terça-feira, 29 de setembro de 2009

Lista de confusões cavaquianas


O presidente tinha dúvidas sobre a segurança da presidência mas só mandou verificar os sistemas hoje.

O presidente diz que tem sérias dúvidas sobre o que se escreveu nos jornais acerca do seu assessor, mas reagiu a elas, mandando investigar os sistemas de segurança e demitindo o assessor.

O presidente diz que a Presidência é um cargo unipessoal, mas assegura que os seus chefes de casa civil podem falar por ele.

O presidente, incólume e acima da política como gosta de aparecer aos portugueses, diz-se "forçado" (duas vezes sublinhadas com um tom de voz duro) a falar destas coisas, como se não fizesse política quando veta diplomas (com todo o direito) ou faz declarações sobre a governação (com todo o direito).

O que se segue? Um anúncio da PJ, na RTP2, a dizer: "Desapareceu, de seu domicílio, Aníbal Cavaco Silva. À data do seu desaparecimento, vestia pijama, pantufas do Mickey e apresentava sinais de desorientação".

Ingenuidade, confusão mental ou sonsice?

Isto não acaba aqui.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Telecommunications Rage


A Zon é, provavelmente, uma das piores empresas portuguesas na atenção ao cliente. A Meo acaba de ganhar um novo cliente.

sábado, 26 de setembro de 2009

Cold Turkey


Depois de tanta festa eleitoral, novelização da campanha e mexicanização da política, este dia de reflexão parece-me o fim das férias, a escova de dentes sem companhia na bancada da casa de banho, a ressaca da noite de coca. Ligo a televisão, abro os jornais e nada. Sinto-me sozinho e sem brinquedos.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

E o burro sou eu?


É verdade que o Gato Fedorento pôs os políticos a responder num registo menos formal - o que não quer dizer (mesmo) um registo menos programado - e que pôs os portugueses a consumir mais política televisiva - o que não quer dizer (mesmo) que estejam mais politizados ou se tornem cidadãos mais preocupados com o estado da Pólis. Mas é bem melhor que uma parede a mandar pessoas vestidas de supositório prateado para a piscina.

Como uma mãe engenhosa diante do filho sem apetite, o Gato Fedorento envolveu as nabiças do jantar(que são os nosso políticos)numa camada de caramelo.


Mas por ter usado e abusado do Gato Fedorento com promoções e entrevistas de bastidores nos noticiários durante todo o dia, com a constante menção nas análises dos comentadores da casa, com perguntas destas a Jerónimo de Sousa, "Estava nervoso por ser entrevistado pelo Gato?", a Sic não percebeu que era tão susceptível de gozo como os políticos. O Gato escolheu focar-se na acção dos políticos, mas a comunicação social, Sic incluída, é parte da paródia.

E quando usa, nas suas peças de telejornal, imagens editadas e transmitidas pelo Gato, nas quais se confronta aquilo que os políticos dizem agora com aquilo que disseram no passado - técnica apurada no Daily Show de Jon Stewart -, está a reconhecer que foram precisos comediantes para fazer o trabalho dos jornalistas.

O mais estranho é que a Sic o faz com uma certa alegria e orgulho, não percebendo que também é o bobo da corte, parecendo o marido corno que convida para jantar quem lhe pôs o par de chifres na testa.

Boys will be boys


No final da tarde, no Chiado, dois adolescentes que faziam inquéritos de rua contemplavam as mulheres em desfile pela rua do Carmo. E falavam assim:

"Não gosto muito das mulheres cavalonas...
"Depende..."
"Sim, mas as cavalonas... Aquilo dá muito trabalho para pôr a carburar".

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

God complex ou Jesus tinha um trabalho fodido


E lá fui eu, atravessando o jardim com a gratidão de, ao princípio de uma tarde com calor, não estar num escritório entalado entre um menu sandes + bebida + salada de fruta e o brilho de um computador, feliz por estabelecer os meus horários, reparando nos alemães que preparam o Oktoberfest diante da sua embaixada, nos homens de cor de especiarias como jibóias cansadas com turbantes, nos ucranianos gordos, rodeados de patos e galos, no português que, para não manchar a roupa com riscos húmidos de relva, tinha posto um cartão por baixo do seu corpo deitado.

Lá fui eu pensando no que compraria para o almoço quando encontrei uma romena descalça, resplandecendo cansaço e a ferocidade do sol, prostrada no passeio, mesmo ao lado do Pingo Doce. Pensei perguntar-lhe se estava bem, mas segui caminho, desistindo da minha missão ocasional de justiceiro da cidade que discute com homens que mijam na rua e transeuntes que atiram papéis para o chão.

