sexta-feira, 30 de janeiro de 2009
Teoria da evolução das espécies debaixo de chuva
Talvez o sol e os fins de tarde pós praia, com sabor de gambas e cerveja na boca, suavizem o atraso mental de uma nação. Isso e os cornettos de morango, e o torpor de esplanada com o Tejo a rebentar numa fresta entre duas ruas. Mas em dias em que o céu parece um capacete, fechado e inclemente, em dias em que já se anunciam cheias e o avesso do edredon é o lugar mais desejado pela totalidade da população, notícias como esta, do jornal Briefing, põe-nos no lugar certo na escala da evolução: entre o Homer Simpson e o Cristiano Ronaldo. Diz o jornal Briefing:
"Nem a crise económica, muito menos Barack Obama destronaram o futebol e os principais clubes do noticiário dos jornais portugueses em 2008. As palavras Futebol, Sport Lisboa e Benfica e Futebol Clube do Porto foram as que apareceram mais vezes em notícias publicadas na imprensa nacional em 2008".
terça-feira, 27 de janeiro de 2009
Vida de cão
Os senhores do partido que não gosta de estrangeiros tinham razão quando nos avisavam da ameaça alienígena. Este fim de semana, demonstrou-se mais uma vez que os velhacos dos imigrantes estão neste país para nos roubarem esses empregos que são desempenhados atrás dos balcões das pastelarias ou em andaimes de obra com a solidez da Ponte de Entre os Rios.
No Porto, um desses prevaricadores com sotaque de patife e epiderme de terrorista, até teve tempo de antena em todas as televisões. O sacana é empregado de restaurante, trabalho que, com toda a certeza, surrapiou ao Paulo Jorge, filho mais novo da Josefa do pronto-a-comer 'O Cantinho', um rapaz que passa agora as tardes a mandar mensagens escritas ou a sorver refrigerantes por uma palhinha nos corredores do Norte Shopping - isto quando não anda com os Super Dragões a apoiar o FC Porto em estações de serviço.
O infiel estrangeiro estava a sair do seu turno - de certeza que mais cedo do que devia (calinas)-, quando viu um cidadão de nacionalidade portuguesa ser levado por uma onda, juntamente com um cão que, apesar do pêlo negro (hélas) consta que também nasceu em Portugal.
O estrangeiro correu para o náufrago, meteu-se dentro da água gelada, e tentou içar o corpo inconsciente do português, enquanto a turbulência das ondas reproduzia o programa de centrifugação da Whirlpool AWOD5526 White. Dois portugueses, que trabalham no mesmo restaurante, bem se apressaram, mas o pulha chegou primeiro ao oceano, tal a sua ganância de protagonismo. Foram apenas oito minutos a bater contra as rochas, mas na entrevista o imigrante teve de sublinhar que a água estava muito fria. Vêm para cá comer à nossa conta, e ainda dizem mal das nossas praias.
O homem ao mar lá se salvou, é verdade. Mas o dia estava estragado. Um estrangeiro passou-nos a perna mais uma vez. Este tipo de indivíduos, que tiveram a ousadia e o defeito de nascerem noutro país, de falar outras línguas e até de ostentar outra cor de pele, não fizeram mais nada que vir para cá trabalhar, mostrar que há outros hábitos, outros mecanismos de sobrevivência e ainda insinuam que há alternativas ao nosso estilo de vida. Comem coisas estranhas e diferentes. Usam roupas coloridas ou biquínis mínimos ou escrevem com alfabetos que parecem os desenhos dos homenzinhos que apareciam pintados de lado nas paredes e que usavam eye liner.
E nós, que estávamos aqui tão bem, tão sossegados na nossa horta nas traseiras da Europa, tão parecidos uns com os outros que o país se assemelha a um casamento entre primos, somos agora obrigados a ler anúncios em estrangeiro nas paragens do autocarro e a ver os nossos filhos a serem fintados, na hora do recreio, por algum Ronaldinho em formato de creche infantil.
Da história de ontem resta-nos um consolo. O cão preto (mas português), depois de desaparecer na corrente, regressou a casa do dono horas mais tarde. E por tamanha demonstração de dignidade (recusar a ajuda de um imigrante que só quer aparecer nos telejornais), proponho que seja o candidato a primeiro ministro pelo tal partido que não gosta dos imigrantes.
segunda-feira, 26 de janeiro de 2009
Madrid mola mazo - pero mis amigos aun más
Para a Marta Flor de Lima
Não se volta a um lugar onde fomos felizes? Bullshit. Madrid continua a ser um excelente fornecedor de felicidade e de esclarecimento. Talvez tenhamos medo da nostalgia do regresso - sim, ao andar sozinho pelas ruas que durante três anos me serviam de circuito diário, comecei a pensar que uma qualquer pancada na cabeça me aproximara da condição lacrimejante de Stephen King - o autor americano, depois de atropelado, confessou ter chorado a ver o Titanic.
Temos medo do regresso porque não podemos repetir essa felicidade, porque queremos tantas coisas mas não temos corpo nem tempo nem coragem. Mais que tudo, temos medo. We are fucking pussies lounging on the couch. E o medo é como uma cabeça enfiada num saco plástico: mais tarde ou mais cedo asfixiamos.
Esta viagem a Madrid, com noites em fast foward e as gargalhadas dos que ainda insistem em gostar de mim, permitiu-me perceber que não posso ter tudo (já tinha percebido antes, mas é sempre bom acrescentar mais uma nota mental), e que, tendo em conta as possibilidades do planeta, seria estúpido não sair da freguesia de São Martinho de Sintra (onde nasci). Sei que dificilmente farei uma volta ao mundo em bicicleta, mas a imobilidade come-me o cérebro como uma praga de gafanhotos - e não falo necessariamente da imobilidade geográfica.
