segunda-feira, basta só sair de casa.
Estreia brevemente: As emocionantes e perigosas aventuras de Roger a Jacto
Como há muitas histórias para contar e porque já não escrevo ficção há demasiado tempo – não me apetecia, tinha mais que fazer –, quero aproveitar o blog como lugar de regresso. As histórias de Roger a Jacto servir-me-ão como campo de treinos e acrobacias literárias para o próximo romance (a escrever quando?). Roger é baseado num amigo sobre quem escrevi há uns meses, neste artigo do jornal do Lux. Tenho muitas histórias apontadas em cadernos de notas (mas onde estão todos esses cadernos depois de duas mudanças de casa em seis meses?) e na minha memória que, não sendo de enciclopedista nem campeã mundial de Trivial Pursuit, guarda coisas como: a saia que ela levava num jantar há três anos; a quem é que Maradona não passou a bola no famoso golo contra a Inglaterra, no México 86 (Valdano) ou frases de filmes ("I believe in America. America has made my fortune").
Muitas dessas histórias passaram-se com amigos ou foram relatadas por desconhecidos que nem suspeitavam que, assim que eu chegasse a casa, poria as suas palavras em cadernos de notas. Exemplo de um bloco recente: “Ela estava a guiar mas olhava mais tempo pelas janelas laterais (‘É ali o cinema Condes, não é?’) do que para a estrada. Ele pediu desculpa por terem chegado tarde ao teatro. Ela respondeu: ‘Pena é o Triângulo das Bermudas, onde todos os anos desaparecem aviões e barcos.’
Tenho muitas histórias que me apetece contar, e às quais preciso de acrescentar o meu esforço literário, isto é, preciso de inventar mais pessoas e diálogos e adereços, para pôr as personagens na corda bamba e descobrir como se comportam.
Roger a Jacto aparecerá aqui de vez em quando, personagem de ficção, cheio pormenores e episódios reais transformados em aventuras de folhetim. Ficção ou memórias? Seja qual for a proporção de cada um na mistura, será tudo verdade. Pelo menos para mim.
segunda-feira, 9 de março de 2009
Maria Matilde
Há umas semanas, num baptizado, dei por mim numa fila de pessoas que, muitos anos antes, estavam exactamente na mesma posição: em pé, sem saber muito bem onde arrumar as mãos, aborrecidos com o senta/levanta exigido pelo protocolo da eucaristia, diante de um Cristo de pedra sofrida, de um padre que muitas vezes também era professor de Ciências ou Português, e de uma enorme ansiedade para estar no campo de futebol na hora do almoço.
Há uns anos éramos alunos de um colégio católico e passávamos o tempo a tentar fazer rir os outros, enquanto o padre murmurava passagens da bíblia e conselhos como se ainda se celebrassem missas em latim. Não entendíamos quase nada.
Nessa mesma igreja do colégio, muitos anos antes, o meu pai e os amigos descobriram uma porta junto do confessionário. Saíam para o jardim durante a missa e acabavam na praia do Tamariz, espreitando as mulher que se aventuravam num biquíni de gola alta. Foram semanas e semanas de delinquência juvenil e erótica - até que o padre Miguel (que viria a ser meu professor de Desenho) declarou o meu pai como líder da pandilha de mirones e lhe ofereceu dez vergastadas em cada mão. O padre Miguel nunca foi professor do meu pai, mas, garante o meu progenitor, foi quem mais lhe encheu o corpinho de lambadas. No meu tempo de colégio, já era improvável que o padre Miguel levantasse a mão a rapazes com idade de levantar pesos no ginásio. Mas fui muitas vezes corrido da sala porque me esquecera de um lápis número 3 ou de um tira-linhas. O padre Miguel não dava 5 a ninguém. No entanto, produzia literatura de aconselhamento nos desenhos: "Porco, está tudo borrado!!!"
Há algumas semanas, no baptizado da segunda filha de um grande amigo, voltámos a estar nos bancos de igreja, alinhados em fila, e prontos para fazer rir os colegas do lado.
