segunda-feira, 22 de dezembro de 2008
Brincar com o fogo
Juntem-se homens em redor de um carro, de um leitor de dvd, de uma lareira, e mesmo aqueles que não precisam de afirmar as suas qualidades através de uma caixa de ferramentas adquirem a atitude de quem dispensa um livro de instruções para montar um foguetão espacial. Num grupo de homens que tem de enfrentar uma actividade (seja ela montar uma mesa do Ikea ou cortar a perna gangrenada a um náufrago) haverá sempre quem se afirme como o macaco mais valente e conhecedor. No grupo, haverá sempre um homem que julga saber mudar pneus com a destreza de um mecânico de Fórmula 1. Haverá sempre palpites, e a demonstração de técnicas que os outros desconhecem, e um certo brilho de glória no final: o pódio dos ganhadores masculinos das pequenas tarefas.
Ontem, eu fui esse macaco que dá um passo em frente. Empenhado em acender uma lareira (diga-se, para atenuar o meu grau de estupidez, que não tinha todos os elementos necessários para despoletar um bonito fogo), calquei o meu polegar da mão direita num tronco em brasa. Resultado: minutos com o pequeno polegar debaixo de água gelada, uma pomada espessa e branca que desapareceu rapidamente, devorada pela epiderme em efervescência, e um claro atrasado na evolução humana: percebo agora a importância de ter um polegar oponível. Desde ontem que sou mais estúpido e descartável. Sem o polegar da mão direita, esqueçam tarefas complicadas e mesmo as simples, como agarrar na tigela de água do cão ou abrir a caixa de cereais. Qualquer médico diria que o onanismo está fora de questão em casos de tamanha gravidade. Percebo agora porque é melhor ter polegares em vez de barbatanas ou cascos ou barrigas deslizantes como as serpentes.
Neste Natal, serei esse animal sem polegares oponíveis, incapaz de salvar quem se engasgue com o brinde do bolo rei.
Este Natal serei um bicho apetecidamente inútil.
domingo, 21 de dezembro de 2008
Um Natal Americano
(Texto publicado no Semanário Económico de 20 de Dezembro)
Um dos melhores e mais clarividentes momentos natalícios aconteceu-me nos Estados Unidos, no Dia de Acção de Graças. Mas antes disso: Linda tinha 15 anos, era americana, vivia no Portugal pós 25 de Abril, e apaixonou-se por um profissional do toureio a cavalo. Nas fotos que ela me mostrou, ele era um adulto amigo dos seus pais, moreno na pose, impecável no traje, com um ofício de risco, enfim, a escolha perfeita para a imaginação romântica de uma adolescente num país estrangeiro. Conheci Linda quando ela tinha 40 anos, em Nova Iorque, uma semana antes do Dia de Acção de Graças, através da sua sobrinha. Ela esperava encontrar alguém que compreendesse a sua história: 25 anos após a sua vida em Portugal, tinha regressado a Lisboa de férias, e acabou por concretizar essa fantasia de amor toureiro. No bar em que a conheci, Linda contou ainda que iria separar-se do marido com quem tinha três filhos. Depois dos primeiros copos, e de mostrar como tinha os abdominais definidos, levantando a camisa e dizendo “Toca-lhes”, convidou-me para passar o Dia de Acção de Graças em sua casa. Comecei então a perceber porque razão as festas familiares costumam produzir excelente dramaturgia, entretenimento e lições de vida – seja Os Maias ou os Sopranos.
Linda morava em Long Island, num bairro de casas sem muros, carrinhas familiares e muito sentido de comunidade. O almoço tinha a participação da família de Linda – marido, três filhos, a sobrinha, e a mãe de Linda. O marido tentou encontrar-me um jogo de futebol europeu nos canais de desporto. Esforcei-me para lançar uma bola de beisebol para as luvas dos filhos tão loiros e penteados como a artificial harmonia familiar. Tive de fumar no pátio das traseiras. Mostraram-me a casa forrada a fotografias da família tiradas em estúdio. Tinham um ginásio na cave. Comi, sozinho, metade de uma tarte de abóbora. Bebi mais de metade de uma garrafa de vinho. Na cozinha, Linda queixou-se do marido – “É um alcoólico” – e falou-me do toureiro. O almoço começou com a tensão calada de um duelo. Depois, Linda encontrou motivos para castigar verbalmente o marido, fosse por causa de uma opinião política, fosse por causa do tempo que demorava a passar-lhe o puré de batata. Tratou-se de uma tarde de comédia, cheia de lugares comuns, momentos de vergonha alheia, e espírito natalício – havia uma família em colapso, lareira, perú e neve lá fora.
Nos Estados Unidos, civilização produtora do Natal contemporâneo, a temporada das festas começa no Dia de Acção de Graças, na última quinta-feira de Novembro. Este ano a época festiva estreou-se com algumas vítimas do Black Day, dia de saldos que se segue ao Dia de Acção de Graças: três clientes morreram esmagados pela excitação comercial da multidão.
Segundo a Mind, uma associação para os cuidados mentais, um em cada cinco americanos sofre de stress durante a temporada festiva. As linhas telefónicas de ajuda, como a Samaritans, registam um aumento de dez por cento nas chamadas. Nas palavras da porta-voz da Mind: “Muitas pessoas têm dificuldade em lidar com as exigências do Natal. Descobrimos que o stress causado pelo Natal é tão comum como aquele provocado por problemas de relações amorosas e familiares.” Nos Estados Unidos ou em Portugal, as famílias têm as mesmas disfunções, há a mesma frustração furiosa enquanto esperamos na fila para embrulhar um Nodi, as mesmas ressacas em forma de buraco negro após os jantares da empresa, a mesma pressão para celebrarmos alguma coisa que se imita a si mesma todos os anos. Somos os ratinhos a andar dentro da roda. Não vamos a nenhum lado que já não conhecêssemos.