Mas entrei no supermercado e uma senhora velha estava encostada na parede, o seu bigode com esferas de suor, os olhos descaídos de basset hound, as mamas de matrona arfando por oxigénio. Por isso, tive mesmo de perguntar: “A senhora está bem?” E ela disse-me que não tinha tomado o comprimido para a tensão, que não aguentava o punho apertado do calor nas suas veias. Atravessei o supermercado, pedi um copo com água e açúcar na padaria, entreguei-o nas falanges que pareciam raízes de árvore da velha em aflição. Ela bebeu-o de uma só vez como se fosse um praticante do alcoolismo com a esperança de matar o delirium tremens matinal. E depois a surpresa, como se adivinhasse que eu tinha reparado na romena lá fora: “Que vergonha, já não basta a outra na rua. Sou cigana mas não sou da mesma raça, sou cigana mas o meu marido não é”, como se tentasse afastar o seu estado doente da condição mendiga da romena, como se temesse o meu juízo caucasiano. A verdade é que nem tinha percebido que a senhora velha era cigana – nenhuma roupa negra, nenhum lenço apertado entre o cabelo cinzento e o queixo, nem sequer um saco com roupas falsificadas ou qualquer outro lugar comum que definisse a sua tribo.

E enquanto metia fruta nos sacos pensei numa reportagem em que um transsexual no Irão – país com regime homófobo mas que patrocina operações de mudança de sexo – dizia que não gostava de homossexuais. Alguma coisa está mal encaixada no coração das pessoas quando, sendo diferentes da norma, não toleram a diferença dos outros.

Não consegui a mesma irritação diante da cigana em operação de auto-branqueamento racial que experimentei diante do transsexual persa. A cigana era demasiado real, a sua transpiração fria tornava as rugas mais vincadas, o seu pulso tremendo o copo de água estava ali, mesmo ali – o que terá passado por casar com um homem branco? Há quantos anos não fala com a família? Quantas bofetadas terá levado do pai de família ao anunciar a sua ousadia?

A senhora velha pôs-me a mão no ombro:

“O senhor é enfermeiro?”
“Não”.
“Mas preocupa-se com as pessoas.”

E as minhas cordas vocais ocas, um instrumento eléctrico sem amplificador, o meu pulso tremendo também, a urgência de ir entregar um copo de água gelada a uma romena descalça, que recebia o sol na cabeça como se fosse um telhado de zinco.

Mas ela já não estava lá.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

White Noise


Candidatos a deputados que são arguidos e que compram votos dentro do seu partido; pressões do governo a estações de televisão; alegadas escutas ao presidente da república, que, como sempre, se acha melhor que a política, um deus pairando acima dos fumos tóxicos dos partidos, e que por isso não comenta nada, não diz nada, não faz nada; um assessor do presidente (ex-director do Diário de Notícias) que terá dado pistas sobre o caso a um jornalista chegando a sugerir ângulos possíveis para a elaboração do artigo; repórteres que publicam emails de outros repórteres, emails esses que, segundo o director de um jornal, podem ter sido forjados e roubados pelos serviços secretos a pedido do governo.

O que é mentira? O que é verdade? O que é campanha eleitoral suja? O que é defeito de carácter? Mais que um país isto parece um romance do Grisham.

Nunca, como agora, o simbolismo do voto de cor branca fez tanto sentido para mim. Não é sequer um voto de protesto: é o duche de água a ferver depois da violação.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Jornalismo para vender aspiradores


Em tempos julgo ter escrito que a revista Sábado está para o jornalismo como o wrestling está para o desporto. Mas hoje, vendo a capa da newsmagazine que tem um fascínio pelas celebridades só comparável a uma adolescente americana, percebi que havia outra comparação possível - a Sábado está para o jornalismo como o Dan Brown está para a literatura.

Esta semana, a capa da revista anuncia: "O poder oculto da maçonaria é o novo livro de Dan Brown - os factos históricos que inspiraram o autor do Código da Vinci".

O melhor atributo de Dan Brown não é a qualidade literária mas a capacidade de usar truques para prender o leitor da mesma maneira que as batatas fritas de pacote têm aquele produto artificial (como se chama?) que nos faz querer mais e mais. Dan Brown pode não ser um excelente escritor, mas é um óptimo vendedor da banha da cobra.