Entre as festas e as ressacas, entre as conversas de diplomacia social com pessoas que acabava de conhecer e a cumplicidade dos amigos, senti esse rumor no sangue que nos diz que precisamos de acumular experiências, que a curiosidade nos faz continuar, que devíamos gostar mais da verdade (ainda que isso dê trabalho), e que parar é mesmo martelar um prego no caixão. No entanto, no centro do barulho das luzes ou nesse estado febril de sofá a que chamamos ressaca, estou cada vez mais seguro que a viagem a sós seria sempre insuficiente - tão insuficiente como eu. Os Ornatos Violeta diziam que o monstro precisa de amigos. E este monstro concorda.
O herói clássico
(Texto publicado no Semanário Económico de 24 de Janeiro)
Quando o pugilista Cassius Clay, com 22 anos, ganhou o seu primeiro título mundial, gritou: “Eu abanei o mundo, eu abanei o mundo!” No dia do combate, em 1964, meses após o assassinato de John F. Kennedy e da esperança destroçada dos americanos, Cassius Clay era um negro que crescera no sul do Estados Unidos, lugar de cruzes em chamas do Klu Klux Klan, e que, convertido ao islamismo, estava prestes a mudar o nome para Muhammad Ali, num país que ainda hoje põe o presidente a jurar com uma mão sobre a bíblia. O mais jovem campeão do mundo de sempre tinha, portanto, propriedade para afirmar que abanara o mundo.
Barack Obama podia ter dito, no seu discurso de tomada de posse, que também ajudara ao estremecimento do planeta, porque, como explicou num discurso em 2004, na convenção do Partido Democrata, onde nem sequer era cabeça de cartaz, “A minha presença neste palco é bastante improvável. O meu pai era um estudante estrangeiro [nos Estados Unidos], nascido e criado numa pequena aldeia do Quénia. Cresceu a ordenhar cabras.” Nos vinte minutos seguintes, Barack Obama cruzou a sua narrativa familiar com a história do país. Não apenas os factos cronológicos, mas a emoção que está no coração desses factos: a avó materna que, sozinha, criou uma filha enquanto o avô de Obama desembarcava na Europa vestindo um uniforme do exército americano; o pai de Obama negro, a mãe branca: “Os meus pais não partilhavam apenas um amor improvável, partilhavam uma fé duradoura nas possibilidades desta nação. Deram-me um nome africano, Barack, acreditando que, numa América tolerante, um nome não é uma barreira ao sucesso”. E esta foi a narrativa de Obama até ganhar as eleições, a narrativa da “esperança de um rapaz magrinho, com um nome estranho, que acredita que a América também tem um lugar para ele.”
Obama e Ali partilham a improbabilidade das suas vidas, uma improbabilidade que resulta da viagem esforçada dos seus protagonistas. “Yes we can” – “Sim podemos”, foi o que disse Obama quando ganhou as eleições primárias do Iowa, tornando essas três palavras no mantra da sua campanha.
Na dramaturgia, esta viagem chama-se o arco da personagem, um arco que, no final, tem de causar mudanças no protagonista. Em 1992, a campanha de Bill Clinton criou aquele que é considerado um dos melhores anúncios políticos de sempre, “The Man from Hope”. Clinton nasceu em Hope (esperança), e a narrativa da sua viagem era a de um rapaz pobre que teve a esperança de ser presidente. Num programa da BBC, Philip Gould, conselheiro de Tony Blair, explicou: [Depois de Clinton] as pessoas diziam: ‘Precisamos de uma narrativa, o que precisamos é de uma explicação para o que se está a passar, e que dê sentido aos acontecimentos’”. Os humanos têm o impulso inato para organizar as suas vidas em forma de um conto clássico. A narrativa serve para dar sentido à vida. E alguns políticos, como Clinton, souberam aproveitar essa necessidade com maestria, procurando o arco perfeito.
Richard Maxwell, consultor americano de uma companhia cujo lema é “história como estratégia, a narrativa como forma de liderança”, disse nesse mesmo programa da BBC: “As histórias têm cinco elementos: a paixão com que se contam; um herói, que fornece um ponto de vista ao ouvinte para que este faça essa história a sua história; um problema, que o herói tem de enfrentar; um momento de tomada de consciência, que permite ao herói ultrapassar o obstáculo; e a mudança que daí ocorre.”
Durante a campanha, Obama tinha, sem dúvida, paixão no desempenho da sua oratória. E, sendo o herói, conseguia com a sua história pôr o público a fazer a mesma viagem que ele fez. O problema era representado por todas as adversidades que superou: um homem negro e a sua luta; um país em estado letárgico, com medo, controlado por um governo, de George W. Bush, que cometia demasiados erros e os varria para debaixo do tapete com exercícios de propaganda. O momento de consciência aconteceu no Iowa, durante o discurso “Yes we can”, depois de Obama ganhar essas eleições primárias: “Disseram que este dia não aconteceria, que os nossos objectivos eram demasiado altos, que este país estava demasiado dividido (...) para se juntar em redor de um propósito comum (...), mas neste momento determinante da História, vocês fizeram o que os cínicos disseram que não conseguiríamos fazer”. Depois da tomada de consciência, surgia o derradeiro obstáculo e a possibilidade da mudança que o arco da personagem exige, neste caso, a presidência dos Estados Unidos.
Muitas pessoas desconfiam da narrativa de Obama, dizendo que é tão vazia como a publicidade de um aparelho que faz crescer os músculos sem exercício físico. Mas a narrativa de Obama revelou-se mais que uma campanha da TV Shop. Com ela, mostrou que a política se pode fazer sem ataques pessoais e sem o dinheiro dos grandes lobbies. Conseguiu levar as pessoas a falar de política, a sair para a rua, a participar na campanha; empolgou jovens, conseguiu a maior participação de sempre numa eleições presidenciais, pôs a mudança em andamento, como quem prepara um pugilista para o combate do título mundial. Essa foi a principal conquista da sua narrativa: mudar a disposição, a mentalidade e o empenho de um país de 300 milhões de pessoas e, pelo meio, contagiar o mundo.