Como explica a porta-voz da Samaritans: “O Natal enfatiza quão infelizes andam as pessoas, o facto de que podem não ter um companheiro ou muitos amigos, enquanto que todas as outras pessoas parecem estar a divertir-se”. Ou seja, apesar da boa vontade divina das figurinhas do presépio, a quadra natalícia, esse momento anual para a paz e para o balanço das actividades, pode ter dolorosos efeitos secundários: porque sentimos a mesma obrigação que sente uma criança a quem forçam as aulas de catequese e a brancura da primeira comunhão. Para suportar essa escravatura sazonal, optamos pela auto-indulgência: comemos mais, bebemos mais, vimos mais televisão. Conheço primos que fumam charros antes da consoada. Conheço gente que sobrevoa o Natal a vapores de whisky.
Nos programas televisivos da manhã, nas revistas, nos programas televisivos da tarde, oferecem-nos conselhos para enfrentar o Natal, uma forma de lidar com o sistema a partir do sistema: compre os presentes antes de abrir a temporada de caça nos centros comerciais, faça exercícios relaxantes de respiração, controle o álcool e os cigarros. Não chega.
Quando o escritor norte-americano Tom Wolfe disse, “A realidade é um bom sítio para se visitar, mas eu não viveria lá”, estava seguramente a referir-se ao período do Natal e ao espectáculo tragicómico, no Dia de Acção de Graças, em casa de Linda. Só alguns anos mais tarde percebi porque me divertira tanto com uma intriga familiar em Long Island: aquela não era a minha festa, nem a minha família, nem as minhas memórias – aquela era a realidade que, tal como Tom Wolfe afirmou, eu podia visitar sem ter de montar acampamento. Linda, Long Island, tarte de abóbora: tudo era uma novidade alegre. O ratinho tinha saído da roda.
Com a excepção de um Natal, em reportagem, passado num campo de desalojados na América do Sul (outra vez o ratinho a sair da roda), passei todas as consoadas com a minha família, e com o alegado stress de desempenhar um papel esperado (tão esperado como o bacalhau) e de cumprir com as obrigações natalícias. Percebo agora muito melhor a família de uma ex-namorada – os pais trabalhavam na TAP – que viajava para outra latitude no planeta antes do dia 24 de Dezembro. Percebo agora a alegria tranquila da escritora Patrícia Reis que, no ano passado, pegou no marido e nos filhos e passou as festividades de Inverno no Brasil. Este ano, quando já tinha decidido não fazer compras de Natal, entrei num centro comercial e, como fizera no jantar de Linda, pus-me na posição de espectador dos ratinhos compradores e da sua agitação hooligan. Confirma-se: sem obrigação há muito mais prazer.
Linda não ficou com o toureiro. Nem com o marido. Mas fez uma operação de implantes de silicone e deixou de ser dona de casa para se tornar em gerente de um restaurante. Linda: a celebração norte-americana do indíviduo, a materialização da Declaração de Independência – “(Todos os homens e mulheres têm) determinados direitos inalianáveis, entre eles a Vida, a Liberdade, e a procura da Felicidade” – além do divórcio e da cirurgia plástica.
Neste período obamístico de mudança de hábitos em que suspeitamos ter, de facto, o direito a ser felizes, o Natal tradicional deveria tornar-se bissexto. De quatro em quatro anos o ratinho poria o barrete e regressaria aos prazeres seguros da tradição (as conversas sobre a inutilidade das frutas critalizadas, o Sozinho em Casa na televisão, os beijos das familiares idosas como estalinhos de Carnaval). Contudo, nos restantes anos, e a conselho de Tom Wolfe, visitaríamos outra realidade a fim de criar um Natal com as qualidades temporárias da ficção – na casa de Linda, num karaoke de Tóquio, numa pensão de backpackers no Sri Lanka, numa cabana no Gerês, numa missão em Moçambique, na cama com a namorada ou a amante, na certeza que, em vez de esperarmos o resgate de um toureiro na reforma, o natal é como uma pessoa quiser e não quando uma pessoa quiser.
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quinta-feira, 18 de dezembro de 2008
As time goes by
Voltar a viver no Estoril (onde cresci), dez anos depois da emancipação pós adolescente, tem-me levado a escrever sobre a infância. Regresso a este microcosmos da Linha - porsches e jaguares, autismo social, a maravilha da paisagem marítima, mulheres bonitas - como se fosse um viajante no tempo. Não se trata de viajar para o passado mas para o futuro. Desde que cheguei, soube que morreram pessoas com quem bebia copos. Outros limitaram-se a engordar. Uma viagem para o futuro porque nunca imaginei que todas estas pessoas pudessem ser adultas, ter filhos, montar empresas, pagar escolas, ou que pudessem sofrer desgostos e falhanços que lhes encravam o coração.
Quando somos pequenos, os mais velhos são sempre muito velhos. Para um aluno da quarta classe, um tipo do 12º ano tem a maturidade do Gore Vidal, a pujança física dos halterofilistas búlgaros e a agressividade caneleira do Vinnie Jones. Sim, as pessoas com quem jogava futebol têm agora cabelos brancos, mas, neste lugar, parece que pouco mudou, que o tempo se quer quase parado - uma espécie de reino desencantado com demasiadas palmeiras, ansiedade social e pratas da família. Estoril: uma bolha dourada que nunca rebenta.
Não sei se Bibi parou no tempo. Sei que, apesar de alguns cabelos brancos, tem ainda a mesma postura rufia de soco na boca e peito feito. Passei por ele há uns dias. Esperava o filho ou a filha na porta de um colégio onde se usa farda. Conheci Bibi no meu primeiro dia de aulas noutro colégio - católico, sem necessidade de farda, mas com muita disciplina e mais de mil portadores masculinos de testosterona. No primeiro intervalo com os novos colegas - ninguém conhecia ninguém e começámos a tratar-nos pelos números que nos tinham atribuído -, o gordo da turma recebeu a alcunha de Piranha, como a personagem da série espanhola 'Verão Azul'. Piranha é hoje um dos meus melhores amigos. Deixou de comer pizzas no recreio do almoço, de ser gordo, e viveu em Florença. Agora é advogado em Madrid.
