segunda-feira, 20 de julho de 2009

Pela estrada fora

(texto publicado na NS, no verão de 2007)



Prostitutas importadas, adoradores de Franco, marroquinos em automóveis sobrelotados, camionistas ingleses, aldeias fantasma, a herança de Dom Quixote, estações de serviço, turistas em tronco nu. De Madrid a Sevilha, numa das estradas mais percorridas do país. Uma road trip, no epicentro do calor, a essa Espanha mais profunda e insane

Para a Mari


Quando a superfície das ruas de Madrid brilha e parece desfazer-se, e o calor se entranha nos bancos dos carros, no avesso da roupa, no ruído das máquinas de ar condicionado que se prendem nas fachadas dos edifícios, então, as tardes da cidade passam a ser bairros de silêncio, e há a certeza de que uma ventoinha num pequeno apartamento jamais solucionará o desespero dos corpos. Quando todos se escapam para a costa, os que têm de ficar sentem-se sozinhos, e acreditam (mesmo) que alguma coisa se estraga, que a temperatura danifica a sanidade mental, desmanchando gravatas, arregaçando vestidos, e aumentando (ainda mais) a pulsão sexual; os que ficam, falam disso entre si, e estão seguros de que a interioridade de Madrid – no centro da península, tão seca, a 600 metros de altitude – transforma pessoas em bichos encurralados, em devoradores de bebidas alcoólicas com gelo, em seres incapazes de encontrar uma saída nesta cidade, um sítio onde possam, por fim, respirar.

Na sombra de uma varanda no bairro de Chueca, uma inglesa, a viver em Madrid, propõe uma fuga da demência. Fazer uma road trip, como nos livros, como nos filmes. Sair daqui. Só isso. E dias depois, com mapas, guias, e telefonemas a conhecedores da geografia e das personagens de Espanha, um carro abandona Madrid, nessa estrada, a A4, que liga a capital a Sevilha, e que tanto espanhóis cruzaram durante as suas vidas, a caminho do sul.

Os primeiros quilómetros são os danos colaterais do progresso da oitava economia do mundo: polígonos industriais, parques de diversões, centros comerciais, e o primeiro touro Osborne da paisagem – há 90 em toda a Espanha –, entalado entre uma bomba de gasolina Repsol e um armazém de cerâmica. Entramos na região de Castilla La Mancha. O cenário começa a coincidir com a literatura de Cervantes e os filmes promocionais da região. Há pequenos tornados que erguem pó no horizonte, intensificando a desolação de um território que torna os humanos mais duros, mais loucos ou mais engenhosos. Foi aqui que Dom Quixote, engrandecido pelos romances de cavalaria, se passou para a equipa dos dementes. Foi aqui que cresceu Pedro Almodóvar, nessa estrutura social de mulheres viúvas ou com maridos emigrantes, retratada em Volver – filme que mostrou ao resto do mundo (em Espanha, é claro, já se sabia) como a persistência do vento de La Mancha é uma causa de loucura.

Em Tembleque, a paragem inicial, encontramos o primeiro marco informativo de um tema que nos acompanhará durante a viagem – a ideia de duas Espanhas divididas numa guerra civil (1936-1939) que ainda não foi digerida; o conflito entre uma Espanha franquista, que não se apagou por completo, e o desenvolvimento do país europeu que mais estrangeiros recebeu no último ano. Nessa cruz de pedra, diante da igreja de Tembleque, que faz homenagem aos franquistas que morreram na guerra (“Caidos por Dios y por España”), alguém cobriu os símbolos do antigo regime com tinta preta e escreveu: “Viva la República”.

O primeiro lugar mencionado por Dom Quixote chama-se Puerto Lápice, e surge-nos como uma rua comprida com casas de um lado e de outro, e sem habitantes no exterior. Seguindo a tradição manchega, todas as portas (abertas) estão tapadas por panos de diferentes cores e padrões. Desse modo, permite-se que as correntes de ar enfraqueçam o calor e protege-se, ao mesmo tempo, a intimidade das casas. Há Quixotes de metal por todo o lado.

Os senhores Molina, Tomás e Buitrago, todos com mais de 70 anos, passam as tardes numa praça: “Comentamos as turistas que descem dos autocarros”. Não são velhos que se queixam, homens que, apenas por serem velhos, acreditam que no seu tempo tudo era melhor. Tomás conta que nos anos após a guerra civil houve muita fome: “Em 1940 era miséria, miséria mesmo”. Molina saiu de Puerto Lápice com 11 anos, para trabalhar em Madrid como ajudante de pedreiro. São, ainda que reformados, representantes da nova Espanha, motivados pelo progresso económico e mental que o país conseguiu nos últimos 30 anos. “Estamos muito bem, tenho uma boa reforma, este país evoluiu muito, e este sítio também, esta manhã estiveram aqui sete autocarros só de uma vez ”.

O único movimento nas ruas de Puerto de Lápice acontece quando os turistas estrangeiros saem de um autocarro directamente para La Venta, lugar visitado por Dom Quixote. O edifício providencia artesanato e tortilhas. Sobre este pueblo, Cervantes escreveu: “Seguiram o caminho de Puerto Lápice, porque ali, dizia Dom Quixote, não era possível deixar de encontrar muitas e diversas aventuras, por ser lugar muito passageiro”. Nunca nada de extraordinário terá acontecido em Puerto Lápice. Por isso mesmo se torna importante parar. E não fazer nada.