O padre que baptizou a Maria Matilde tinha a mesma idade dos meus amigos (tão longe no tempo dessa fúria castigadora do padre Miguel), mas falou da erva daninha do pecado original, do respeito ao Pápa, de como quem não está com a Igreja está contra ela. Fez proseletismo, deixando sobre as nossas cabeças (e sobre a adorável cabeça de bebé da Maria Matilde) a ameaça dos malditos que não entram no templo. Não devemos apenas adorar Deus mas (e isso repetiu-o com o empenho de um missionário pugilista) devemos adorar a Igreja. Mais ou menos como pedir para nos apaixonarmos por uma pessoa mas também pela empresa de advogados que a representa.
Em toda a homilia fiquei com a ideia de que o processo de recrutamento ("Têm de trazer a Maria Matilde à igreja para que ela seja uma boa cristã") era mais importante que a celebração da existência da Maria Matilde. Olhei para os pais do meu amigo - emocionados. Olhei para o meu amigo e para a mulher - tão felizes.
Um dos meus colegas de fila, entendendo a minha inquietude de rapazinho insurgente, segurou-me no braço e, com a pressão dos dedos, foi como se dissesse: "Fica quieto, não estamos aqui por isso. Estamos aqui pelo nosso amigo e pela sua filha." Dando humanamente a outra face, pedi perdão pelo egoísmo e, até ao fim da celebração, fiquei quieto.
No final, já na rua, o meu amigo disse-me: "Se este é o marketing deles, então deixa estar, porque estão a fazer um bom trabalho". O que ele queria dizer era que, mais tarde ou mais cedo, com este marketing de cartão vermelho e dedo apontado, a Igreja deixará de ter clientes. Não sei se acredito na velocidade da decadência do negócio, mas percebi ainda melhor o que disseram os dedos do meu amigo quando me magoaram o bícepe durante a missa: "Este é o dia da Maria Matilde e da família dela. Eles estão felizes. Partilha."
Tu não tens pecado original, Maria Matilde. Eu também estava feliz. Que o mundo te seja esplendoroso e livre e cheio da música matinal dos sinos de Igreja.
sexta-feira, 6 de março de 2009
I just don't know what to do with myself
No final do filme Manhattan, Woody Allen pergunta a si mesmo: “Porque vale a pena viver? Essa é uma boa questão. Bem, acho que terão de haver boas razões. Tais como? Ok, para mim.... Groucho Marx. E Willie Mays (jogador de basebol). E o segundo andamento da Sinfonia de Júpiter . E a gravação de Potato Head Blues, por Louis Armstrong. Filmes suecos, naturalmente. E a Educação Sentimental, de Flaubert. Marlon Brando, Frank Sinatra. Aquelas incríveis pêras pintadas por Cézanne. A cara da Tracy.”
E se Woody Allen não mencionou este vídeo foi apenas porque, em 1979, os White Stripes, a Sofia Copola, e (o bicho em stilettos) Kate Moss ainda não sabiam sequer andar de bicicleta sem rodinhas. Mas agora...
quinta-feira, 5 de março de 2009
Senhor Urbino e Dona Susete, os fazedores de sonhos
(Texto publicado no jornal do Lux)
O país decorou casas, restaurantes e salas de aeroporto com televisões. O vício intensifica-se, mas a droga tem cada vez menos qualidade. Não podemos viver com a tv. Não podemos viver sem a tv.
Hugo Gonçalves
Depois de contemplar a caixa de cartão durante mais de uma semana, fantasiando com a felicidade e o estatuto que nos daria o seu conteúdo, eu e os meus irmãos esperámos que todos os outros presentes de Natal fossem abertos e, por fim, as nossas mãos pudessem rasgar o cartão e oferecer-nos o futuro. Só podia ser um leitor de vídeo, dizíamos. Afinal, na minha turma de 35 alunos mais de metade já gravava os seus programas preferidos ou alugava o “Conan, o Bárbaro” em vídeo clubes. Só podia ser, além do mais, um VHS, uma vez que os Beta estavam a ser ultrapassados pelo novo formato tão rapidamente como os blusões de penas Duffy tinham ficado fora de moda. Dentro da caixa? Um presunto, oferta de um cliente do meu pai.