Piranha e Bibi encontraram-se num campo de futebol pelado, nesse primeiro dia de escola. Bibi, um ano mais velho, liderava a equipa de futebol da sua turma. Nós, os do 1ºD, enfrentávamos os grandalhões caceteiros do 2ºA num jogo improvisado, com calças de ganga a molhar-se na lama e nenhum árbitro. Penalti de Bibi sobre Piranha. Gritos de crianças prestes a andar ao estalo. Bibi lança o primeiro murro. Ainda hoje se discute quem ganhou o duelo. Eu sou da opinião que, apesar de ter acertado mais golpes no adversário, Bibi perdeu o combate - a ferocidade de Piranha e o facto de ser mais novo dar-lhe-iam uma vitória aos pontos.
Perdemos o jogo. Resultado: 1ºD -1. 2ºA - 2.
Dizem-me que Bibi tirou um curso de treinador. Vou ver Piranha este Natal. São os dois adultos. E, no entanto, passando por Bibi diante da escola dos seus filhos, não pude deixar de pensar que, se os sentasse agora aos dois na mesma mesa, estariam de imediato naquele campo pelado. Talvez falassem do mercado financeiro, e de um terreno não muito caro perto da Comporta, e de férias no sul do Brasil. Talvez fossem adultos. Talvez gostassem de conversar ao balanço do whisky como sobremesa. Mas começariam sempre nesse campo de futebol e com os punhos engatados. Começariam sempre nessa luta inicial. Orwell: "Aquele que controla o passado, controla o futuro." Estoril: onde o passado continua a estrangular o futuro.
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terça-feira, 16 de dezembro de 2008
sexta-feira, 12 de dezembro de 2008
Saturday Nights & Sunday Mornings
João, uma vez que estamos numa semana de bandas sonoras:
Tu sempre foste mais musical que eu - em tempos tocaste contra-baixo, conheces grupos de que jamais ouvi falar, levavas discos para os nossos turnos de trabalho num restaurante de Nova Iorque. Não és um snob da música - és, no melhor sentido do termo, um sentimental da música.
Num desses turnos de almoço, quando não havia ninguém na sala para servir, lembro-me de estarmos os dois sentados ao balcão e de me falares da história por trás da canção Mr. Jones dos Counting Crows. Disseste que se tratava de dois amigos a beber, num bar, e a olhar para raparigas, essa actividade sublime e entretida, para passar o tempo, que praticámos tantas noites naquela cidade, e em tantas outras cidades. Felizmente, havia sempre um momento em que a contemplação não era suficiente e alguma coisa tinha de acontecer. Mas isso são outras histórias.
Hoje encontrei uma versão de Mr. Jones em que o vocalista, Adam Duritz, explica o sentido da letra (no, Mr. Jones is not about his cock), e afinal tinhas razão. Tinhas razão duas vezes, porque nós éramos, e de alguma maneira ainda somos, aquela música - da mesma forma que todos os seres humanos imaginam que as canções são relatos das suas próprias vidas. Mas é verdade, aquela música foi escrita para nós: em 2002, em Nova Iorque, nós éramos os rapazes que não tinham dinheiro, que queriam escrever romances, que passavam muito tempo em bares, que olhavam para raparigas, que gostariam de despi-las, e que cruzavam a vida como comboios em festa, sempre no limite do descarrilamento. Como diz Duritz, aqui, 'It's really a song about all the dreams and all the things that make you want to go into... you know, do whatever it is that... like... seizes your heart, whether it's being a rock star or being a doctor, or whatever it is, and those things run from like all the stuff I have pent-up inside me to I want to meet girls (...) This is a song about my dreams'. E eu acrescento: This is a song about our dreams.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2008
El comandante revolucionário Juan Jardin
Diz Alberto João Jardim que, caso a república portuguesa não trate com respeito a Madeira, terá de lidar com as consequências. Ele demite-se? Invade o Colombo vestido de Pai Natal? Diz que quer que o continente se foda? Dirigentes de futebol, treinadores, políticos, autarcas, presidentes de governos regionais - todos falam com mistério, como se detivessem segredos, informações essenciais para endireitar a nação e mandar pulhas para a cadeia. Trata-se de gente de meias palavras, protagonistas do 'agarrem-me que eu vou-me a ele' e do 'se eu falassse, ai se eu falasse...'. Como dizia uma amiga, embora sobre o processo de sedução entre sexos opostos: 'Normalmente, os que parecem misteriosos são apenas estúpidos.'
Uma natureza viva de Lisboa ou O meu dia de trabalho
Na Cova da Moura eles olhavam para nós: éramos demasiado brancos na cara e nas roupas, muito mais brancos que os polícias que lhes arrancam a carapinha com alicates nos interrogatórios. Brancos que, por mais mundo corrido e noites de bandidagem, têm sempre a fisionomia dos alunos das escolas privadas. Eles olhavam e acenavam a cabeça, como se dissessem 'tá-se bem ao anfitrião que nos abria caminho. Na entrada dos cafés grupos de rapazes e raparigas falavam crioulo, fatos de treino J.Lo, chapéus 50 Cent, a tarde passada de mãos no telemóvel. Ruas estreitas. Caminhar por ali é como montar um cubo de Rubik. Num beco jazia um carro deficiente, comido até ao pára-brisas. Os telheiros de zinco reflectiram uma fresta de sol quando, por um momento, se interrompeu o dia de chuva. Centenas de antenas parabólicas, em posições improváveis, eram como insectos a escavar as paredes das casas e barracas. Uma praga de gafanhotos hertezianos. O maravilhoso primeiro mundo do entretenimento.