Dentro de um moinho, Rufo tornou-se o guardião da identidade gastronómica de Castilla La Mancha. Tem os ombros largos, barba, e dimensão do corpo reflecte as suas convicções (políticas e gastronómicas). “Há muito engano”, diz, enquanto serve uma salsicha que foi banhada em sidra. Tem uma pulseira com bandeiras espanholas. “Come-se muita porcaria de pacote, estamos na cultura da pizza e do sofá, mas tudo isto se pagará um dia”. Rufo, que trabalhou na indústria dos transportes (“Viajei muito, vi muita coisa”), passou um dia por um moinho destruído, na berma da A4, e informou a mulher de que iria pôr em prática as suas ideias: comida autêntica de La Mancha, atendimento familiar. “Leio o pensamento dos clientes quando ainda vêm no carro. Sempre que me levanto lembro-me do trabalho com o público e de como isso é bonito”.

Rufo gere o moinho, que também é uma loja de produtos gastronómicos, com a mulher e o filho. Os clientes conhecem-no, pedem-lhe sugestões – o gaspacho com perdiz escabechada, os queijos curados, os prato cozinhados no formo de lenha. Rufo tem galinhas, pavões e canários em redor do seu moinho. Não quer autocarros de turistas, acusa as directivas europeias que o proíbem de servir caça, e critica a “Espanha da comida ordinária, o país que consome mais cocaína (per capita) em todo o mundo, que deixa que o catalão se imponha nas escolas da Catalunha”. Os clientes escutam-no e concordam. Ele continua: “O que fazem os miúdos na rua às seis da manhã? Eu trabalho para viver e vivo para trabalhar. Sabe quem manda neste país? É a maçonaria”.

O moinho de Rufo é uma sala de debate, os clientes entram e, alinhados na mesma plataforma política, falam de como os atentados de 11 de Março tiveram a participação da ETA. “Os espanhóis estão enganados, a ETA é uma empresa, um negócio de muitos milhões”. Entra mais um cliente, que espera uma sugestão de Rufo, e este suspende a contundência das suas ideias políticas, deposita o prato no balcão, acrescenta: “Com um pouco de amor”.

Espanha lidera no número de prostitutas na União Europeia. Na A4, entre Madrid e Sevilha, há cerca de 50 puticlubs, como aqui se lhes chama. Edifícios que se vêm da estrada, com nomes como S’candalo ou American Show, reluzindo neóns durante a noite. Tínhamos um contacto, N., dono de Salas de Fiestas – eufemismo escrito na parte de fora dos edifícios do sector, que parece querer transformar uma casa de putas num baile da paróquia. N. foi descrito como "Una pieza", ou seja, um malandro que cruza as noites entre meninas e estupefacientes, com quem falámos por telefone mas que nunca apareceu. “Não te preocupes porque estás com uma amiga, comigo entram em todo o lado”. Mas sem a influência de N., e mesmo sabendo que parar a meio da auto-estrada, com uma inglesa de olhos azuis e um decote (temperaturas de 35 graus), não seria a opção mais sensata, tentámos ser clientes do El Lido. Um senhor pequeno, que podia ser o arrumador de carros do estabelecimento, olha-me e, espantado com a nossa tolice, atira: “Isto é uma sala de festas, não é um café, não pode entrar com ela, os outros homens vão apalpar-lhe o cu”.

Mas é preciso entrar. Alex, a inglesa, fica no carro. Lá dentro: um cartaz informa da abertura da piscina; ecrãs passam telediscos, máquinas fornecem lençóis como se dispensassem chocolates. Os quartos estão no andar de cima. Há três clientes a meio da tarde, homens grisalhos, com barriga, que escorregam as mãos pelas meninas. Uma morena, com minissaia, espartilho vermelho, aproxima-se. Publicita os seus serviços através da ondulação das ancas e da proximidade da respiração. Angelica tem expressões de adolescente (19 anos), chegou do Paraguai, e trabalha como prostituta há quatro meses. Durante o seu turno, das cinco da tarde às três da manhã, aborrece-se muito. “Estes homens são uns chatos”.

Uma carrinha transporta as funcionárias da cidade para o estabelecimento no meio do pó. Angelica diz que a tratam bem e que antes do fim do ano regressará ao Paraguai. O seu conhecimento de Espanha reduz-se a esse percurso diário, entre puticlub e o pueblo onde vive. Pode cobrar entre 50 e 150 euros por encontro, e conta que a maioria das suas colegas são russas e romenas – as mesmas que se sentam num banco corrido, com a postura entediada de adolescentes no recreio. Angelica não fala de máfias, de mulheres obrigadas a estar ali. Pode não ser uma delas. Mas com frequência, em Espanha, são apanhadas redes de tráfico de mulheres. Sobre esse tema, o homem que nos pôs em contacto com N., disse: “Bem, os donos desses sítios vêem as mulheres como propriedade deles, e por isso pensam que podem dar-lhes uns correctivos”. Mais tarde, quando Alex tentava tirar fotos de um destes estabelecimentos, durante a noite, três homens correram atrás do nosso carro. Preferimos acelerar e não saber o que pretendiam.

As saídas ao longo da A4 são acessos a lugares inesperados, fora do mapa, fora da lógica. Juan, dono do restaurante casa Pepe, tem o seu estabelecimento na fronteira de Castilla La Mancha com Andaluzia, na serra de Despeñaperros. Na saída do quilómetro 243, Juan criou um restaurante franquista que celebra o ditador e ridiculariza a Espanha democrática. Por todo o lado se encontram fotografias de Franco, bóinas militares, e a bandeira da ditadura. Há imagens do antigo presidente socialista, Felipe González, com cara de macaco; montagens de Zapatero e políticos catalães, e mesmo José María Aznar, aparece, aos olhos criativos de Juan, como comunista.