Agora, com os espíritos despertos, entrou no segundo acto da sua história, no qual o herói tem de fazer as escolhas mais difíceis, mesmo que isso represente sacrifício e perda pessoal. No seu discurso de tomada de posse disse: “De tanto em tanto tempo, o juramento [do presidente] é feito entre nuvens densas e tempestades raivosas. Nestes momentos, a América perseverou não apenas pela capacidade e visão daqueles que estão no topo do governo, mas porque Nós, o Povo, nos mantivemos fiéis aos ideais dos nossos antepassados, e verdadeiros diante dos documentos que fundaram a nossa nação. Assim foi. Assim deverá ser para esta geração de americanos.”
Obama não precisava da emoção de outros discursos, nem de gritar que tinha abanado o mundo porque essa parte da viagem tinha terminado: num edifício que foi construido por escravos, um homem negro tornou-se oficialmente no presidente dos Estados Unidos.
Com o seu discurso de tomada de posse, Obama estava determinado em iniciar o segundo acto da viagem. Falou do passado para provar que o país tem as ferramentas, e os americanos a capacidade, para enfrentar a crise do presente. Falou dos sacrifícios feitos durante guerras e depressões, disse que é preciso que os homens voltem a pensar num bem maior que eles próprios: “Chegou o tempo (…) de escolher a nossa melhor História; de carregar para diante essa oferta preciosa, essa ideia nobre, passada de geração em geração: a promessa de Deus de que todos são iguais, livres, e que todos merecem a oportunidade de perseguirem a sua medida de felicidade”.
No segundo acto, os trabalhos de Obama têm a dificuldade contemporânea dos trabalhos de Ulisses. Sobre a perfeita narrativa da Odisseia, António Lobo Antunes disse uma vez que se tratava da história de um tipo que avisa a mulher que vai chegar tarde a casa. Tendo em conta o tamanho da viagem que inicia agora, o presidente dos Estados Unidos está também a avisar os americanos, e o mundo, que, para superarmos as nossas circunstâncias, teremos de chegar tarde a casa.
terça-feira, 20 de janeiro de 2009
segunda-feira, 19 de janeiro de 2009
Descubra as diferenças (The end)
O provedor dos leitores do Público, Joaquim Vieira, recebeu a minha reclamação sobre uma história de cópia (ou vincada influência). E escreveu este texto, na sua página do jornal, este domingo:
Esse espectro chamado plágio
Terá a nova ecologia comunicacional do século XXI abolido a regra contra a apropriação do trabalho intelectual alheio?
A queixa vem hoje de um jornalista, Hugo Gonçalves, acerca de uma colaboração que fez para a edição de Janeiro do Lux Frágil, mensário gratuito editado por uma discoteca de Lisboa:
”No dia 27 de Novembro enviei um texto por email, com o título ‘O Elogio da Crise’, ao editor do jornal do Lux, Pedro Fradique. O editor resolveu mostrá-lo a alguns amigos e colegas de profissão - entre eles estava o jornalista do PÚBLICO Vítor Belanciano. (…) Queria, segundo me disse, partilhar o artigo e saber as opiniões dos seus colaboradores e amigos sobre o mesmo.
No dia 13 de Dezembro, uma crónica na pág. 3 do P2, escrita por Vítor Belanciano [‘Larguem o ecrã’], começava assim: ’Somos a geração pós-revolução. Não estamos no top de preferências dos que lutaram pela liberdade. Não temos ideais, dizem-nos. Somos os doutores que queriam que fôssemos, replicamos. Deram-nos TV a cores e jogos de computador. Nunca estamos sozinhos. Ele é telemóveis, SMS ou Skype. (...) Somos guardiões do lema pensar global, agir local’.
Um dos parágrafos do meu texto: ’Nós, os que nascemos depois do 25 de Abril, nunca tivemos uma causa geracional, metemos nojo aos colunistas que lutaram pela liberdade, somos os doutores e engenheiros que queriam que fôssemos. (...) Nós, os filhos da pós-revolução, crescemos com televisões a cores, com jogos de computador, com os vídeoclips da MTV a açucarar-nos a vida. Nunca estamos sozinhos – os telemóveis, as sms, o messenger, o facebook. Recebemos o conforto que faltou aos nossos pais. (...) Queremos ser intérpretes do aforismo moderno: pensa globalmente, actua localmente.’
(…) Sim, somos vulneráveis às palavras e às ideias que absorvemos e digerimos e processamos. Porém, e ainda que os textos abordem claramente temas distintos, no caso do parágrafo em questão não se trata de vulnerabilidade, mas de cópia: a cadência, a ordem das palavras, a ideia subjacente e até as imagens usadas para ilustrar tal ideia. Não esquecendo que Vítor Belanciano recebeu o meu texto (…) dias antes de publicar a sua crónica”.
Hugo Gonçalves esclarece que, duas semanas antes de escrever ao provedor, reclamara junto do director do PÚBLICO acerca deste alegado plágio de um escrito seu, mas sem qualquer reacção. E conclui:
“O meu texto foi publicado após a crónica de Vítor Belanciano No entanto, tenho testemunhas e emails que provam que o meu artigo foi escrito muito antes do texto do PÚBLICO. Não gostaria que os leitores pensassem que fiz um exercício de copy/paste [copiar/colar no computador]. É desagradável. Lamento que o PÚBLICO não se tenha preocupado em esclarecer este problema”.
O provedor solicitou esclarecimentos a Vítor Belanciano, perguntando-lhe preliminarmente se confirmava a leitura prévia do texto de Hugo Gonçalves, o que assumiu:
“Nunca fugi – nem ninguém deste jornal – a esta questão. Claro que li o texto de Hugo Gonçalves. Mais: instiguei à sua publicação a quem me pediu opinião. Por isso, recuso insinuações que poderia passar-me pela cabeça dizer que não li o referido texto”.