Mr. J levou-nos por ruas com o desacerto geométrico das favelas, paredes de tijolo como legos mal montados, escadas e contra-escadas, uma passagem, viadutos miniatura, mais uma porta de alumínio, o cabeleireiro africano com o rádio a tocar por entre os secadores, e por fim a sala dos mártires da Buraca. Em todas as paredes havia fotos dos que morreram com balas - da polícia, de inimigos de outros bairros, e as que saíram de pistolas nunca identificadas. A pouca luz que entrava pela janela tinha de cruzar o tecido das bandeiras com Bob Marley e Peter Tosh. Então, Mr. J mandou comprar duas litronas de cerveja. E depois falámos.
Na despedida, desci primeiro as escadas. Os outros ainda ficaram lá em cima um momento mais. E eu espreitei para os pátios, e portões, e corredores: ao fundo estava a rua principal. O horizonte, ainda mais ao fundo, eram os prédios mal coloridos de um bairro de empregadas de limpeza e de contínuos de escola secundária. Na rua principal passavam pessoas. Nenhum branco. Pensei como se fugiria dali em caso de rusga policial, se não fosse branco e se tivesse motivos por que fugir: daquele muro saltaria para aquele telhado, escalava para a varanda, desviava-me da chaminé, e desaparecia atrás daquela casa oblíqua. No mundo real, uma voz de mulher cantava. Ela estava num pátio, com cabelos brancos a começarem nas têmporas até serem impedidos pela negritude da carapinha. Varria o chão e cantava em crioulo. Ela, como eu, estava a fantasiar. Talvez com o filho emigrado em Boston, que por fim vai receber o green card; com o neto que começou a passar branca no Campo Grande; com a irmã que lhe pintou as unhas das mãos, pela primeira vez, num fim de tarde em São Vicente.
Descobriu-me a espreitar como se apanhasse um susto. Eu disse-lhe boa tarde, ela sorriu, meteu a mão no peito, depois na vassoura, disse boa tarde, e regressou ao trabalho doméstico com banda sonora. Eu fui-me embora. Ela ficou.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2008
Em tratamento
Hoje percebi que tinha escrito, em pouco tempo, dois textos com referências ao verão de 1984. E, em ambos os casos, trata-se de histórias de crescimento: uma passagem do estado sexual dormente ao estado sexual activo, ou seja, a curiosidade do cérebro e do corpo das crianças.
Ontem escrevi sobre Cristina e os seus beijos. Há umas semanas escrevi sobre a minha estreia na pornografia (apenas como utilizador) num artigo do jornal do Lux.
Um terapeuta talvez pudesse encontrar uma estrutura por de trás desta sexualidade articulada em histórias. E sobre a coincidência (ou não) destes episódios terem sido produzidos com poucas semanas de diferença, o terapeuta teria algo a mostrar-me sobre o funcionamento da minha cabeça, e sobre a forma como lido com as emoções e o sexo oposto. Mais ainda se tivermos em conta que estas histórias se passaram na infância. Eu seria um paciente divertido, garanto.
Mas, embora me apeteça, o meu orçamento não chega neste momento para terapia. Sem a ajuda de um profissional da arquitectura da felicidade em sessões de divã, resta-me ir dando ordem narrativa a tudo aquilo que vivi e ainda vivo. Fui feliz com os beijos da Cristina. Fui feliz com a descoberta da pornografia. Escrever faz-me bem, por isso sou feliz agora, no preciso momento que que pressiono esta tecla com um .
segunda-feira, 8 de dezembro de 2008
Sobre bigodes e beijos na boca
Em retrospectiva penso se aquela primeira vez que peguei nas lâminas de barbear, na casa de banho dos meus avós, e estiquei o lábio de cima como um camelo diante de um balde de água, a fim de avaliar os quase invisíveis pêlos do meu bigode, terá sido uma simples curiosidade infantil, um desejo de imitar o poder dos machos alfa da família (os meus tios e o meu avô gritavam como chimpanzés napolitanos) ou de copiar o meu ídolo do verão de 1984.
Os adultos impunham o recolher obrigatório da sesta após o almoço. Diziam-nos, com tom de professor de religião e moral, que as crianças tinham de dormir porque era assim e mais nada, quando no fundo apenas queriam silêncio para digerir a sua própria sonolência e a melancia do almoço em quartos onde rodavam ventoinhas.
E esse era o momento para as minhas aventuras: ouvir, com auscultadores nas orelhas, os discos de heavy metal do meu tio mais novo, subir até ao terraço sem fazer tilintar os tubinhos metálicos pendurados na porta, esperar que a Cristina (mais velha quatro anos) me viesse beijar com língua na parte mais escura das escadas, onde os degraus de mármore me arrefeciam as virilhas, e as palmas das mãos se imobilizavam ao lado das pernas. Faz o que quiseres de mim, Cristina. Eu sabia que era apenas o teu campo de treinos; o que ensaiavas comigo ias depois mostrar aos rapazes da tua idade (o meu irmão, por exemplo).
Mas a minha tábua de mandamentos, aos sete anos, não me permitia fazer juízos sobre ti (hoje ainda menos), embora não me falasses quando estávamos perto dos rapazes que querias de facto beijar, e mesmo que eu convivesse diariamente com a minha avó, que classificava todas as namoradas dos meus tios como 'vadias', e que gostava de rezar um pai nosso comigo antes de ir para a cama. Tu, Cristina, não tinhas maldade, nem doenças venéreas, nem poderias ser excomungada pelo Nosso Senhor em pessoa. Tu eras o bem, eras o sacramento da hora da sesta, eras os beijos na boca, eras a minha respiração acertando passo com a tua, primeiro ansiosa, depois húmida e em desaceleração; e quando ias embora, após ensaiares comigo movimentos de língua e maneiras de evitar o choque de narizes, eu também sentia a pele húmida e o batimento cardíaco a perder velocidade, como se fosse um animal no fim da fuga que lhe acabou de salvar a vida.