Rodeado de clientes que lhe pedem autógrafos, Juan tem o discurso preparado: “Este país, que um dia se chamou Espanha, é hoje um conjunto de tribos”. Diz que tem a bandeira franquista em 90 por cento dos produtos que comercializa, desde latas de azeite, a isqueiros ou toalhas de praia. “Tentei comprar uma estátua de Franco, que havia em Madrid, e não me deixaram. Quis comprar o barco do generalíssimo, e também não me deixaram. Estão a ver este? (aponta para uma cabeça de touro na parede). É o Zapatero”.

Fixado nos decotes dos seus interlocutores femininos, Juan mexe o bigode nervoso em cima do lábio: “Antes era o homem que mandava, a mulher sabia cozinhar, hoje não sabe fazer nada. Sim, as pessoas querem liberdade, mas agora as mulheres confundem liberdade com libertinagem”. Juan casou cinco vezes, resta saber se, como escreveu David Mourão Ferreira sobre si mesmo: “Todas por amor, talvez isso sirva de atenuante.”

Na parede há uma lista de medidas do governo socialista, como sejam a lei antitabaco ou a carta de condução por pontos (que nos primeiros meses desceu a sinistralidade em 30 por cento). Essa lista fecha com uma referência à legalização do casamento entre homossexuais: “Estes socialistas só governam a pensar em como te enrabar, que foi para isso que legalizaram tal coisa”.

Com a hegemonia do seu discurso, Juan secundariza a comida do restaurante. Gosta de ser contrário. Gosta da atenção. “Viram-me na televisão, na semana passada?”. O espectáculo de Juan, perdido no tempo, podia até ser inofensivo. Mas tudo se agrava quando se percebe como os clientes acham graça aos seus comentários, ou se riem quando Juan, diante da bandeira franquista, estica o braço e faz a saudação romana. Os clientes gostam das ideias de Juan, embora nunca o admitam no escritório. Não estão ali apenas pelo presunto. Terá sido essa cumplicidade rançosa, entre Juan e os seus clientes, que levou um crítico gastronómico a escrever que saiu do restaurante com o estômago desarranjado.

De novo na estrada, a inglesa partilha o mal estar físico do crítico gastronómico. Diz que em Inglaterra há radicais, racistas, espancadores de negros, gente extremista que assusta. Mas não existe, como em Espanha, uma memória tão presente – na cultura, na educação, nos hábitos, no vocabulário – de um regime que tanto danificou um país, que assassinou e torturou milhares de pessoas, e que, ainda assim, continua a ser celebrado, mesmo que seja numa espécie de túnel de tempo, na estrada entre Madrid e Sevilha.

O sol entra em percurso descendente, os mosquitos suicidam-se contra o pára-brisas, os lagares de azeite empestam a paisagem. Paramos em Villa del Río. E se ainda não tivessemos compreendido a importância do calor na definição das rotinas, uma senhora ajudou-nos: “Uma esplanada? São sete da tarde, meus filhos, ninguém está numa esplanada tão cedo”.

Paramos outra vez. Primeiro na estação de serviço de Guarromán, onde os autocarros que fazem o percurso entre Madrid e Sevilha mudam de motorista. Os passageiros abastecem-se de comida. Dentro da zona de fumadores, como num aquário, três homens de cabelo branco destacam-se. São camionistas britânicos, que percorrem o caminho do norte de Inglaterra ao sul de Espanha há mais de 30 anos. Têm barrigas e dedos amarelos. Estão gastos. E surpreendem pela sua eloquência e capacidade de observação. São camionistas que percebem de sarcasmo: “Em Espanha não se guia, faz-se pontaria”.

Pouco quilómetros depois, as placas que indicam uma zona de descanso aparecem em árabe. Há um milhão de imigrantes muçulmanos em Espanha, 450 mesquitas legais, 200 sem licença. Na estação de serviço Jaima Park (saída 283), a hospitalidade de Maki para com os dois únicos não muçulmanos na sala, contrasta com a ideia de um possível conflito de civilizações. Maki nasceu em Tânger e tem saudades do mar. Mas ali, no centro da Andaluzia, faz mais dinheiro. É um dos 850 mil marroquinos que trabalha em Espanha, a maioria na hotelaria, agricultura ou construção. Serve-nos chá de menta. Fala dos três milhões de marroquinos que, a viver na Europa, cruzam Espanha durante os meses de verão, para passarem férias no seu país. “Já podem comer a sua comida na estrada, antes traziam de casa e comiam debaixo de sol”. Os carros, lá fora, têm caixas no tejadilho, panos a tapar as janelas. Os marroquinos são conhecidos por, pelo menos na estrada, serem viajantes com excesso de bagagem, e de passageiros.

Em Jaima Park, há avisos em francês e árabe, que anunciam comida Halal, ou seja, que respeita a lei islâmica. Não se encontra uma bebida alcoólica. Cinco minutos e três quilómetros antes, tínhamos estado com camionistas ingleses, bebedores de álcool (quando não conduzem), diante de um cartaz que anunciava: “Tipologia do presunto”.