O provedor nada insinuou a esse respeito, apenas perguntou, no exercício normal de funções, pelo que desconhece a quem Vítor Belanciano possa referir-se. Quanto à explicação da similitude entre o seu texto e o outro, Vítor Belanciano adianta:
“A ideia, o conceito, a essência, dos dois textos é totalmente diferente. O meu reflecte sobre a retórica tecnológica, como se fosse a única imagem de um futuro possível. Algumas influências na sua feitura foram teorias de Zygmunt Bauman (a geração do ‘ter’ e não do ‘ser’), análises de James Howard Kundler (a confiança cega na tecnologia e o estilo de vida ocidental ter que mudar face à escassez de recursos energéticos) e texto de Simon Jenkins sobre haver cada vez mais pessoas a consumirem espectáculos ao vivo, porque não há comunidades virtuais que os substituam. O texto de Hugo Gonçalves é sobre o estado de Portugal e como a crise pode ser, afinal, a salvação.
A minha crónica está escrita num registo formal que é o meu: conciso, directo, frases curtas, dinâmico, cadenciado.
Isso não significa que não existam cinco frases no princípio da minha crónica com semelhanças a frases do outro texto, que, em alguns casos, na sua declaração, Hugo Gonçalves tira de contexto, recorrendo a parêntesis. Adiante. Não vou estar a discutir ‘vírgulas’, que é o que, nestes casos, pode suceder.
Digo, frontalmente, que sim, é plausível que a leitura, alguns dias antes, do texto de Hugo Gonçalves possa ter sugestionado essas minhas frases. Fui um pouco incauto? Talvez.”
E depois, à guisa de doutrina para um gesto que olha com aparente displicência, Vítor Belanciano elabora uma tese justificativa:
“De qualquer forma, a ideia que atribui forma a essas frases está banalizada e é do senso comum. (…)
Eu próprio, em crónicas anteriores, utilizei alusões parecidas para reflectir o mesmo: ‘Podemos recorrer a astúcias e pequenos gestos quando estamos entre desconhecidos sinalizando a intenção de permanecermos afastados, como a utilização indiscriminada do telemóvel – como se através dele obtivéssemos consolo de estar em comunicação, sem o desconforto que o verdadeiro contacto reserva’. (‘Viver por opção no gueto’, 13-08-07); ’Fazer parte de comunidades ou universos virtuais como o Second Life, de dia, ou passear no Chiado de iPhone no ouvido, à noite. Cada um pode criar o seu mundo artificial’. (‘Coexistir’, 20-07-08).
Sei perfeitamente que existem sensibilidades diferentes para conviver com estas questões. Entendo a susceptibilidade de Hugo Gonçalves. Muitos outros partilham do mesmo, certamente. Respeito-o. (…) Essa não é a minha visão, no entanto. (…) Enquanto alguém que pensa sobre estes factos, queria deixar apenas a seguinte observação:
Nenhum texto, ou obra, é puramente original, feito exclusivamente por um sujeito, livre das interferências de outras produções. Citações, referências, alusões, apropriações e ecos – conscientes ou inconscientes – encontram-se, cada vez mais, num mundo intrincado de signos. Mais do que isso, são a própria condição do acto criativo. Ter uma voz singular implica adoptar e abraçar filiações, comunidades, discursos. Inventar não é criar do nada, mas do caos.
Todos o sabem, poucos o aceitam. Tenho a sensação de que hoje grassa uma espécie de arrogância cultural, e uma hipocrisia que lhe está subjacente, quando se fala nestes assuntos. Com o fluxo ininterrupto de informação vinda de todos os lados, estas questões são – e serão ainda mais no futuro – relevantes, implicando rever as formas pelas quais nos relacionamos com elas”.
Por louvável que seja a franqueza de V.B. ao admitir influências do texto de Hugo Gonçalves, é muito mais problemático que o encare como natural. Vítor Belanciano constatava na crónica em causa haver quem acusasse a sua geração (de que se assume como porta-voz) de já não ter ideais. O provedor, que não sabe se é isso que ele próprio pensa, entende de forma diferente – que continua a haver ideais, mas não necessariamente coincidentes com os das gerações anteriores. Em todo o caso, estava convencido de que a não apropriação do trabalho intelectual alheio, mais conhecida como recusa do plágio, permanecia como ideal transmitido de geração para geração.
Conviria a Vítor Belanciano ter a consciência de que o código deontológico da sua profissão estipula que “o jornalista deve combater (…) o plágio como grave falta profissional” e de que trabalha para um jornal cujo Livro de Estilo é taxativo a este respeito: “O plágio é terminantemente proibido no PÚBLICO”.
Poder-se-ia pensar que a proximidade de ideias, a semelhança da exposição e a coincidência de vocábulos entre Hugo Gonçalves e Vítor Belanciano não teriam passado de uma bizarra coincidência em milhões de diferentes combinações lexicais à volta do mesmo tema – certamente mais rara do que ganhar o Euromilhões. Mas, tendo lido o outro texto antes de escrever o seu, a Vítor Belanciano não poderá ter escapado tudo isso, pelo que lhe competiria fugir à inevitável comparação entre dois discursos tão concordantes.
Sendo certo que a nova ecologia comunicacional poderá obrigar a repensar o conceito de direito de autor, como alega em sua defesa, Vítor Belanciano estava a escrever, com a sua própria assinatura, para um órgão de informação tradicional, onde ainda imperam (e imperarão) os velhos valores que obrigam a atribuir devidamente às respectivas fontes todas as informações e expressões recolhidas algures.
Remata o jornalista:
”Alguém me perguntava: ‘E se fosse ao contrário?’ Respondi – com exagero, decerto – que todas as semanas vejo isso acontecer com textos meus. (…) Todos são bem vindos às minhas considerações e histórias. No limite, elas nunca foram apenas minhas, em primeiro lugar, façam favor de fazer delas o que quiserem”.