Não tinha ciúmes. Sentia-me grato por, em segredo, usares a minha disponibilidade. Estávamos ambos a fazer o bem. Mas depois deixaste de aparecer nas escadas, e começou o Europeu de 1984 e, além disso, a tua família revelou-se demasiado vanguardista, mesmo para o meu liberalismo infantil. Soube que tu e o teu irmão tinham o hábito de mostrar pipis e pilinhas um ao outro. E numa tarde em que ia brincar com o teu irmão, ele apareceu-me nu, dizendo que estava com outro amigo, também nu, a fazer ginástica no quarto. Lembro-me de ter querido dizer 'Mas que merda é esta, não me digas que andaste a tomar os comprimidos do teu pai? Já ninguém se limita a andar de bicicleta?', embora o meu vocabulário de aluno de segunda classe não me permitisse mais que: 'Não, vou antes para casa ver desenhos animados.'
Cristina começou então a namorar com um miúdo que já usava gel e ajudava os pais na papelaria da família. O irmão de Cristina não escolheu a homossexualidade - quer dizer, pelo menos oficialmente, porque sei que se casou muitos anos mais tarde.
Nesse verão, rapei o meu bigode pela primeira vez, o que espantou toda a família e levou o meu irmão a sentencear, 'És mesmo totó, puto, agora vai crescer com mais força. Vais parecer o Chalana', sem saber que esse era o meu objectivo: quando Cristina deixou de precisar de um cúmplice durante a hora da sesta, eu agarrei-me ao futebol como se me agarrasse ao bar. Nesse verão do Europeu de 84, queria ter os caracóis do Fernando Chalana, queria a sua ferocidade de enguia a escorregar por entre os defesas, queria aquele desprendimento com que parecia jogar, sem se importar com mais nada; eu queria que a Cristina me visse no terraço, a rematar contra o muro, e pensasse que eu também não me importava com nada; queria vento, um pôr do sol, música de rádio, e cabelo comprido levantado pela minha velocidade no terreno de jogo; queria a bola sempre colada no pé esquerdo, como Chalana (embora eu fosse destro); queria que não fosses capaz de ignorar a excelência das minhas habilidades.
Não era amor, Cristina, era despeito infantil com prazo de validade. Com 8 anos, apenas queria que, diante do meu bigode e da minha destreza de Fernando Chalana, percebesses o que perderias no que restava daquele verão. Juro que não te culpo de, ainda hoje, quase poder acender um fósforo na minha barba de adulto. Não te culpo de nada. E quando recapitulo a forma como me encostavas à parede, me dizias para ficar quieto, e me comandavas com a tua boca, percebo que me estavas a dizer que é muito melhor o pecado original do que a segurança aborrecida do caminho dos céus.
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domingo, 7 de dezembro de 2008
Em madrid também chove
Não tenho nenhum ritual para ler jornais. Não começo pela última página, muito menos me rebenta uma veia na cabeça caso alguém ponha as mãos na revista de domingo antes de mim. Não me importo de ler jornais amachucados nem suplementos da semana anterior. Sigo apenas a lógica convencional de começar pela primeira página, um lugar para as melhores histórias, embora se tenha tornado, tantas vezes, numa espécie de híbrido: uma mistura de produto de hipermercado em promoção com vouyeurismo de porteira no parapeito da janela.
Mas há ainda muitas boas histórias. Como aquelas que contam as crónicas de Ferreira Fernandes, no Diário de Notícias; ou as investigações de Christopher Hitchens na Vanity Fair; ou as narrativas desportivas de Santiago Segurola, que tem os olhos apurados de um atirador furtivo e a habilidade narrativa de um romancista policial. Por causa de Segurola, durante o Mundial de 2006, interrompi a lógica de começar um jornal pelo princípio. Todas as manhãs, durante o torneio, numa pastelaria madrilena onde as empregadas sul americanas atiravam croissants para o balcão como se dessem chapadas nos clientes, precipitei-me para a página de Santiago Segurola, e ficava a gostar mais de futebol e de jornalismo.
Tal como aconteceu com Segurola, descobri Enric González nas páginas do El País, um dos melhores jornais que conheço - o El País abre com a secção de internacional, assumiu-se há dois anos como um periódico global, tem correspondentes em todo o lado, conta histórias, não é apenas um espelho passivo do nosso tempo, e procura comprendê-lo e ser tão arriscado como ele. Quando cheguei a Madrid, Enric González tinha deixado de ser o correspondente em Nova Iorque, mudando-se para Roma. Comecei a ler os seus textos sobre Itália, e a suas crónicas sobre a Liga Italiana de Futebol, nas quais explicava esse país melhor do que explicam os relatórios da CIA.
Numa tarde em que a chuva de Madrid se pegava ao rosto como película aderente de cozinha, fui-me proteger na atmosfera de alcatifa e aquecimento central da Fnac. Entre os outros náufragos de domingo, que se sentavam no chão, tirando cachecóis e casacos, abrindo livros e enfiando auscultadores na orelhas, pus-me a descobrir o Enric González que escrevera sobre Nova Iorque. Li de uma vez esse seu livro, cuja simplicidade do título mostra que o autor é um assertivo redactor da realidade, e um jornalista que percebe que as histórias ajudam a organizar (e a perceber) a tendência fragmentária da vida. No final dessa tarde de má memória meteorológica, acabei de ler 'Histórias de Nueva York'.