Na chegada a Sevilha, depois de 12 horas na estrada, os termómetros mostravam temperaturas mais altas que Madrid, e insanidade de alguns detalhes durante o percurso não nos permitiu escapar ao perigo da demência. Mas quando nos pomos em movimento ganhamos perspectiva, fazemos perguntas, exercitamos a habilidade para viver. A A4 pode ser vista como um freak show, o retrato sociólgico de um país, ou mesmo uma comédia de costumes. O autor Pío Baroja, escreveu: “O nacionalismo cura-se viajando”. E o comodismo também. No final, não se tratou de uma fuga ao calor, mas de uma solução para a facilidade de estar sempre no mesmo lugar.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Deixa-me rir


Os Contemporâneos, Gato Fedorento e os Homens da Luta - mais um episódio de "Portugal Meu Amor" sobre a comédia portuguesa, hoje às 23h15, sábado às 17h30 e domingo às 22h30, na Sic Radical

quarta-feira, 15 de julho de 2009

On beauty


Some women are corkas - when they walk in to a room someone should cork open a bottle of champagne.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Fado marialva com óculos escuros e after hours


(texto publicado no jornal do Lux)

Querida Lisboa,

A verdade, pelo menos agora, é que me pareceste, durante muito tempo, aquelas mulheres com quem não sabemos se nos apetece ir para a cama e casar no dia seguinte ou bater com a porta, uma e outra vez, até que não voltamos mais. Talvez sinta esta inquietação porque nos abandonámos há alguns anos. Tu estavas certamente cansada das minhas críticas e das minhas ameaças de emigração Eu, de malas feitas, apanhei o avião um dia depois do Natal, seguro de que não eras mais que uma cidade que repetia infinitamente o mês de Dezembro, enrolada numa película de chuva e povoada por pessoas de fazenda, com roupas estioladas – criaturas nómadas que viajam todos os dias entre uma máquina de fotocópias a ranger dos parafusos e um apartamento de três assoalhadas no fim de duas horas de trânsito.

Mas agora, anos depois, regressei, aluguei uma casa com os sinos de uma igreja como banda sonora e começo a descobrir que não ficaste quieta, de socas e bata, apoiando as mamas no parapeito, olhando a vida dos outros na rua e tendo como única companhia o canário que apita dentro de uma gaiola. Em todo este tempo, deixámos de ser crianças envergonhadas, num recreio, que usam um pontapé nas canelas como artimanha de sedução. Estamos mais elaborados nos gestos e na eloquência. Bebemos gin com pepino. Conhecemos restaurantes secretos em outras cidades. Temos amigos estrangeiros. Mas estamos também mais directos ao assunto, mais crus, afinal, com esta idade, não andamos aqui para enganar ninguém.

E é por isso que te digo que gosto outra vez de ti sempre que faz calor e me apareces nas alças dos vestidos das mulheres bonitas que escalam o Chiado, passeando sacos de lojas enquanto caminham para mojitos nalgum terraço ou para lençóis frescos de sesta e beijos na boca. Gosto do teu coração, armazenado junto ao rio e com ruas estreitas. Mas fica a saber que não me interessam as tuas cirurgias plásticas fracassadas, o lego com excesso de peças do Parque das Nações, a geometria certinha de Telheiras, os seus móveis Ikea, os jovens casais, os dois lugares na garagem, a menina dos olhos da classe média com curso superior.

O que não quer dizer que eu não queira que trates melhor de ti. Por exemplo, devias estar menos confiante na decadência das fachadas dos prédios como atributo para atrair turistas. Devias sugerir, aos utentes dos transportes públicos, que usassem gel de banho, desodorizante e respeito pelo espaço pessoal de terceiros. Devias sugerir que os teus habitantes dissessem bom dia, que sorrissem uns para os outros, que passassem menos tempo na sala da televisão e mais tempo na rua. Diz-lhes para começar conversas com estranhos e oferecer aos indígenas a mesma simpatia com que prestam informações a turistas perdidos. Não te armes em moderna apenas porque usas a bijuteria de prédios espelhados e balcões bancários. Cuida melhor das pessoas que aqui vivem. Não sejas tão desconfiada. Dança com mais frequência e deixa as janelas de casa abertas. Melhora o teu jogo de cintura. Disponibiliza-te. Deixa que o meu braço se encoste na base das tuas costas e que os meus dedos se amarrem na tua cintura.

Gosto de ti ao fim da manhã quando, na minha rua a pique, entre roupa estendida e nuvens frenéticas de pombos, aparece o rio ao fundo, garantindo-me que não morrerei de calor e que haverá sempre um barco que possa usar em caso de fuga. Passo pelo barbeiro indiano e pelos seus filhos que já trocaram o cricket de rua pela peladinha futebolística no passeio de calçada. Velhas de roupão e cabelo de almofada comentam, numa ombreira para pessoas tão pequenas, problemas na espinha e a detenção de um neto que usa brincos, boné e dois tubos de escape. Gosto de ti quando cruzo a Praça da Figueira, espelhado na montra da loja o “Mundo das Malhas”, desviando-me dos convites das prostitutas diurnas e da coragem física dos rapazes do skate, manobras que me razam o corpo, a insolência cocktail molotov das letras vermelhas, pós-eleições, pintadas a spray na base do cavalo de D. João I: “64 %, ganhámos outra vez.”

Nos últimos meses, tenho vivido todos os dias contigo. Temos casas separadas, é verdade, e nenhum compromisso que tenha exigido a presença de um notário. Mesmo assim, escrevo-te porque estou estes dias numa cidade fora de fronteiras e quero assegurar-te que não me escapei outra vez. Quero dizer que sim, que gosto de ti, que sou entusiasta das tuas ruas, onde roço ombros com vendedores de haxe, turistas de esplanada e romenos que tocam Sinatra num acordeão. Quero dizer-te que percebo o deslumbramento dos fotógrafos com a tua luz e dos Erasmus com o experimentalismo a céu aberto. Quero confessar-te que me emociono com o som de uma ventoinha, dos talheres a tocar nos pratos, do sotaque brasileiro a cantar na rádio sempre que passo junto a um rés do chão com a porta aberta.