Sendo estimável, a generosidade de Vítor Belanciano não o autoriza a abusar da generosidade dos outros.
sábado, 17 de janeiro de 2009
A vida inteira na televisão
Texto publicado na edição de hoje do Semanário Económico
Num dos episódios da série Mad Men, o protagonista, Don Draper, depois de apanhado numa das suas infidelidades, tem de voar de Nova Iorque para a Califórnia numa viagem de negócios – desaparece durante três semanas quando conhece uma mulher mais nova, e muda-se para uma mansão habitada por um grupo de pessoas que existem em redor de uma piscina, que falam francês, que escolheram a liberdade dos costumes.
Don Draper, publicitário implacável, americano de fato e chapéu no início da década de 60, está num impasse: escolher o amor seguro da família tradicional ou desfrutar da vida sem rede. Mais tarde, lê em voz alta um poema do livro “Meditations in an Emergency”, de Frank O’Hara: “Agora estou tranquilamente à espera que a catástrofe da minha personalidade volte a parecer bonita, interessante e moderna”.
Draper decide então regressar a Nova Iorque. Pede desculpa. E a mulher, grávida do terceiro filho, esposa exemplar na aparência e prisioneira de um subúrbio dourado, diz-lhe que não. Depois, a mulher deixa os filhos com o marido, entra num bar e, num quarto de arrumações, permite que um estranho lhe levante a saia até que se vejam as meias de liga. Em seguida, inclina a cabeça para trás.
Mad Men, que acaba de ganhar o Globo de Ouro pela para melhor série dramática de televisão, tem a capacidade para pôr as suas personagens no limite, encostadas às cordas, e de mostrar como reagem diante dessas escolhas decisivas. Em Portugal, a primeira temporada já começou a passar na Fox, estando também disponível em DVD, na Amazon.
Mad Men estreou-se em Outubro de 2007, num canal que, até então, apenas oferecia filmes antigos. Mas os executivos do AMC acharam que era preciso produzir ficção própria e escolheram a ideia de um guionista dos Sopranos, Matthew Weiner. No primeiro ano, a série não disparou nas audiências, mas a crítica impressionou-se. Na segunda temporada as audiência subiram 20 por cento.
Nos últimos anos, os Estados Unidos, produtores de tanto lixo televisivo, conseguiram recuperar todo o potencial da televisão. Por isso, passou a ser um lugar comum dizer que séries como os Sopranos, Sete Palmos de Terra ou The Wire são melhores – no guião, na interpretação, na fotografia, na direcção – que a quase totalidade dos filmes produzidos por Hollywood. Se fossem vivos, dramaturgos como Tennessee Williams ou Arthur Miller estariam a escrever para televisão.
O primeiro episódio de Mad Men começa com uma nota explicativa: “Mad Men, termo do final dos anos 50 usado para descrever o publicitários da Madison Avenue”. A série acompanha o funcionamento da agência Sterling & Cooper, nuns Estados Unidos felizes com a abundância mas assustados com os mísseis soviéticos. Os publicitários estão adiante do seu tempo nas ideias para as campanhas publicitárias, mas são fiéis seguidores do fato e do chapéu, dos cigarros sem parar (até os médicos fumam durante as consultas), dos cocktails antes e depois das reuniões, da amante na cidade e da mulher nos súburbios.
Don Draper, herói de guerra, com um passado misterioso, é a estrela da companhia – e uma das personagens televisivas mais fascinantes de sempre –, capaz de emocionar a audiência quando apresenta uma campanha à Kodak ou de dizer coisas como: “O amor foi inventado por um tipo como eu para que se vendam mais collants”. Mad Men é uma série politicamente incorrecta – trata do sexismo, do racismo, das peripécias exibicionistas dos machos alpha, da ideia que a competição é o motor da vida. As personagens podem, por vezes, parecer canalhas, mas são canalhas com sentido de humor, bem vestidos, sempre envoltos em fumo e vapores de whisky. Don Draper é um homem brilhante e insuficiente emocional. Um tipo duro com um lado suave muito bem escondido. Mad Men é uma série aparentemente superficial no estilo de vida dos personagens, mas, como diz Don Draper sobre um dos produtos que quer vender: “(Trata-se) de nostalgia. Delicada mas potente. Nostalgia significa a dor de uma ferida antiga, uma pontada no coração. Muito mais poderosa que a memória”.
sexta-feira, 16 de janeiro de 2009
A little less conversation a little more action (short fiction story of a prelude to a New York kiss)
Official Sound Track
Ela disse-lhe: 'You make wrinkled shirts look cool'.
Ele tinha uma nódoa de rum cola junto ao colarinho - alguém o empurrara num alcoolizado momento de dança, os dedos ficaram molhados, depois pegajosos, açúcar que ele lambeu baixando a cabeça como um miúdo que acabou de cometer uma ilegalidade na cozinha. Ele disse: 'I don't smoke, but do you have a cigarette?'
Ela aproximou-se mais. Tinha o cabelo ruivo, os olhos azuis, dedos com manchas de tinta. Ele tirou mais pedras de gelo do balde em cima da mesa. Disse: 'So you're an artist?' Ela tirou-lhe o copo da mão, provou, serviu mais rum: 'Boys need to be boys'.
Ele bebeu. O fervor do excesso de álcool espalhou-se nas paredes da boca e por todo o sistema nervoso. Olhou para o vestido dela, os ombros sem tecido, uma veia azul no pescoço quando ela se ria. E ria-se tanto. Ela perguntou: 'Nina Simone or Billie Holyday?'
Ele aproximou-se, as ancas de ambos a menos de um dedo de distância, uma das mãos segurando o copo, a outra a pousar no vestido, um pouco abaixo das costelas, até que o polegar deslizou, apertando-lhe o ponto onde se estreia a virilha. Por cima do vestido, ele podia sentir o fino elástico que lhe rodeava a cintura. Ela disse-lhe, boca ao lado da boca: 'It's like you're undressing me already.'