Tudo aquilo que eu penso de Enric González acabou por ser ele a dizê-lo este domingo. Em 'El problema de la realidad', fala de como é importante continuar a escrever histórias sobre a vida real, e a chamar-lhes, se assim quisermos, jornalismo.
sábado, 6 de dezembro de 2008
Pensamento do dia (de chuva)
sexta-feira, 5 de dezembro de 2008
Máquina de calcular
Há um certo orgulho burgesso no facto de termos as piores notas em Matemática. Estudar e ter bons resultados ainda é, para alguns, um sinal de falta de masculinidade, de perda de tempo, uma espécie de sarna que só apanha quem lê livros, quem é curioso, ou quem prefere passar o meridiano da escolaridade obrigatória. Numa sala cheia de ignorantes, a vítima dos calduços será sempre o tipo que usa óculos - porque na lógica ignorante dos lugares comuns, os óculos representam excesso de leitura ou interesses além daqueles que são definidos pela programação televisiva e pelos questionários de verão a Cristiano Ronaldo.
Mesmo o diploma universitário tem, por vezes, um brilho parolo, porque é tido, entre muitas famílias, como uma obrigação social e uma garantia de entrada no mercado de emprego. 'Tens de ser doutor'. 'Mas ele até é formado'. 'Quero os cheques e os cartões com o título de Engenheiro '. Uma licenciatura vale tanto no mercado das expectativas sociais como um telemóvel ou um carro ou um plasma. Por cada aluno que abandona o liceu há pelo menos um licenciado segurando um diploma como se guiasse um carro com jantes especiais. Um curso superior passa a ser um lugar de chegada, em vez de um lugar de partida. Cumpridas as expectativas de sermos doutores, podemos voltar a ser estupidamente passivos, com cérebros obesos e corações conformistas.
Que as pessoas queiram ser estúpidas, eu até compreendo. É mais fácil, dá menos trabalho - ser um agente passivo na vida (como um porco na engorda) é como estar bêbedo dentro de uma banheira de água quente: um estado de consciência que o escritor Tom Jones chama de 'aqui e agora' - e eu acrescento: e que tudo o resto se foda.
Mas quando a estupidez cria títulos de jornal como: 'Custo da Casa da Música derrapou 78,2 milhões', dou-me conta que não se trata apenas de um problema de matemática (não se enganaram em 500 mil euros, mas em 78,2 milhões), trata-se de má fé. E em alguns países isso dá prisão.
terça-feira, 2 de dezembro de 2008
Love Story
Hoje lembrei-me de Daniel Pearl, sobre quem já escrevi dois artigos. Por me ter lembrado dele, deixo aqui um desses textos.
Desde que Daniel Pearl entrou numa festa, em Paris, e encontrou Mariane, que a história de ambos ganhou qualidades cinematográficas. Primeiro por causa do amor – um percurso de sedução cheio de detalhes originais – e, quatro anos mais tarde, por causa da política internacional ou, de forma mais simples, por causa da maldade dos homens: um grupo de terroristas islâmicos que interrompeu a ordem natural do amor.
O apartamento da festa onde se conheceram em 1998 tinha janelas para o Palácio do Eliseu. Daniel levava um fato escuro, clássico. Rodeado de pessoas, apreciava mais a forma como Mariane dançava com a mãe, do que a conversa dos seus interlocutores. Sobre esse exercício de observação, Mariane escreveu anos mais tarde: “O seu corpo inclinava-se um pouco para a frente, como se quisesse oferecer-nos alguma coisa, ou talvez apanhar algo que fosse nosso”.
Depois de apresentados – “São os dois jornalistas, deviam conhecer-se” –, encostaram-se a uma parede. Daniel, correspondente do Wall Street Journal (WSJ) para o Médio Oriente, falou sobre as suas reportagens no Irão. Mariane, jornalista da rádio pública francesa, contou-lhe sobre o seu programa dedicado aos imigrantes. Ele sugeriu-lhe uma visita ao Irão, disse que a ajudaria. O entusiasmo do primeiro encontro foi controlado pela moderação de dois adultos profissionais. Mas também porque, no final da festa, Mariane percebeu que Daniel não estava sozinho. Uma alemã loira, designer de roupa interior, pegou no braço do jornalista americano como se delimitasse a sua propriedade.
Duas semanas depois, Mariane recebeu alguns artigos, escritos por Daniel, sobre os imigrantes que trabalham na Arábia Saudita. E pouco tempo depois, o jornalista usou o intervalo entre dois voos, em Paris, para sair do aeroporto e oferecer-lhe um livro – Shah of Shah’s –, sobre as razões da revolução islâmica no Irão. Disse-lhe ainda que pensava alugar uma casa em Teerão. Daniel tanto usava fatos escuros com finas riscas brancas, como se movia num país, o Irão, onde as gravatas tinham sido proíbidas por representaram o imperialismo ocidental. E substituia os convencionais truques de sedução – talvez um jantar, uma sessão de cinema – por livros entregues no tempo que demora uma escala num aeroporto.
No seu livro, A Mighty Heart, (Um coração Poderoso) Mariane escreveu sobre esse encontro: “Pensei, este tipo é maluco, o que é uma pena porque gosto dele (...) Tínhamos alguma coisa em comum. O que era eu ainda não conseguia ver. Mas era forte”.
Mariane regressou de uma viagem a Cuba – tinha um pai holandês e uma mãe cubana –, com histórias para contar. Dirigiu uma carta a Daniel. Escreveu sobre como, em Havana, a confundiam com uma prostituta por ter feições cubanas mas estar acompanhada por estrangeiros, da capacidade dos cubanos para o prazer numa ilha pobre onde o regime é mais importante que as pessoas. No final da carta, disse que gostava de vê-lo outra vez.
Meses depois, Daniel telefonou com a agitação de quem tem de explicar um atraso: a carta de Mariane tinha ficado escondida entre o correio que nunca se lê, as contas, a publicidade. E ele apenas a descobrira ao regressar das suas viagens. Perguntou-lhe quando se poderiam encontrar, mas as agendas de ambos não estavam em sintonia. Um dia, Daniel ligou de Madrid, apanharia o comboio para Paris, chegaria de madrugada para preparar o pequeno-almoço de Mariane.