Gosto das tuas meninas betas com tapetes de ioga debaixo do braço e óculos escuros que lhes cobrem metade da cara, gosto dos cyber cafés com paquistaneses que espreitam pornografia no ecrã, gosto dos folhados de salsicha nas pastelarias, das festas ao final da tarde, em casas com pátios, baldes de gelo e crianças despenteadas. Gosto de pensar (embora seja mentira) que Lisboa tem praia. Gosto do apito dos eléctricos que parece a campainha de uma bicicleta. Gosto do momento em que a porta do táxi se fecha e já se pode ouvir a música da pista de dança. Gosto de chegar a casa de manhã. Gosto dos domingos, quando a ressaca é macia e um mergulho basta para nos ressuscitar, e nas ruas não se passa nada, a não ser o barulho distante de uma motorizada e a máquina de café do único sítio aberto. Gosto que sejas toda verão e bolas de berlim e carreirinhas. Gosto que gostes de cama a meio do dia. Gosta que tenhas agora muito mais possibilidades, que sejas mais confiante, que chegues a pedir o número de telefone a alguém que conheceste esta noite. Gosto de ti. Gosto de ti, pelo menos enquanto houver sol.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Fado da Boa Gandulagem


(conto publicado na revista Egoísta)

1
Eu não sabia muito sobre História mas, durante o meu regresso secreto a Portugal, fiquei a saber que Luiz de Camões fora concebido no mesmo dia que o seu primo Sancho Pança, na estreia do verão de 1975, em Lisboa, um mês e meio antes do desaparecimento do seu pai – um pulha sedutor que, assim que suspeitou dos vómitos maternos, roubou um Renaul 5 e pôs-se a caminho da Praia da Oura sem pagar aos homens que iam instalar a marquise. Luiz é, desde o dia da sua concepção, um acidente doméstico, filho de um burlão do amor e razão principal da fuga paterna.

Luiz e Sancho foram primos até aos oito anos, quando o Gordo da turma (inspirado pela actividade delatora da sua avó) limpou a escarreta que recebia na franja todos os dias, no recreio do almoço, e gritou como se disparasse uma granada de fragmentação: “Vocês são primos e irmãos. Vocês são primos e irmãos. Vocês são primos e irmãos.” Logo de seguida, juntou as mãos diante dos tomates, pronto para ser pontapeado no centro de toda a dor.

Gordo perdeu dois dentes de leite, algumas mechas de cabelo e foram precisas duas lavagens no tanque para eliminar o cheiro a mijo na ganga das suas jardineiras. Luiz e Sancho foram suspensos durante duas semanas – tempo que passaram a jogar futebol na rua, a fumar beatas e a preencher paisagens selvagens com calquitos de animais.

Quando me contou esta história pela primeira vez – e já a ouvi em jantares de sociedade, num velório e no intervalo de um jogo da selecção –, Luiz de Camões não pôs o seu talento de narrador na estranheza dos eventos mas na beleza dos humanos: “A minha mãe e a minha tia preferiram a sobrevivência da espécie familiar em vez de enverdarem pela estratégia da faca na liga. Não houve puxões de tranças nem notícias na secção de crime dos jornais. Eram duas miúdas que esfregavam retretes em troca de notas de escudo, raparigas que purificaram um amor cabrão através do amor pelos filhos. Vivíamos todos na mesma casa. Já éramos irmãos quando ainda éramos primos.”

Luiz contou-me isto enquanto fazia o turno da noite como recepcionista de uma pensão no Rossio, onde oferecia uma lista clandestina de serviços de concierge: haxixe, branca, documentos, quartos para dois onde metia doze.

2
Conheci Luiz de Camões quando regressei, após uma década em que o contacto com o país se ficara pelas anuais ceias natalícias: a minha família tinha a apetência destruidora dos gafanhotos, sempre velozes e em movimento para outro lugar. As minhas irmãs desculpavam-se com os divórcios, evitando o anti-climax pós abertura dos presentes (“Tenho de levar os miúdos ao pai”); a minha mãe preferia a televisão, dispensando a mesa dos doces onde os filhos recordavam histórias do passado já que não tinham um presente comum; o meu pai, afastado do cognac pelo cardiologista, isolava-se no escritório em busca de planetas na lente de um telescópio..

Quando regressei a Lisboa, em Junho de 2008, tinha dez anos de engenharia financeira na City de Londres, suficientes bónus acumulados para não me preocupar com uma carreira profissional e a missão de transformar o meu corpo num prodigioso instrumento de prazer ou, como diria o meu traficante de mdma enquanto me punha um saquinho na palma da mão, “Desfruta, bicho”. Por tudo isto, a família não foi informada da minha presença num apartamento nas proximidades da praça do Rossio.

Vi Luiz de Camões, pela primeira vez, na rua onde ambos vivíamos, pouco tempo depois de ter feito a mudança. Segurámos o olhar, um momento de inquisição sem vocábulos, apenas sobrancelhas, a lei da procura e da oferta: “Queres comprar ganza?”, disse ele.

Certa tarde, no terraço de minha casa, quando já tínhamos uma proximidade de semanas a jogar Playstation, a fumar berlaitas e a chupar futebol internacional na televisão como se fosse um remédio para a ressaca, Luiz fechou o bloco onde tomava notas e perguntou: “O que é que tás a aqui a fazer, mano?”