Sempre me espantou que as pessoas acreditassem nas suas revelações históricas como descobertas irrefutáveis e determinantes - claro que Jesus andou a rebolar no feno com Maria Madalena e deixou prole que, ao longo dos séculos, acabou na Europa, no entanto, a ideia nem sequer é original, vários investigadores e escritores já tinham trabalhado nessa narrativa antes de Brown. O que me choca aqui não é a fornicação do filho de deus, mas a forma como tanto o autor, como muitos dos seus leitores, assume essa informação como factual, científica e decisiva para a humanidade, mais ou menos como dizer que Abraão viveu até aos 800 anos ou que Jonas esteve dentro da barriga de uma baleia durante dias ou que depois de rebentar com uma embaixada americana o terrorista receberá um autocarro de virgens no céu.

Num artigo de 2006 do El País, o jornal espanhol desancava o primeiro livro de Dan Brown, "Fortaleza Digital", não por causa da sua qualidade literária mas pelo medíocre trabalho de investigação e desprezo por coisas tão simples como datas. Não se pode querer fazer doutrina com a fornicação de Cristo e apelidar os romances de "históricos" se depois se escreve ficção científica. Dan Brown é a versão em livro daquele estranho produto norte-americano para barrar no pão "I can't believe it's not butter" - um sucedâneo da manteiga, que não é realmente manteiga, mas que diz ser melhor que a manteiga.

É claro que um autor que se tornou num fenómeno de vendas e de leitura na praia e no metro, merece cobertura jornalística quando lança o seu novo livro. Pode até merecer primeira página. Mas a Sábado usa exactamente a mesma estratégia de Brown para se vender e vangloriar. E, na capa, parece oferecer-nos o caminho secreto para o mundo obscuro da maçonaria, as revelações mais inesperadas, aquilo que você nunca soube mas que mudará o curso do universo. A Sábado é a mulher de barba no circo de rua medieval. A Sábado faz cockteasing - a little less conversation a little more action please.

Onde é que quero chegar? Aqui: é cómico que, numa semana de campanha eleitoral, a menos de duas semanas de eleições legislativas, a revista traga uma história sobre a compra de votos no PSD, que envolve dois candidatos a deputados, e escolha fazer capa com os segredos de Dan Brown.

Não é jornalismo, é venda de aspiradores, num ringue de wrestling, com a oferta de um pacote de I can't believe it's not butter.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A menina do cabelo amarelo


Nesta memória, uma das primeiras que guardo, havia o calor das férias grandes e estava sentado na mesa dos adultos. Pus-me de pé, em cima da cadeira, pronto para anunciar uma descoberta que mudaria a minha vida. Baixei os calções de banho, apontei para a minha pilinha de pré-primária e anunciei à família o assombroso mecanismo mutante que era o meu corpo: “Está tão grande”.

Não me lembro de ser repreendido – é possível que alguém tenha dito “Veste-te e vai dormir a sesta" –, mas tenho quase a certeza que o meu alegre espanto diante de tamanha descoberta tirou o tapete debaixo dos pés da minha audiência. O meu avô, o único autorizado a inaugurar melões e melancias, como se fosse o xamã da tribo prestes a degolar o cabrito, deve ter mantido a lâmina em suspenso, afinal, eu tinha tirado a pila das cuecas, a meio de uma refeição, e anunciado com orgulho que ela tinha mudado de tamanho. E isso não cabe na cabeça regulamentada de um adulto.

Hoje, não sou praticante do exibicionismo genital durante as refeições, mas lamento já não ter a destreza de me estar a cagar para a lógica certinha das pessoas grandes. Pensei nisto quando vi a menina de cabelo amarelo, sentada na relva, a chamar um cão de “babau”, a apontar para ele e a olhar para a mãe como se dissesse “Acreditas nisto? Não é possível? É um cão. Um cão!”. Nesse momento, a menina de cabelo amarelo tinha feito uma descoberta mais importante que a internet, a penicilina ou o Macdrive.

A menina do cabelo amarelo abraçou o cão pelo pescoço e, assim que ele começou a lamber-lhe a cara e as orelhas, ela cedeu ao ataque de cócegas, dando gargalhadas, de boca aberta e cabeça tombada para trás – nenhum sentido de ridículo, nenhuma preocupação com o protocolo, apenas a resposta intuitiva ao prazer.

Logo de seguida, com a mesma indiferença ao código de conduta com que, há quase 30 anos, eu puxei o elástico dos calções até aos joelhos, a menina de cabelo amarelo começou a lamber o cão. O que fez todo o sentido – mesmo quando ela se virou para a mãe, mostrando a sua mini língua cor de rosa coberta de pêlos de labrador. Se um cão pode lamber uma pessoa porque não pode uma pessoa lamber um cão?