Cruzaram a festa, ela parou para conseguir um copo de água, gelo, limão. Ele agarrou um cubo de melancia que se transformou em sumo dentro da boca. Havia fumo, e fila para a casa de banho, e pessoas que tinham chegado da praia. Duas irmãs de bikini bebiam margueritas. Um ilustrador sóbrio falava com um diplomata ganzado. No corredor, onde a corrente de ar apagara as velas no chão, alguém mordia o pescoço de alguém.
Subiram para o terraço do prédio: um sofá, antenas de televisão, as pontes sonoras e iluminadas sobre o East River.
Ela inclinou-se no parapeito do terraço, virou-lhe as costas, disse: 'I think I've never made out with anyone in Brooklyn.' E bebeu a água, limpou a língua, estilhaçou uma pedra de gelo dentro da boca, produziu saliva com sabor a limão.
Ele disse-lhe: 'Water melon tongue', e a sua mão pressionou-lhe a curva onde as costas se despistam, puxou-a para si, a outra mão segurou-lhe a cara, o dedos entraram no cabelo, agarrou-a com mais força, e ela afastou as pernas, roçou a pele das coxas nas calças de ganga, o centro do seu corpo cedeu, um ombro inclinou-se, os lábios cresceram, a sua boca podia ter dito: 'Do something to me'.
Ele virou-a de costas e apanhou-lhe o cabelo na nuca com uma das mãos: firme, sem espaço de manobra. Com a outra mão desceu-lhe uma alça do vestido, usou um dedo para contornar a curva do ombro, descer pelo peito, sobrevoar o mamilo.
Mordeu-lhe o pescoço, os músculos da nuca, deixou a marca dos dentes.
Ela disse: 'Do it already', e rodou sobre si mesma, a alça a meio do antebraço, a boca apontada, a urgência de ficar sem fôlego.
E depois beijaram-se.
Ela disse-lhe: 'You make wrinkled shirts look cool'.
Ele tinha uma nódoa de rum cola junto ao colarinho - alguém o empurrara num alcoolizado momento de dança, os dedos ficaram molhados, depois pegajosos, açúcar que ele lambeu baixando a cabeça como um miúdo que acabou de cometer uma ilegalidade na cozinha. Ele disse: 'I don't smoke, but do you have a cigarette?'
Ela aproximou-se mais. Tinha o cabelo ruivo, os olhos azuis, dedos com manchas de tinta. Ele tirou mais pedras de gelo do balde em cima da mesa. Disse: 'So you're an artist?' Ela tirou-lhe o copo da mão, provou, serviu mais rum: 'Boys need to be boys'.
Ele bebeu. O fervor do excesso de álcool espalhou-se nas paredes da boca e por todo o sistema nervoso. Olhou para o vestido dela, os ombros sem tecido, uma veia azul no pescoço quando ela se ria. E ria-se tanto. Ela perguntou: 'Nina Simone or Billie Holyday?'
Ele aproximou-se, as ancas de ambos a menos de um dedo de distância, uma das mãos segurando o copo, a outra a pousar no vestido, um pouco abaixo das costelas, até que o polegar deslizou, apertando-lhe o ponto onde se estreia a virilha. Por cima do vestido, ele podia sentir o fino elástico que lhe rodeava a cintura. Ela disse-lhe, boca ao lado da boca: 'It's like you're undressing me already.'
Cruzaram a festa, ela parou para conseguir um copo de água, gelo, limão. Ele agarrou um cubo de melancia que se transformou em sumo dentro da boca. Havia fumo, e fila para a casa de banho, e pessoas que tinham chegado da praia. Duas irmãs de bikini bebiam margueritas. Um ilustrador sóbrio falava com um diplomata ganzado. No corredor, onde a corrente de ar apagara as velas no chão, alguém mordia o pescoço de alguém.
Subiram para o terraço do prédio: um sofá, antenas de televisão, as pontes sonoras e iluminadas sobre o East River.
Ela inclinou-se no parapeito do terraço, virou-lhe as costas, disse: 'I think I've never made out with anyone in Brooklyn.' E bebeu a água, limpou a língua, estilhaçou uma pedra de gelo dentro da boca, produziu saliva com sabor a limão.
Ele disse-lhe: 'Water melon tongue', e a sua mão pressionou-lhe a curva onde as costas se despistam, puxou-a para si, a outra mão segurou-lhe a cara, o dedos entraram no cabelo, agarrou-a com mais força, e ela afastou as pernas, roçou a pele das coxas nas calças de ganga, o centro do seu corpo cedeu, um ombro inclinou-se, os lábios cresceram, a sua boca podia ter dito: 'Do something to me'.
Ele virou-a de costas e apanhou-lhe o cabelo na nuca com uma das mãos: firme, sem espaço de manobra. Com a outra mão desceu-lhe uma alça do vestido, usou um dedo para contornar a curva do ombro, descer pelo peito, sobrevoar o mamilo.
Mordeu-lhe o pescoço, os músculos da nuca, deixou a marca dos dentes.
Ela disse: 'Do it already', e rodou sobre si mesma, a alça a meio do antebraço, a boca apontada, a urgência de ficar sem fôlego.
E depois beijaram-se.
quinta-feira, 15 de janeiro de 2009
terça-feira, 13 de janeiro de 2009
Descubra as diferenças
Excerto do texto 'O elogio da crise', escrito por mim, e publicado no Jornal do Lux:
“Nós, os que nascemos depois do 25 de Abril, nunca tivemos uma causa geracional, metemos nojo aos colunistas que lutaram pela liberdade, somos os doutores e engenheiros que queriam que fôssemos (...) Nós, os filhos da pós revolução, crescemos com televisões a cores, com jogos de computador, com os vídeoclips da MTV a açucarar-nos a vida. Nunca estamos sozinhos – os telemóveis, as sms, o messenger, o facebook. Recebemos o conforto que faltou aos nossos pais (...) Queremos ser intérpretes do aforismo moderno: pensa globalmente, actua localmente.”