“Em minha casa ou na linha cronológica da existência humana?”, quando estou mocado tento ter mais piada. Nem sempre resulta.

“Londres, guita, gajas internacionais, férias na Sardenha e sangria de champanhe. Não dês p’ra esperto, sabes do que falo. Tá-se?”

“Tá-se”, e foi então que, enquanto Sancho Pança cortava as unhas dos pés com a tesoura da cozinha, decidi relatar a primeira versão da minha biografia londrina em formato VH1 Behind The Music. Mais ou menos isto: numa corrida de carros organizada pela empresa, dei por mim de mãos leves no volante e silêncio dentro do capacete, mesmo que tudo em meu redor fosse o ruído de fracturas expostas – as pessoas, os carros, os motores. Tinha participado num acidente e, no final, nem precisei de fazer radiografias. Encontraram-me intacto. Não havia gratidão da minha parte, nem epifanias, nem uma santa com segredos para a Humanidade a aparecer-me no espelho retrovisor. Eu não sentia nada. Segundo o meu auto diagnóstico: depressão.

“Fónix, xerife, e como é que chegaste aí? Desordem bipolar genética ou vítima das tuas circunstâncias privilegiadas?”, Luiz de Camões falou ao mesmo tempo que colava duas mortalhas. Sancho Pança arrancou outra cerveja do balde de gelo, disse: “Enrola aí uma daquelas que matou o Bob.” Sancho, de cognome: O Animal.

Eu abri um kinder surpresa, comi o chocolate e continuei a narração. Contei-lhes da birra de uma advogada quando descobriu que o iate que tínhamos alugado, na Croácia, não dispunha de internet sem fios. E expliquei-lhes como acedi a mudar-me para um hotel com ela. Toda a minha vida tinha sido um servente das expectativas: quadro de honra, equipa de râguebi, Blackberry, Iphone, Blackberry outra vez, Saint Tropez, Soho House, revistas de moda, nome na guest list, bónus anual. Eu era o perfeito crash test dummie dos publicitários. O influenciável da manada. O tipo que, por medo de ficar para trás, não sabe dizer não. O acidente na corrida de carros? Plagiei-o de uma entrevista a um actor inglês. Desculpem-me os fanáticos da originalidade. Precisava de um evento para a minha narrativa de mudança, tinha falta de uma razão para me demitir da própria vida. Não é fácil sair do carrocel em andamento. Eu só queria outra coisa que não fosse a mesma coisa.

Luiz de Camões lambeu a cola das mortalhas com a precisão de um fumador que aperta charros desde os 15 anos e disse: “Estou a ver. Meteram-te um martelo pneumático nas mãos e tu pensavas que era um violino.”

3
Luiz de Camões: o adulto que passou a adolescência no lugar onde, séculos antes, morreu o seu homónimo e poeta fornicador de nativas. Na fachada do número 139 da Calçada de Santana, a placa, com letras esforçadamente épicas, informa: “Nesta casa diz a tradição documental faleceu em 10 de Junho de 1580 Luiz de Camões.”

No segundo andar direito viveu toda a sua vida Paulo Jorge, que, após ter descoberto a Ilha dos Amores numa aula de Português, se deu conta da importância do escritor zarolho. Paulo Jorge auto coronou-se então Luiz de Camões e começou a articular sonetos em mortalhas. Num momento de honestidade cocainómana, na casa de banho de um after-hours, Paulo Jorge falou comigo: “Pá, os outros putos furaram as orelhas e fumavam chinesas, eu inventei-me poeta genial”.

4
Na versão número 2 da minha vida foi uma mulher francesa, filha exclusiva de pais com helicóptero e menina para estar três dias em festa, que andou a brincar com a minha ilusão de amor romântico. Vocês sabem do que falo: filhos eloquentes que lêm (livros), casas de campo e amigos estrangeiros, viagens para destinos onde ainda são precisas vacinas exóticas. Um dia fui buscá-la ao aeroporto e o voo atrasou. Lá estava eu, esperando quieto no meio de pessoas a caminho de outro lugar: o homem que, embora sem nada nas mãos, tem a postura palerma de quem segura um cartaz de boas-vindas e balões da Disney. Durante quatro horas senti que o casaco me estava grande nos ombros e que o barbeiro falhara o equilíbrio das patilhas. Nessa manhã, eu tinha feito uma limpeza de pele, recebera a nova mobília, engordara o frigorífico com produtos caros e de fim-de-semana. Diante dela, inventava traços de personalidade que a manteriam perto de mim: gostar de carros, de redes sociais de internet, de pedir mesas com garrafa.

Eu não era eu.

Eu era a farsa encenada pelo medo de desiludir o meu amor.

O voo piscou no ecrã. O avião aterrou. Os passageiros foram desvendados pelas portas automáticas. No final do cortejo passaram por mim os membros da tripulação. Pensei: de certeza que lhe perderam a mala, claro que houve um problema com o passaporte, ficou sem bateria no telemóvel. Esperei mais uma hora pelo voo seguinte. Ela não chegou.

Em certos dias, se olharem para mim com atenção, ainda podem ver os balões murchos a sobrevoar a minha sombra.