O especialista em criatividade Ken Robinson, conta que um professor perguntou a uma criança de quatro anos o que estava ela a desenhar. A menina respondeu que estava a fazer um retrato de deus. O adulto tentou cortar o barato infantil: “Mas ninguém sabe como é deus.” A menina pô-lo na ordem: “Já vais saber quando eu acabar o desenho”.

O comediante Jon Stewart explicou que o seu filho dança de alegria só porque reconhece alguma coisa na rua – sempre que vê um cão no passeio, tira a xuxa e aponta para o bicho dizendo: “dog”. Stewart também disse que aquilo que assusta os pais é já saber o final da história, ou seja, saber que a vida – que por vezes se parece com a esquina de um móvel pronta para o dedo mais pequeno do pé – acabará por retirar aos nossos filhos a felicidade de lamber um cão ou, tão só, de serem capazes de identificá-lo na rua – dog!

Os adultos sabem como a história acaba – primeiro passamos por essa fase transitória chamada adolescência, em que nos parecemos com moscas a embater contra o vidro até que alguém nos abre a janela e nos encontramos, por fim, na idade adulta. E é então que precisamos de comprimidos, álcool, carros, 300 canais de televisão, sexo com prostitutas, saltos de pára-quedas e filhos a fim de superar o aborrecimento da repetição, a fim de aliviar o peso das coisas que parecem cada vez mais difíceis de solucionar. Os adultos conhecem o final da história e, por isso, junto das crianças, costumam ser tão temerosos dessas esquinas destruidoras de pés, tão protectores, tão inibidores da criatividade – “Isso não é para brincar, não se diz assim, ninguém sabe como é deus.”

No passado domingo, a menina de cabelo amarelo queria ver os patos bebés num jardim de Lisboa, embora os animais estivessem por trás da cerca. Primeiro hesitei. Um adulto responsável respeita os avisos, não invade a propriedade. Mas os patinhos, disse ela, eram amarelos como o seu cabelo. E foi então que lhe peguei ao colo, saltei a cerca e a levei até junto da família de patos flutuantes.

No banco de jardim, um velho cuja boca, por falta de incisivos, teria servido para arrancar caricas, disse logo, apontando para os patos: “Esses já cá não estão amanhã, as gaivotas dão cabo deles”.

Ao contrário do velho, prefiro não me preocupar com o final da história. E é por isso que, desrespeitando todas as regras de bom gosto literário, e repetindo a ousadia do gesto de baixar os calções, me preparo para escrever algo que jamais imaginei escrever:

Xi coração.

Menina do cabelo amarelo, gosto muito quando me dás um xi coração.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O professor


O pequeno ditador teria gostado que este texto começasse com uma frase tão portuguesa como: "Faz-me espécie". E sim, faz-me espécie a deferência académica que alguns de nós ainda demonstram sempre que o mencionam - "O Professor Oliveira Salazar" - como se tivessem sido alunos dele ou admirassem a sua carreira académica em Coimbra. Talvez se possa dizer que um homem que chega a catedrático merece ser designado pelo seu título, especialmente se estivermos em 1926. O que me surpreende é como "professor" é usado para demonstrar respeito, exactamente da mesma maneira que muitos condescendem a ditadura com a habilidade de Salazar para ter as contas em dia, ouro nos cofres e um país fora da II Guerra Mundial - mais ou menos como o pai que arreia nos filhos de cinto mas até põe comida na mesa.

Salazar foi eleito há pouco tempo o maior português de sempre - título curioso para quem acreditava que a pobreza era honradez, para quem detestava elevadores, usou as mesmas botas durante anos e, apesar do império do Minho a Timor, só saiu de Portugal uma vez, para ir a Espanha. A sua grandeza estava na capacidade para fazer os outros pequenos, temerosos e conformados.

Hoje, ao passar por baixo de um viaduto da CRIL, fiquei feliz. Na parede de cimento, estava a prova de que a insolência dos suburbanos é melhor que a reverência ao pequeno ditador. Um qualquer graffiter com conhecimentos de História e queda para a poesia rimada, escreveu esta frase: "Santa Comba Dão é a terra do cabrão".

Reality Check




Para mis preciosos amigos Quique y el señor Ruso, luso-españoles que me han enseñado tanto sobre España y sobre la maravilla de la diversidad

O que é que os espanhóis pensam de nós? Não pensam.

Desde que Manuela Ferreira Leite afirmou que Portugal não é uma província de Espanha e acrescentou que o governo de Zapatero só tem interesse em que o TGV chegue a Lisboa por causa dos fundos da UE, tem-se repetido, uma e outra vez, “De Espanha nem bom vento...”, numa falta de originalidade que se compara com a previsível lista de lugares comuns usada por futebolistas em flash interviews.