O desgosto marcou de tal forma a memória desse Natal, que ainda hoje, entre os irmãos, e com sentido de humor, se conta essa história. A verdade é que a televisão (e o vídeo como upgrade da televisão) se tornara no centro sólido da nossa coexistência doméstica. No início da adolescência criou-se a Sala da Televisão – ninguém na minha família se lembraria duma sala de leitura mas, ao menos, também não se lembraram de uma sala de tortura.
O comando da tv era muito mais que o ceptro do tirano do sofá. Os meus pais tinham a sua própria televisão no quarto (havia várias lá em casa, hoje ainda mais). Como tal, a sala onde os filhos disputavam o comando poderia muito bem ter-se tornado numa versão (classe média e meninos da linha) do “Senhor das Moscas”. Contudo, e apesar dos conflitos, estabeleceram-se regras entre os rapazes. O primeiro a chegar detinha o comando. Caso o seu critério de zapping desagradasse aos restantes irmãos, o gestor do comando teria de aceitar a escolha da maioria, mas mantinha a posse do objecto: a televisão era demasiado importante nas nossas vidas para que a desordem social impedisse o seu regular funcionamento. Como obedientes soldados da revolução cultural, não queríamos interromper o grande líder.
Claro que havia a escola, o futebol na rua, as bicicletas em cavalinho e as miúdas que teimavam em ficar-se pelos primeiros números do bate pé. Mas também havia horas marcadas para o Duarte & Companhia, o MacGyver, a Crónica do Crime, o Agora Escolha, o Tom Swayer ou o Água na Boca, esse concurso soft porn de mamas italianas com que a Sic começou a revolucionar a sexualidade televisiva. Também me lembro do pânico do meu pai a procurar o botão off quando, no filme “O Carteiro toca sempre duas vezes”, Jack Nicholson atirou Jessica Lange para cima de uma mesa e apareceram as ligas, as coxas, o movimento pendular dos dois corpos. No entanto, a Sala da Televisão era quase sempre exclusiva dos filhos. Muitas vezes comíamos ali, com os tabuleiros em cima das pernas e o garfo suspenso diante da boca esperando o próximo rotativo de Chuck Norris.
Os aparelhos televisivos foram aumentando em número e tamanho na casa dos meus pais – nas duas salas, nos quartos, na cozinha. E fora dela também. Hoje, como um ex-fumador intolerante e esquecido do prazer do tabaco, dou por mim ultrajado com a abundância de televisões nos espaços públicos. Nunca vi nada assim. Nos últimos tempos, jantei num restaurante italiano com um ecrã gigante no qual a Eurosport mostrava um campeonato de Poker. Numa tarde de domingo com sol, almocei num restaurante com amplas janelas para o mar, embora fosse um jogo da Taça de Inglaterra que iluminava a sala em diferentes ecrãs. O brilho dispendioso de plasmas e LCDs resplandece nas paredes das pastelarias de bairro: o Goucha, a Fátima Lopes, os directos sobre a alegada prisão de ventre do motorista do autocarro da selecção nacional. No aeroporto, na sala de embarque, pude escolher recentemente entre uma telenovela e uma telenovela. Há televisões em todo o lado. Big brother we are watching you.
Os canais portugueses, tão originais e inovadores como o remake de Vila Faia, não ajudam a que me reconcilie com a minha paixão adolescente. Com o passar do tempo, a televisão portuguesa deixou de ser a miúda que, ingenuamente, achava gira (ou pelo menos fácil), passando a ser a gaja que fala demasiado de si mesma, conseguindo aborrecer até uma caixa de viagra.
O one man show do professor Marcelo foi franchisado pelos comentadores desportivos, por vezes com duração de hora e meia. E, tal como o professor, as suas palavras são transmitidas como uma mensagem papal – TV is God. Quase todos os noticiários principais, agora com a duração de uma longa-metragem, são um batido caramelizado de directos inúteis, telenovelização da realidade, vox populi, casos da vida a motivar a lágrima audiovisual, e reality shows mascarados de informação.
A generalidade da ficção portuguesa reflecte tanto a realidade do país e dos seus habitantes como uma novela sul-americana: gente que parece só falar no sofá, personagens tão interessantes como o olhar de um pombo, ricos e pobres, os muito maus e os muito bonzinhos, a empregada, o miúdo com crista, o maluco do riso.