5
Luiz de Camões acabou ao 12º de ano e sabia de cor o poema Tabacaria, de Fernando Pessoa. Tatuou nas costas: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” Nas suas provas imaginárias para o clube dos génios, Luiz de Camões chumbou em poesia. Tantos cadernos escritos e tantas rimas que soavam como dobradiças. Mas recebeu louvores nas disciplinas de improviso, tráfico de droga e encanto social. Conseguia a amizade dos senegaleses ilegais que enfiava nos quartos sobrelotados da pensão. Encantava as estudantes de arquitectura – betas, loiras, solarizadas – que adquiriam os seus saquinhos de poção mágica. Mas apesar da sua excelência como mestre de cerimónias, Luiz de Camões julgava-se mais sábio na métrica dos versos.

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Versão número 3 da minha vida. Ela não era francesa, antes filha de uma iraniana e de um norueguês. Dançava com auscultadores nas orelhas enquanto cozinhava. Disse: “É a primeira vez que penso em ter filhos com alguém.” Mudou-se para minha casa. Guardámos os seus vestidos no meu roupeiro. Um fato meu, um vestido dela. Um fato meu, um vestido dela. Também me disse: “Compreendo que te drogues. Mas não gosto que te drogues.” No final de tudo, solucei no seu colo porque tinha acabado de pontapear-lhe o coração. Como na réplica de um terramoto, o meu peito foi demolido logo de seguida e com mais força. Ela disse: “Não tens culpa de não gostar de mim”: E alguma coisa se afundou na falha tectónica que tenho cá dentro.

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No verão de 2008, Luiz de Camões tornou-se no artista convidado da minha vida. O amigo das férias grandes. O cúmplice da malandragem. O estranho que se senta ao nosso lado no avião e, ao reparar que choramos com a cara colada na janela, pergunta: “Está tudo bem?” Luiz de Camões era, tenho agora a certeza, o tipo que nos manda pôr o cinto de segurança enquanto despedaça o limite de velocidade numa noite de diluvio. Se o carro capotasse, olharia para mim no lugar do sobrevivente e perguntaria: “Está tudo bem?”

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Fosse qual fosse o motivo (versão 1,2 ou 3 da minha vida), a verdade é que eu estava em Lisboa e fazia muito calor e Luiz de Camões, que tinha a chave da minha casa, abriu as portadas do quarto e começou a apanhar roupa suja do soalho: “Javardolas, vai dar cabo dessa tesão de mijo e bute nessa, que daqui a nada anoitece. Lua cheia, brother from another mother. Elas ficam doidas como lagartixas a trepar paredes.”

E esta era a minha vida no regresso a Lisboa. Meter conversa com desconhecidas sem medo que o carro fugisse na primeira curva, fazer uma desintoxicação de culpa, dizer tudo como os malucos. Ou, nas sebosas palavras de Sancho Pança, “Curtir bués”. Se esta parte da minha existência fosse um anúncio de tinta para o cabelo, o cartaz diria: “Seja você mesmo”.

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Numa das últimas noites de Agosto, viajámos pela cidade no carro pelintra mas descapotável de Luiz de Camões. Parámos em bares com vista sobre o Tejo onde nos ofereciam bebidas e o meu parceiro distribuía bolsas de cocaína a troco de notas de cinquenta. Estivemos em caves com seguranças da noite que comiam frango assado. Um deles, Balalaica, traficante de esteróides, praticante de jiu-jitsu e levantador de pesos, disse: “Camões, a minha dama está na casa da Susy, passa lá e deixa-lhe um presente dos teus. Põe na minha conta.”

No carro, o meu parceiro explicou-me que Balalaica gostaria de ser preto, que Susy (ex-stripper) era mulher de um empresário com negócios manhosos em Luanda e que a namorada de Balalaica era casada com um deputado. Contava-se que Balalaica costumava comê-la na presença do representante da nação.

Sancho Pança, campeão dos lugares comuns, dizia: “As desculpas não se pedem, evitam-se.” E, não fosse o meu fascínio pela impunidade recente da vida, talvez pudesse ter evitado tudo: aquela primeira linha de coca na mesa da sala, a proposta para os shots de tequila, a erecção imediata assim que a amante de Balalaica tocou a minha coxa com o indicador, pontuando na minha libido a história que contava. “Queres ir à casa de banho dar um tiro?” Ponto de interrogação. “Não”. Ponto final. The end. Mas em vez disso, respondi:

“Ya.”

Madalena, olhos azuis e pele clara. Cabelo quase negro. Caminhante dos tapetes vermelhos. Os sapatos como se tivessem decotes. Franja de pervertida. Mulher descarada: “Só como gajas que sejam muito boas.” Eu e Madalena a falar de Marrocos numa casa de banho de discoteca. Eu e Madalena num táxi com as janelas abertas por causa do enjoo. Eu e Madalena nus, na minha sala, a beber da garrafa, incapazes de ir comprar gelo. Eu e Madalena dispostos a incendiar tudo nessa noite porque sabíamos do nosso prazo de validade.

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Se tivesse havido uma investigação policial com direito a testes médicos, podiam ter a certeza científica que não aconteceu mais nada que beijos trapalhões e alguma actividade na zona dos mamilos. Os nossos corpos estavam demasiado intoxicados para desempenhar qualquer tarefa que não fosse olhar para o tecto a partir da cama. Madalena quis o meu peito para dormir. E o meu braço, pressionado pelo seu pescoço, ficou sem sangue, dormente, fantasma. Podia ouvir o meu coração a galopar por causa da droga – numa veia do bícepe, no eco interior do colchão, num anfiteatro vazio. Se consegui dormir, não me lembro. Não me mexi uma só vez. Não saberia onde ir.