Vivi três anos em Espanha, escrevi muito sobre o país e aquelas gentes, e posso dizer que eles não pensam nada de especial sobre nós. Não se trata de arrogância civilizacional. O complexo é nosso. Posso dizer que a desconfiança não é recíproca e que, neste caso, Portugal é como aquela miúda da turma que julga que toda a gente fala mal dela pelas costas.

No tempo que vivi em Espanha nunca me senti constrangido ou diminuído por ser estrangeiro. No entanto, posso dizer que alguns espanhóis que conheço, a viver em Lisboa, se queixaram dessa hostilidade mesquinha dos portugueses para com aqueles que chamamos, comicamente, de “nuestros hermanos” – uma desconfiança que herdámos com a mesma naturalidade com que uma criança aceita ser do Benfica porque o pai lhe disse que era assim.

Uma amiga espanhola, a trabalhar em Lisboa, mas com um carro de matrícula madrilena, - a mesma amiga que se espantou que um país tão endividado como o nosso tenha um parque automóvel topo de gama – ouviu várias vezes, no trânsito, “Vai prá tua terra”. Outra espanhola, recém chegada, perguntou-me porque razão as miúdas da festa onde estávamos, com cintura estreita, licenciatura no ISCEM e endereço em Cascais, não falavam com ela. Um amigo português, quando avisou na empresa lisboeta que se ia mudar para Madrid, recebeu o conselho de um colega: “Cuidado que os espanhóis são filhos da puta”.

Não estou a dizer que eles são menos xenófobos que nós, aliás, inventaram uma palavra para os imigrantes sul americanos - "sudaca" - quase tão ofensiva e humilhante como “nigger” no dicionário dos insultos norte americanos.

Há generalizações de ambos os lados da fronteira. Os nossos clichés dizem que eles são ruidosos e que vêem com as mãos. Os clichés deles dizem que nós vendemos toalhas baratas e que as nossas mulheres têm bigode. Contudo, para nossa sorte e azar dos sul americanos a viver em Espanha, nós até somos europeus e temos boas praias e os espanhóis elogiam o charme de Lisboa e acham-nos romanticamente nostálgicos – por algum motivo Pilar del Rio veio fazer um peça jornalística sobre a Lisboa de “O ano da morte de Ricardo Reis” e acabou casada com um dos nossos exemplares mais talentosos. Eles retribuíram com a Zara e com o Corte Inglés em território lusitano.

O que é que os espanhóis pensam de nós? O mesmo que nós pensamos dos eslovacos. Nada de especialmente profundo ou ofensivo. Em 2009, ver uma candidata a primeiro-ministro perder tempo de antena com medos históricos da era em que as pessoas morriam com uma constipação e os judeus eram assados no pelourinho parece-me tão pertinente como pensar que a masturbação resulta em cegueira e acne facial.

Ps - Ontem vi parte do debate em que falou o líder do extremista PNR. E, quando o ouvi falar dos imigrantes malvados, só me apetecia dizer-lhe que ele, um puro lusitano, tem um olho maior que o outro e que, em certas culturas primitivas, isso é tão ofensivo como ser preto, ou chinês ou ucraniano. É fodido uma pessoa ser julgada por alguma coisa que não depende de si, como a cor da pele, o local de nascimento ou o estrabismo, não é? O presidente do PNR não tem culpa do seu desequilíbrio facial, foi azar genético ter um olho no burro e outro no cigano, mas pensar como pensa, isso já é uma escolha da sua cabeça em delírio ariano

sábado, 12 de setembro de 2009

Os bichos


Depois de ver Paulo Portas e Francisco Louçã nos debates - e depois de saber que certamente terão mais votos que há quatro anos - tenho a certeza que são como tigres: engraçados e divertidos em pequeninos, mas suspeito que depois de crescerem, fariam com o país aquilo que o tigre siberiano fez com o pescoço de Roy, da dulpa de mágicos Siegfried & Roy.

O PCP é um dos dinossauros do filme Jurassic Park - nós sabemos que está extinto, embora o possamos ver no ecrã, uma e outra vez, em repetidas sequelas.

Por sua vez, PS e PSD parecem-me aqueles babuínos anciãos do Jardim Zoológico - aborrecidos de fazer a mesma coisa há tanto tempo, com o rabo coçado, mas que não abdicam de mandar no seu pequeno planeta dos macacos.

Os portugueses? Os portugueses estão entre as ovelhas e os koalas: fofinhos, simpáticos para quem os visita, mas claramente mais interessados nas folinhas da sua árvore do que no resto da floresta em chamas.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

What the fuck?