Primeiro parágrafo de um artigo, no jornal Público, no suplemento P2:
“Somos a geração pós-revolução. Não estamos no top de preferências dos que lutaram pela liberdade. Não temos ideais, dizem-nos. Somos os doutores que queriam que fôssemos, replicamos. Deram-nos TV a cores e jogos de computador. Nunca estamos sozinhos. Ele é telemóveis, SMS ou Skype. (...) Somos guardiões do lema "pensar global, agir local.”
Há coisas que estão mal. Esta é uma dessas coisas.
segunda-feira, 12 de janeiro de 2009
sábado, 10 de janeiro de 2009
No fio da navalha
(texto publicado no Semanário Económico de hoje)
Fazer a barba é coisa de homens: as mãos do barbeiro abrem a navalha, a lâmina suspende-se um instante acima da cabeça; e ele analisa-nos a cara como se fosse um cirurgião delicado, um adepto da certeza; logo que o metal desliza na pele produz-se o som enrolado e lento de um fósforo em combustão. Por vezes parece que magoa, ou que assusta um pouco: a lâmina razando a jugular, por exemplo. Mas fazer a barba na barbearia do Hotel Ritz é como pilotar um caça F18 num simulador – toda a emoção, nenhum risco. E mesmo que nesta barbearia nos ofereçam café, nos ajudem a tirar o casaco, nos limpem os óculos de sol, e nos recebam com uma simpatia sem protocolos desnecessários, fazer a barba continua a ser uma coisa de homens – que o diga Artur Freixinho, o barbeiro que manipula a lâmina enquanto monta a narrativa da sua vida: “O meu irmão estava em Moçambique, tinha lá um negócio de barbearias, e meteram-me a treinar. Comecei quando tinha dez anos, numa barbearia da minha aldeia, perto de Foz Côa. Tinha de afiar as lâminas numa assentadora, sabe o que é uma assentadora?”. O senhor Freixinho imita então o movimento de uma lâmina a deslizar numa tira de cabedal, essas fitas grossas de couro esgaçado onde os cowboys dos filmes afiavam as navalhas e a sua natureza de tipos duros. O senhor Freixinho passava os sábados de criança nesse movimento pendular, tentando tornar mais perfeito aquilo que parecia inutilizado. “O barbeiro da aldeia trabalhava no campo, e os clientes também, por isso a barbearia só estava aberta aos sábados.” Depois, o senhor Freixinho juntou-se ao irmão em Moçambique.
Na barbearia do Ritz trabalham nove pessoas. Também há um salão para senhoras. No espaço dedicado aos cavalheiros há um ambiente de clube privado, uma certa cumplicidade masculina mesmo entre aqueles que não se conhecem. É preciso ter confiança nas mãos de quem nos corta o cabelo ou nos passa uma lâmina no pescoço. Estar ali, naquele trono almofadado, com uma toalha quente e vapores de menta na cara, serve para abrir os poros da pele mas também para baixar a guarda. Os clientes conversam, trocam opiniões sobre o estado do país, preparam negócios.
O senhor Freixinho explica como é que os homens se emanciparam do barbeiro: “Hoje já toda a gente pode fazer a barba em casa, e de uma forma muito fácil. Não precisam de um barbeiro todos os dias.” O próprio senhor Freixinho disfruta, em sua casa, do resultado dos milhões de euros que marcas como a Gillette ou a Wilkinson Sword investiram na tecnologia das suas lâminas. Noutros tempos, o homem precisava de um pulso firme para se barbear. Hoje, é preciso sofrer de delirium tremens para abrir um corte sério na cara. Por outra palavras: as novas lâminas são à prova de estúpidos. “E com a Sida muita gente se assustou. Nós aqui temos tudo descartável,” explica o senhor Freixinho enquanto põe a lâmina na navalha. Os seus gestos são precisos, suaves, procuram a eficácia: “Tem de se fazer sempre a barba na direcção em que os pêlos crescem”, depois estica a pele da face do cliente com os dedos, passa a lâmina mais uma vez, acrescenta: “Hoje em dia talvez tenha uns quatro clientes por semana para fazer a barba, mas há muitos que vêm cá para aparar.”
Depois de quinze anos em Moçambique, e algum tempo após independência do país africano, o senhor Freixinho, um estudioso do seu ofício, regressou a Portugal com experiência e gosto pelo requinte. Passou por algumas das melhores barbearias de Lisboa – Príncipe Elegante, Hotel Florida, Brasília, Amoreiras. Põe, na sua aparência, o mesmo empenho que dedica aos clientes: o cabelo impecavelmente cortado, as mangas da camisa dobradas, sem uma ruga, a gravata certeira, a bater na fivela do cinto. Na barbearia do Ritz, um cliente que tenha sido vítima de algum desmazelo acidental pode sempre engraxar os sapatos, comprar meias, gravatas e alfinetes para gravatas. Quando saem da barbearia e atravessam o sumptuoso lobby do Ritz, como se cruzassem um romance de Graham Greene, os homens querem-se sem mácula.
O senhor Freixinho, que ganhou prémios como barbeiro, que usou as suas tesouras no cabelo de governantes e celebridades, avisa desde o primeiro momento: “Não me pergunte quem são os famosos que cá vêm”, porque a discrição também faz parte dos dos serviços da barbearia que comanda, com António Caeiro, há onze anos. Nessa tarde, o seu colega de salão, João Besteiro, diz: “Já me passaram tantas cabeças importantes pelas mãos”.
Terminou-se o tempo da lâmina. O senhor Freixinho usa pequenos palitos descartáveis com cabeças brancas de cutiline para fechar algum ponto (quase invisível) de sangue – a pele arde um pouco, mas não se pode dizer que o senhor Freixinho tenha feito um corte sequer. Regressa a toalha quente, depois Fátima, uma das assistentes da barbearia, passa uma pedra de gelo para refrescar a pele e encerrar os poros. Segue-se uma loção. Há um cliente que diz: “Mas onde é que nós chegámos quando o Benfica diz que aquilo é penalti?” Os barbeiros são mais ouvintes do que protagonistas nas conversas, explica João Besteiro: “E acredite que se fala mais de negócios e de política do que de futebol.”