Desta vez não havia fato escuro. Daniel, o viajante, apareceu às oito da manhã. Tinha um saco de compras, uma mala, a caixa de um bandolim e uma t-shirt que dizia Freddy’s Pizza. Fez ovos e espremeu as laranjas espanholas, vermelhas por dentro. De noite, preparam-lhe uma cama na sala. Ele apareceu com um pijama de riscas. Mariane riu e observou a preserverança de Daniel que tentava encaixar o lençol no sofá cama – “De repente percebi o que me atraía tanto nele: Danny dava tudo o que tinha em tudo o que fazia”. No contrato de casamento, escreveram: “Prometemos descobrir, juntos, novas coisas, lugares, pessoas, e ver a nossa vida como uma obra de literatura.”
O WSJ propôs a Daniel o cargo de chefe da delegação para o Sul da Ásia, com sede na Índia. O casal mudou-se para Bombaim, e quando os aviões americanos começaram a bombardear o Afeganistão, após os atentados de 11 de Setembro, Daniel cobriu a guerra a partir da fronteira com o Paquistão. Regressaria em Dezembro para seguir uma pista sobre a passagem de segredos nucleares paquistaneses para os taliban. Desde que se casaram, que Mariane e Daniel tinham acordado que estariam sempre juntos em reportagem. Ela chegou a Karachi no último dia do ano de 2001, grávida de seis meses. Daniel esperava-a no aeroporto. Ficaram hospedados em casa de Asra Nomani, uma amiga jornalista.
No dia 23 de Janeiro acordaram na mesma cama. Fazia muito calor, Mariane está grávida e constipada, mas Daniel recordou-lhe que a reportagem acabaria nessa tarde, e que no dia seguinte estariam de férias numa praia do Dubai.
Daniel era um jornalista prudente que não acreditava em heroísmos desnecessários. Chegou a escrever um manual de segurança para os seus colegas em situação de guerra. A sua mãe, judia, nasceu no Iraque. Ele aprendeu árabe em Londres. Viajava sempre com o seu violino e bandolim, misturava-se com as pessoas dos países que visitava, tocava com músicos desconhecidos. Daniel adorava o tamanho e as diferenças do mundo. Quando chegava a uma cidade nova, tinha o hábito de entrar numa barbearia tradicional e cortar o cabelo. Recusava ver os conflitos, sobre os quais escrevia, a preto e branco, os maus e os bons. Sobre o problema entre Israel e Palestina, reconhecia que ambos os lados tinham razão, e que ambos os lados cometiam crimes. Escreveu artigos sobre zonas que não costumam ser notícia, sítios miseráveis, mostrava que há mais pessoas e problemas que aqueles que abrem os notíciários Escreveu: “O papel do jornalista não é atribuir prémios de virtude, mas apurar os factos. Ponto final.”
Mas, nos olhos a preto e branco de muitos, Daniel era um jornalista americano, judeu, que vivia na Índia – país que mantém um conflito com o Paquistão desde 1947 por causa de Caxemira – e que tentava investigar uma história com terroristas no Paquistão. Nessa manhã, ele encontrou-se com um alegado discípulo de Giliani, o líder de um grupo radical, e desapareceu.
Daniel e Mariane tinham uma regra – sempre que um deles ia a uma entrevista, o outro deveria ligar a cada hora e meia. Nessa tarde, Daniel não respondeu. Ela ajudou Asra a preparar um jantar para personalidades de Karachi e ligou para o WSJ, para um antigo agente dos serviços secretos paquistaneses (ISI), para os sogros. Jantou, inquieta, e em seguida começou a procurar pistas no computador de Daniel. Encontrou os emails de Bashir, o homem que tinha arranjado a entrevista. Nos dias seguintes, a casa de Asra recebeu agentes do FBI, da polícia paquistanesa, um editor do WSJ. O capitão da polícia local era um homem inteligente, que nunca desistia. Mas não tinha meios. Foi Mariane que lhe arranjou uma impressora e lanternas.
No dia 26 de Janeiro, dezenas de jornais receberam quatro fotografias de Daniel, acorrentado e com uma pistola na cabeça. O texto exigia a libertação dos presos islâmicos em Guantanamo. Nos dias seguintes, um jornal paquistanês publicou, na primeira página, uma foto de Daniel. Mariane pediu para traduzirem o texto: acusavam-mo de ser agente secreto de israelitas e indianos.
Durante cinco semanas, Mariane não desistiu. Deu entrevistas à CNN rogando que soltassem o seu marido (sempre aconselhada pela polícia paquistanesa e o WSJ), conseguiu que muçulmanos influentes pedissem a libertação de Daniel, visitou o ministro do interior paquistanês, que lhe disse: “O que é que o seu marido andava a fazer? Que necessidade tinha de encontrar-se com aquelas pessoas? Isto não é assunto para jornalistas.”
Os polícias paquistaneses fizeram algumas detenções, descobriram de onde foram enviados os emails. A casa onde estava Mariane assemelhava-se a um quartel-general, ela ajudava nas investigações, pressionava políticos. Estavam cada vez mais perto. Mas no dia 21 um de Fevereiro, o capitão entrou em casa de Asra acompanhado do editor do WSJ. Disse: “Desculpe Mariane, não consegui trazer o seu Danny para casa”. Ela gritou: “Deixem-me sozinha”, e entrou no quarto, fechou a porta, gritou mais. Mas depois regressou, recusando a morte de Daniel. Disseram-lhe que era verdade, que havia um vídeo, e ela respondeu que trabalhara em televisão, que sabia como se fabricavam imagens. Garantiram-lhe que não havia dúvidas. Ela insistiu, quis saber porquê. “Daniel foi decapitado”.