No dia do jogo da selecção nacional, na Hungria, o jornal 24 horas apresentava na primeira página uma fotografia do ex-seleccionador, Luiz Felipe Scolari, e anunciava que o brasileiro estaria a rezar a nossa senhora do Caravaggio durante a partida. No texto, que encontrei no site da versão do 24 Horas publicada nos Estados Unidos – peço desculpa mas não comprei o jornal em papel –, o jornalista dizia: “Não é só o povo português que está a rezar por uma presença na grande competição, e que não passa apenas por fé ou rezas (...) Luiz Felipe Scolari, treinador do Bunyodkor, também está a pedir pela Selecção Nacional.”

Embora o 24 Horas ache que as orações de um treinador são suscpetíveis de fazer a primeira página de um jornal, ao menos reconhece que não basta a oração para que uma equipa de futebol ganhe um jogo.

Uma primeira página deveria ser o orgulho dos jornalistas. Mas há quem diga, por exemplo, que o Expresso tem tanta credibilidade que pode estar dentro de um saco plástico, escondendo a primeira página. Muitos são aqueles que compram o Expresso, todos os sábados, sem olhar para o que está dentro de um saco patrocinado por um banco ou uma empresa de telecomunicações. Trata-se do conformismo consumista. O Expresso não é apenas um jornal, é um status quo tão válido na esplanada, durante o pequeno almoço com a família, como os óculos Wayfarer, o carro alemão estacionado no parque ou as férias na Turquia.

No entanto, um jornal não é um carro desportivo. Um jornal é um produto volátil, cuja qualidade e o que tem para oferecer variam todos os dias. O leitores do Expresso deveriam ficar orgulhosos de um jornal que faz valer a sua primeira página em vez de acreditarem que o alegado valor sólido do Expresso (que bom passear o saco pelo pontão do Estoril) permite que o jornal venha empacotado.

Muitos jornais, revistas e televisões usam agora armadilhas e estratégias enganosas para nos prenderem a atenção. Os noticiários agoniam os espectadores com tantas promoções durante o programa: “Não perca, na décima parte deste jornal conheça a desgraça de um agricultor transmontano e das suas abóboras gigantes.” Muitas vezes aquilo que vem na primeira página ou nas promoções dos noticiários nem sequer é bem aquilo que realmente têm para oferecer.

Os jornais e as revistas precisam de vender, claro que sim. Não acredito no modelo romântico do jornalista e da sua cruzada, o jornalista que passa fome e não aprecia a invenção do duche quente. Mas hoje, jornais e televisões comportam-se como empresas produtoras de iogurtes, esquecendo-se que têm uma responsabilidade social. Em muitas redacções não se pensa no que está a acontecer no país e de que forma se pode pegar na realidade e transmiti-la ao público. Pensa-se assim: “O que é que as pessoas gostam?” Está-se a fazer ficção em vez de jornalismo.

Como um director de produto de lacticínios, muitos editores e directores pensam em açucarar a realidade para os leitores com pepitas de chocolate, pedaços de morango, cereais estaladiços, ou seja, com celebridades, especulações e aquilo que Philip Roth descreveu assim: “The triumph of trivialization over tragedy, a global outbreak of sentimentality. From Sidney to Jerusalem to Times Square the recirculating of clichés occurs at super sonic speed. Watching this hyped up production of staged pandemonium I have a sense that the moneyed world is eagerly entering the prosperous dark ages.”

As redacções deveriam ser lugares criativos, de múltiplas opiniões e frequentados por gente inconformista e curiosa. Em vez disso, são muitas vezes linhas de montagem, nas quais os jornalistas, desmotivados e mal pagos, executam apenas as orientações dos directores e as estratégias comerciais impostas pelas administrações. Os jornalistas deveriam ser a primeira linha de massa crítica de um país, no entanto, têm muitas vezes contribuído para a estupidificação dos portugueses, para o encolher de ombros perante o atraso civilizacional e para a glorificação do rumor, da mediocridade e do populismo. Em vez de ser massa crítica são o espelho da preguiça mental do país: sejam as fotos das férias dos portugueses para encher o Jornal da Noite da Sic, sejam os esconderijos dos famosos na capa da Sábado.

O jornal 24 Horas, com Scolari e a santinha na primeira página, é o paroxismo dessa glorificação – embora não seja o único. Mistura a religião com o futebol e com uma celebridade porque acha que os portugueses gostam do bolo. É uma fórmula tão instantânea como o pudim em pó a fim de chegar ao coraçãozinho dos leitores. Uma farsa tão perfeita como a invenção dos alimentos light.