No entanto, nunca a televisão esteve tão entranhada na vida portuguesa. Essa idosa trindade – Fado, Futebol e Fátima – transformou-se num par de amantes feitos um para o outro e que não quer saber de mais nada. Os noivos: futebol e televisão.
Comecei a ouvir o conselho, “Se não gostas, apaga ou muda de canal”, tornando-me assim num ex-viciado do comando. Mas não consigo evitar a suspeita de que a nossa televisão está a fazer-nos mal, a promover a estupidez, a desinformar, a ficar áquem, a falhar na responsabilidade e no brio profissional Reconheço aqui, como um agarrado depois de uma intervenção nos Narcóticos Anónimos, a influência que a televisão tem (e teve) em mim e na grande maioria dos portugueses. Sei que dou ainda demasiada importância ao que aparece no ecrã.. Para acabar com o meu ultraje, sei que bastava carregar no botão ou que, como fiz em tempos, mais por logística do que por opção, deixasse de ter um aparelho em casa.
Talvez a minha intolerância seja também resultado do que julgo serem ressentimentos. Tenho, em parte por causa da televisão, a capacidade de concentração de uma criança hiperactiva na hora de abrir os presentes de aniversário. Por causa da televisão (e não só) comecei a ler livros demasiado tarde, sendo agora incapaz de afirmar que sou um escritor que lia Céline aos 12 anos enquanto fumava Gitanes e sonhava ter a insolência de Rimbaud. Aos doze anos (Je suis francofonamente désolé) queria um blusão de couro igual ao do Tom Cruise no “Top Gun” e saber quem era a Mulher de Branco em “Roque Santeiro”. Sou um adulto que ainda vacila entre agarrar no comando ou abrir um livro. Por causa da televisão adiei sessões de estudo, atrasei-me para encontros, tornei-me num procrastinador summa cum laude. Na idade adulta, desconfiei da televisão durante muito tempo, porque acendê-la assim que chegava a casa parecia-me ser uma aspirina para a solidão.
Segundo o lema da muito bem sucedida TVI (“A televisão feita por si”), teremos então a televisão que merecemos, ainda que preferisse que fosse feita por gente que percebe do assunto. Ter o senhor Urbino, do quiosque do jornais, a decidir os conteúdos de uma grelha televisiva ou a dona Susete, hipocondríaca faladora, a escrever guiões para séries, não me reaproxima do comando nacional.
Acabei por seguir o mandamento da TVI e faço agora a minha própria televisão. TV, minha ex-amante, “light of my life, fire of my loins. My sin, my soul”, foste trocada pela internet, que tem tudo o que tu tens (as grandes séries, a melhor informação, até a bola), mas sem plásticas, mais fresca, sempre disponível, sublimando todo o teu potencial para fazer o bem e produzir maravilhas (Madmen, Daily Show, The Office, Angels in America). Dizem que uma adição só pode ser substituida por outra. Mas agora mando eu.
terça-feira, 3 de março de 2009
Pensamentos inúteis do dia de hoje
Nos transportes públicos de Lisboa, os turistas cheiram melhor que os indígenas
Há um processo na justiça, relacionado com corrupção no futebol (a sério?), que se chama: caso do envelope. Tendo em conta que um envelope não transporta assim tanta informação, talvez este caso não demore seis anos a chegar ao fim.
Tenho de deixar de comprar laranjas porque tenho demasiada preguiça para fazer sumo (e a máquina é eléctrica).
Mais uma tatuagem.
I will love as hard as I can.
segunda-feira, 2 de março de 2009
Esta Lisboa Moderna
Na mesma rua, frente a frente:
1) O rapaz negro, com a farda McDonalds, esfrega a calçada das traseiras do restaurante (entre dois M's gigantes e amarelos) e é observado por:
2)Homem branco e despenteado, que sai do café com cartazes na entrada ("Há meios pratos de dobrada", "Há moelas todos os dias"). O homem tem os olhos cheios de fiozinhos alcoolizados de sangue, ergue o copo matinal diante do lábios e, mesmo antes que os tubos do interior do seu corpo sejam iluminados pelo bagaço, observa o rapaz, que continua a esfregar a calçada, e
3) não se se dá conta sequer que eu ando a fazer as pazes com esta cidade
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