O telemóvel começou a tocar por volta da hora de almoço, uma e outra vez, agravando as dores da ressaca. O som polifónico e repetitivo chegava da sala com a mesma insistência com que a minha mãe aparecia no quarto dos filhos, batendo as palmas das mãos e oferecendo-nos ao frio matinal em sacrifício: um só movimento, rápido, doloroso, o edredon a descolar-se dos nossos corpos como se fosse uma tira de cera.

Madalena: “Deve ser a minha empregada por causa dos miúdos”. Levantou-se e trouxe o telemóvel para a cama. Embrulhou-se em mim, os seus dedos brincando com os pêlos do meu peito. Eu podia ouvir a voz de um dos seus filhos: “Mãe, onde é que estão os patins em linha?” Madalena respondeu, desligou e beijou-me na boca: “Vou dormir mais uma hora, está bem?” E o meu braço preparou-se para deixar de existir.

“Há coisas que... Não sei mas... Se calhar é melhor que...”, disse eu, algum tempo mais tarde. Madalena já dormia.

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Luiz de Camões estava ao lado da minha cama, mais senhor do momento que Zidane na marca do penalti, as chaves suplentes de minha casa nos seus dedos. Madalena não acordou logo. Olhei para a cara dela. Tinha a maquilhagem cheia de pequenas rachas como num quadro antigo. Sentei-me no colchão, os pés a tocar no soalho. Havia muita luz sobre a minha cama, o sol a pique entrava pelas clarabóias e o meu pescoço começara a transpirar. Os sinos da igreja da Graça voaram sobre o Martim Moniz e assinalaram as três horas da tarde dentro do meu quarto.

Luiz de Camões abriu as janelas e começou a declamar: “Não ouves a campainha?” Esticou-me a mão: “Desculpa mas tive de abrir a porta. O Balalaica vem a caminho para te fazer a folha”.

Porque não tinha resposta para os danos físicos que me causaria um segurança de discoteca, tentei resolver outro enigma. Como é que o Balalaica sabia que Madalena estava em minha casa?

Pus-me de pé e Luiz de Camões percebeu o pânico da traição na minha cara (Et tu, poeta?) Disse-me, encostando o dedo no meu coração: “Puto, nem penses nisso. Foi o meu primo. O meu irmão.”

Sancho Pança, o xibo, o merdas que tinha ciúmes das minhas conversas literárias com Luiz de Camões. O mesquinho que cortava o cabelo num indiano para ser mais barato: “Filho da puta do monhé, fodeu-me o capachinho”, e apontava para uma foto do Cristiano Ronaldo, rasgada de uma revista: “Tá igual, esta merda? Tá igual, por acaso?”. Sancho Pança, o alarve, que ridicularizava quem pedia uma meia dose. Sancho Pança, o picha mole, que, apesar de dormir apenas com putas, dizia que uma mulher só entrava nos seus contactos de telemóvel se engulisse. Sancho Pança, cuja alcunha tinha nascido da ignorância: Nélson Manuel viu uns desenhos animados sobre D. Quixote e confundiu a personagem espanhola com o poeta português. “Foram as barbas e aquelas roupas”, terá dito aos amigos. Nélson Manuel já tinha obrigado toda a gente no bairro a chamar-lhe Sancho Pança, companheiro fiel de Luiz de Camões, quando alguém lhe explicou a impossibilidade da dupla.

No quarto, olhei para os telhados, uma hipótese de desaparecimento.

“Não penses em fugir. O gajo encontra-te. Propus-lhe ser eu a tratar de ti. Dei-lhe a minha palavra. É a única maneira de te safares. Sinto imenso, tenho mesmo de te fazer umas mossas.”

Eu disse: “Está bem, vamos a isso”, com o mesmo tom motivado e optimista que usaria antes de entrar num campo de futebol.

Luiz de Camões ia levar Madalena do meu apartamento. Ela começou a vestir-se, parecendo-se com um manequim que passara demasiado tempo na montra, desbotada, o cabelo como se fosse uma peruca depois do sono. Madalena transformou-se de novo em bicho humano assim que pegou na aliança, em cima da mesa de cabeceira, e a enfiou no dedo. Despediu-se de mim com um beijo no pescoço, interrompido pelo toque do telemóvel, o chamamento da prole: “Mãe, os patins não estão na garagem”.

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Luiz de Camões regressou ao meu quarto com toalhas, luvas de látex e sacos de gelo. Pensei que, depois de sair do hospital, queria estar na Praça do Rossio, num dia de calor, quando a brisa transporta a água das fontes, como se fosse chuva, para a cara dos visitantes estrangeiros e dos carteiristas. Para a minha cara. Este, afinal, também é o meu lugar.

Deste vez, ao contrário do que acontecera na fantasiosa corrida de carros, eu ia ouvir o barulho do acidente.

Seja lá qual for a matéria que nos une uns aos outros, essa matéria estava ali, no meu quarto e nas mãos salvadoras de Luiz de Camões. Seja lá o que for que nos faz seguir em frente depois das colisões, essa coisa também estava ali.

Eu disse: “Não podemos é ficar parados”. Disse ainda, guardando as mãos atrás das costas: “Tanto me ajuda agora o teu engenho e a tua arte”.

“É o mínimo”, Luiz de Camões tirou os anéis, calçou as luvas: “Desculpa mas vou ter de dar-te a sério. Paz, irmão.”

E antes do primeiro impacto, pedi apenas:

“Posso ligar aos meus pais para me irem ver ao hospital?”

Luiz de Camões, fornecedor da felicidade e ser magnânimo, começou a arregaçar as mangas da camisa e disse:

“Acho que deves.”