Mas será que o jornalista do 24 Horas acredita mesmo que Portugal estará a rezar à hora do jogo? Os portugueses são mais supersticiosos que religiosos – estão-se nas tintas para as regras do Senhor, não aparecem muito na missa, a menos que seja para casamentos e baptizados, gostam dos feriados religiosos, do folclore gastronómico, do bolo rei, do borrego na Páscoa e daquilo que a religião representa: o conforto de acreditar que há alguém que, no final, tem um plano para nós, o sentimento de pertença, a noção de ordem e disciplina, e esse medinho existencial que leva as pessoas a dizer “Pelo sim pelo não, mais vale acreditar em alguma coisa e fazer parte do rebanho”.

Usar a religião (superstição) dos portugueses e embrulhá-la com futebol para vender jornais é o mesmo que ter uma banquinha, no santuário de Fátima, para vender nossas senhoras em miniatura e camisolas falsificadas do Cristiano Ronaldo.

Mas mesmo que eu esteja errado e seja importante para os portugueses saber que Scolari vai rezar, peço ao 24 Horas que, pelo menos, não fabrique notícias (como se criasse gomas de goiaba para adicionar ao iogurte). É que apesar da fotografia na capa e do título revelador, o jornal nem sequer falou com Scolari.

Querem saber como o 24 Horas descobriu a sua notícia exclusiva? Telefonando para um padre brasileiro que é amigo do treinador. Conta o jornalista: “(...) Lá longe, nos confins do Uzbequistão, Luiz Felipe Scolari, treinador do Bunyodkor, também está a pedir pela Selecção Nacional. Quem o garante é o seu mentor espiritual, o padre Pedro Cunha, igualmente brasileiro, que trabalha na Igreja de Nossa Senhora das Graças, cidade de Passos, Minas Gerais. ‘Tenho a certeza de que Luiz Felipe Scolari está a rezar à Nossa Senhora do Caravaggio por Portugal e de que está a torcer pela vossa selecção’.”

Se o 24 Horas quiser mais notícias exclusivas, basta falar com o senhor do talho da minha rua, que tem a certeza que Sócrates é ladrão, que o Calado era gay, que os McCann mataram a filha e que a Manuela Moura Guedes é um andróide.

É que ao contrário do que diz a TVI – “Televisão feita por si” -, o jornalismo não pode ser apenas um espelho daquilo que os editores acham que os portugueses querem nem pode ser feito pelo senhor do talho. Isso é sacudir a água do capote, é esquivar-se a responsabilidades, é ser o tal sábio que se contenta com o espectáculo do mundo, mesmo que o espectáculo seja tão pobre.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Man on fire


Podia estar aqui horas e, desesperadamente, começar com a frase feita: Hoje, não dá para mais que isto. Podia continuar com o processo de procrastinação das últimas semanas que, apesar de confortável, tem em mim resultados tristes: o que está a dar na televisão?, deixa cá espreitar o Facebook, mais um episódio de Mad Men, ainda não li o jornal.

Mas temos de começar por algum lado.

1
No fim da estação regressa o previsível desconforto de saber que alguma coisa tem de mudar. Na praia e nas tardes sem nada, há tempo para reflexões e promessas. Não é a primeira vez nem sequer a derradeira. Percebo agora que me custa levar as coisas até ao fim. Há umas semanas deram-me o aviso: “Não tens muito jogo de cintura quando és contrariado. Para ti, as contrariedades são ofensas”. E antes que isto se torne num consultório psquiátrico, eu assumo: “Tens razão”.

2
Vejo um político, presidente de câmara, num programa sobre futebol. O político foi meu professor de Princípios Gerais do Direito e tinha o hábito de ridiculizar os estudantes – fazia perguntas para a turma, incentivava a coragem de uma resposta e depois descontruia o aluno diante de uma audiência com medo, demasiado ingénua para se sentir enojada com a crueldade académica.

No programa sobre futebol, o político anuncia, com a superioridade de quem domina aquilo que nós nunca perceberíamos, que o mês de setembro é vital para o país – parece que, em poucas semanas, teremos duas eleições e momentos decisivos na temporada futebolística. O Porto joga com o Braga, depois com o Chelsea e logo a seguir com o Sporting. A selecção, com o apuramento para o mundial em risco, entra em campo dias antes das legislativas. Os próximos jogos do Benfica, diz o político, são o tira-teimas de Jorge Jesus.

Esta é a viscosa promiscuidade entre um desporto e a arte de melhorar as coisas. Esta é uma tremenda confusão que nos faz mal.