Mariane nunca quis ver o vídeo. Nele, o marido, com um fato de treino, tem a cara inchada, o cabelo sujo, é um homem triste mas que ainda não foi vencido. Obrigam-no a dizer: “O meu pai é judeu, a minha mãe é judia, eu sou judeu”, como se ter nascido fosse por si só um crime. Depois a faca, a decapitação. Foi esquartejado e enterrado debaixo de uma árvore. O mentor do rapto, um paquistanês criado em Londres, com um curso na prestigiada London School of Economics, foi condenado à morte. Mais de 20 pessoas estiveram envolvidas no crime, mas apenas três foram julgadas. Mariane acredita que o marido foi assassinado por ser americano, judeu e jornalista. Para os seus raptores, a morte de Daniel Pearl deveria servir de exemplo.
Semanas antes de morrer, ele escolhera o nome do filho. Adam Pearl nasceu em Paris. No mesmo dia, Mariane recebeu telefonemas de George W. Bush e Jacques Chirac. Numa entrevista, disse: “Primeiro as pessoas querem fazer de nós santos. É simpático e aprecio isso, mas santos? Não ainda não, as coisas são diferentes agora”. Os pais de Daniel criaram uma fundação com o seu nome para promover a música. Mariane continua a ser jornalista e vive com o filho, de quatro anos, em Nova Iorque. Daniel era um idealista, acreditava no amor e nos seus intérpretes, acreditava que os homens podiam ser melhores. Desde a sua morte, a política internacional continuou a funcionar, a maldade dos homens também. Pouco mudou, a não ser, claro, a vida de todos aqueles que, como Mariane, viram o seu caminho rasgado. Há uma lista, com 16 entradas, redigida por Daniel Pearl, com o título “Coisas que amo da Mariane”, e que, segundo ele, deveria crescer até ao fim da vida: “Senta-se no meu colo quando estou a trabalhar. Caminha com pequenos passos. Acredita que não temos de abdicar de certas coisas quando formos velhos. Dança com ou sem música”.
segunda-feira, 1 de dezembro de 2008
Pornogal
O jornal do Lux já está por aí. Neste número 3 escrevo sobre a importância da pornografia. Fica aqui uma mini versão softcore. Para mais pouca-vergonha vejam a edição em papel.
"Dei por mim sentado diante de Mckayla Matthews, 19 anos, simpatia de cheer leader, mamas de borracha e cabelo pintado de Loiro Actriz Porno. Talvez tenha sido uma das entrevistas mais estranhas que fiz (ao lado de Miss Mathews, durante toda a nossa conversa, havia uma dezena de televisores ligados, nos quais a própria Miss Mathews aparecia a gangbanguear três culturistas). No final da conversa, ela baixou o top branco e perguntou: “Queres apalpar?” Eu, educadamente gago, disse: “Não, estou a trabalhar”, como se fosse um motorista da Carris a recusar um bagaço antes de pegar ao serviço."
"Condenadme, no importa, la Historia me absolverá." - Fidel Castro
O Partido Comunista Português é tão obsoleto como os táxistas que pedem três Salazares para o país - um para o Norte, outro para o Centro, e um para o Sul. O PCP está tão fora do nosso tempo como os homens que ainda usam rabo de cavalo, os agarrados à heroína ou aqueles que compram álbuns do Brian Adams. O PCP continua a discutir a desintegração da URSS (acreditam eles que a coisa correu mal por causa de pressões externas e dos traidores internos - e eu pergunto se esses traidores internos serão os milhões que morreram nos campos de trabalhos forçados).
O PCP está tão congelado no tempo como os camaradas cubanos que foram apoiados no congresso - os comunistas portugueses ainda acreditam que uma revolução que começou há 50, que desfez um país, que pôs seus cidadãos a ser bufos, ou putas ou burlões, ainda está em curso. Cinquenta anos parece-me suficiente para ver se as ideias dos barbudos de Sierra Maestra funcionavam - há pessoas que são despedidas ao fim de um mês à experiência -, e se calhar já chega de andarem aí a brincar aos países, não?
O PCP ainda usa a desculpa do embargo americano para a opressão, para a gestão danosa e para os homicídios do regime cubano. O embargo dos Estados Unidos contribui para a miséria de Cuba, mas não é uma condição absoluta - já Fidel Castro e os seus uniformizados seguidores são a génese do mal naquela ilha.
Num discurso que emocionou a audiência no congresso do PCP, Odete Santos disse: "Houve um tribunal que condenou dois jovens por usarem o pincel e a tinta e escreverem num viaduto cinzento o lema do congresso da JCP: 'Transformar o sonho em realidade'."
Está mal, está mal, e por isso eu peço à senhora deputada Odete Santos que, uma vez que está preocupada com as injustiças, acrescente no seu discurso todos os presos políticos em Cuba, ou o poeta Reinaldo Arenas, fechado numa cela durante dois anos por ser homossexual, e a quem a polícia roubou manuscritos uma e outra vez; acrescente aí os que foram fuzilados em tribunais sumários, os que, por desespero e fome, foram comidos por tubarões enquanto tentavam fugir da ilha em câmaras de ar; acrescente aí aqueles que recebem penas de 15 anos por matar uma vaca (só o estado pode matar gado bovino, que comédia negra meus senhores); acrescente os que tiveram de comer cães e gatos durante o Período Especial enquanto os coronéis do regime viajam em carros de luxo; acrescente a lista de atrocidades que fizeram com que uma nação inteira começasse a perder a dignidade e a resistência: uma nação de pessoas que não podem pensar, que têm de delatar para fugir aos danos colaterais ou para arranjar um casa maior ou apenas porque já não se pode ser de outra maneira. O regime cubano empobreceu a natureza humana, enxovalhou a sua gente, menosprezou-a, foi egoísta, déspota, foi o pai de família que obriga o filho a ser o que o pai quer e mais nada, um pai sempre com o cinto na mão, sempre pronto a humilhar ainda mais quem já levou tanta porrada. Só por isso, o regime cubano devia desaparecer já, ou, como diria a JCP: "Transformar o sonho em realidade".
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