3
Em minha casa a música não era importante. Ouvia-se rádio no carro e, para que percebam o mau gosto, o primeiro episódio da minha adolescência amorosa tinha o acompanhamento musical dos Berlin – “Take my breath away”.

Os Beatles, por exemplo, nunca me entusiasmaram. Se no dia do juízo final a humanidade se dividisse entre os que escolheriam Elvis ou os Beatles, eu estaria na fila com a malta da brilhantina, dos comprimidos e das pernas I’m all shook up.

Mais recentemente, ouvi dois amigos e as suas repetidas conversas sobre os Beatles. Algumas vezes, fui eu quem incentivou o debate. Primeiro, porque aquilo me parecia cómico, depois porque queria saber mais sobre essa capacidade revolucionária de quatro suburbanos de Liverpool.

Comecei a ouvir Beatles, a ler coisas sobre a banda, a ver documentários como aquele que explica o processo criativo do álbum Sgt Pepper. Posso dizer que, intelectualmente, estou fascinado. E que, diante de deus no fim dos tempos, talvez mudasse agora para a outra fila.

Mas não é a primeira vez que processo uma coisa intelectualmente e só depois me atrevo a sentir. Não se trata de sobranceria. Trata-se de uma peça que falta. Não é um super poder. É uma insuficiência. Eu sou um atrasado emocional.

Mas os Beatles permitiram-me mais uma revelação – os Beatles e, claro está, esse exercício de estilo que tento que seja a minha vida.

Eu percebo os Beatles, ou seja, aos 33 anos, o meu cérebro treinado para fazer algumas coisas, consegue perceber os mecanismos do poder criativo dos Beatles; consegue perceber as suas intenções bem como aquilo que foi criado apenas porque sim, por fruto do acaso ou do subconsciente dos músicos, aquilo que apareceu sem intenções revolucionárias.

O mesmo se passa com filmes, livros e mesmo com as relações humanas. Eu percebo. Eu percebo muita coisa. Mas só recentemente me dei conta que o facto de perceber não significa que possa fazer igual – seja como pai de família, namorado ou guionista de um filme. Quando vejo “O Padrinho” ou um episódio de Six Feet Under ou leio o último romance de Junot Diaz, percebo o que eles estão a fazer e essa percepção leva-me a acreditar que, por compreender onde querem chegar, detenho a mesma capacidade de criação – e de trabalho. Hoje, posso assumir que há uma diferença entre ter a capacidade de perceber uma obra de arte e a capacidade de criar uma obra de arte.

4
“You’re an idiot but your mother dresses you fine. Now smile, douche,” in Californication.

5
Este verão, na praia, estive no topo de uma rocha de oito metros. No alto de outra rocha, estavam os pós adolescentes que me desafiaram a escalar a falésia (eles estavam na rocha mais alta, com dez metros). Fiquei parado alguns minutos. O desejo de alguma coisa diferente, a pulsão pelo risco, ainda permanecem alojados na minha imaturidade. Mas o medo físico serve de paizinho. Os miúdos saltaram. Com 20 anos são inquebráveis. Nada de mal lhes poderá acontecer. Os miúdos saltaram e eu ainda estava ali.

Depois saltei.

6
Chegas a minha casa quando as temperaturas aconselham actividades dentro de lugares com ar condicionado e a luz incendeia a praça, encadeando turistas sem óculos escuros, atacando os ombros das meninas que procuram a sombra e que correm para um almoço de sushi.

Ficas emoldurada na ombreira da porta: o vestido, a curva do pescoço, os óculos de aviador, a expectativa de saberes se, assim que a porta se fecha, almoçamos primeiro ou se de imediato estarás na cama, com as janelas abertas para a cidade e uma veia do pescoço cada vez mais grossa, os olhos fechados, a marca de duas mãos na parede branca por cima da cama.

Entras no duche, pegas na minha toalha, estás na sala, nua, e recolhes a roupa, reduzes o volume da música e fazes tudo com a lucidez harmoniosa de uma solista de violino – és tão precisa, tão delicada, tão determinante para que, durante esse breve tempo que demora um almoço num dia de semana, eu saiba que alguma coisa de extraordinário está mesmo para acontencer.

7
Não acreditas em bloqueios literários mas sabes que és preguiçoso.

Não sejas palerma.

Vês, em menos de uma hora escreveste isto tudo. Melhor assim? Não fiques quieto, porque o mundo não acontece apenas nas possibilidades determinadas pela tua cabeça. Mostra-te. Faz pela vida. Não é assim tão complicado, a sério. E agora desliga isto e sai para a rua.