Enquanto espera para cortar o cabelo, outro dos clientes tem os dedos ao cuidado de uma manicura. Na barbearia do Ritz pode até fazer-se limpezas de pele. Mas, nesta era da metrossexualidade cintilante e de modelos masculinos de photoshop, estar sentado numa daquelas cadeiras ainda é uma coisa de homens – talvez seja o ritual de outros tempos, talvez seja a emoção de estar no fio da navalha, talvez sejam todos os filmes de homens duros que se barbeavam com facas de mato se fosse preciso, mas assim que se abre a porta da barbearia, com o rosto liso e a pele fresca, e enfrentamos o bar do hotel Ritz, (onde se podem beber dos melhores dry martinis de Lisboa), há a suspeita que, a qualquer momento, se comecerá a ouvir a banda sonora de James Bond.
sexta-feira, 9 de janeiro de 2009
Mostra-me os teus pistons, eu mostro-te a minha injecção electrónica
Esta semana soube-se que o número de mortos nas estradas portuguesas continua a diminuir. Um motivo de alegria entre tanto frio e fome de anti-depressivos. Nos últimos anos morreram cada vez menos pessoas de acidente de carro - ainda que em 2008 tenham sido apanhados 24 mil condutores bêbedos a manobrar coisas com rodas e motores e que pesam toneladas e que, vai-se a ver, quando batem nos ossinhos são capazes causar algum desconforto.
Mas se falamos de sinistralidade, a grande notíca é outra, e teve muito mais espaço nos jornais e tempo de antena nas televisões do que a diminuição de mortos que se despistam, se enfaixam em camiões, e lixam o trânsito.
Ontem o Cristiano Ronaldo pregou com um Ferrari numa parede. Foi em Inglaterra.
Entre os senhores dos jornais, das revistas e da tv, deve ter havido erecções instantâneas assim que se soube a notícia. Basta ver as primeiras páginas e os noticiários. Ronaldo e um carro topo de gama: muito melhor que ter um valente par de mamas na capa.
O Correio da Manhã, sabendo da relação homo erótica que os portugueses mantêm com Cristiano Ronaldo, bem como a função dos carros enquanto prolongamentos penianos, resolveu escrever um poema erótico sobre o tema. Meninas, controlem a respiração e juntem as coxas. Senhores, se estão com calças de ganga, mantenham-se de pé. Este poema vai do estado aborrecido ao estado excitado em poucos segundos.
"FERRARI 599 GTB
Preço em Portugal 306 549 euros
Velocidade máxima 330 km/h
Cilindrada 5999 cc
Potência 620 cavalos
Tempo de espera 9/10 meses
O Ferrari 599 GTB é um modelo recente, de 2007, e o seu custo equivalente ao valor de 18 Opel Corsa 1.3 75cv, o carro mais vendido em Portugal
OUTROS CARROS DO CR7
Porsche Cayenne. Cristiano Ronaldo tem dois, um em cada país. Custa aproximadamente 120 mil euros
Audi R8. Uma bomba que é o topo de gama da marca. Custa 146 mil euros e atinge os 301 km/h. É o Ferrari alemão.
BMW M6. É apenas o carro mais caro da BMW. Custa 166 mil euros. Concorrente directo do Audi R8.
Porsche 911 Turbo. A garagem de Ronaldo tem ainda mais um carro alemão. Custa 188 mil euros e vai aos 310 km/h
Bentley Continental GTC. Ronaldo saiu do treino de ontem neste carro de 275 mil euros. Gasta 15 litros aos 100 km."
Podia comentar a cadência das palavras como ancas que se movem sem parar, a originalidade literária em frases como "custo equivalente ao valor de 18 Opel Corsa 1.3 75cv", ou mesmo a promiscuidade como elemento que potencia o desejo: "Cristiano Ronaldo tem dois, um em cada país." Mas já tenho o peito a arfar. Tantos cavalos no motor. Tanto gel no cabelo. Ronaldo, por favor, tira a camisola e atropela-me na Segunda Circular.
quinta-feira, 8 de janeiro de 2009
quarta-feira, 7 de janeiro de 2009
'Bora não cantar as janeiras?
No dia que entrámos em recessão (pelo menos nas previsões), o primeiro-ministro ouviu cantar as janeiras nas escadarias do palácio de São Bento. Meninos com o uniforme do colégio militar elogiavam o nosso timoneiro Sócrates na letra da canção. Os rapazes eram certamente muy católicos e tão lusitanos como Viriato. O primeiro-ministro aguentava o sorriso das cerimónias obrigatórias no calendário - o mesmo sorriso que encaixamos na cara quando nos oferecem um par de meias. Em dia inaugural de recessão, imagino que Sócrates preferisse estar no seu gabinete, a trabalhar, em vez de ser louvado como líder.
E mesmo que seja uma tradição anual, havia ali qualquer coisa do Portugal das reverências e dos salamaleques, um Portugal tristemente sebastianista, que dá pena, o filho débil que precisa de um pai de mão dura - os portugueses chamam a isso carisma. Em dia inaugural de recessão o primeiro-ministro estava onde não queria: no passado.
E, como no passado, o ministro das Finanças, nesse tal dia de previsões de recessão, falou cinco minutos, sem responder a perguntas dos jornalistas, e sem mencionar a notícia do dia - a recessão. Ele fala do que quer, os outros ouvem. E mai' nada. Isso sim é carisma, senhor ministro.
Por uma vez na vida, gostava de ver um governante que motivasse os portugueses, que os elucidasse, que lhes desse pistas para enfrentar as dificuldades, que nos fizesse perceber que os sacrifícios valem a pena porque estamos a avançar para algo melhor. Ontem isso não aconteceu. O primeiro ministro aguentou o sorriso e disse que queria que, para o ano, lhe cantassem outra vez as Janeiras. O ministro das Finanças, por sua vez, parecia estar a fazer um favor aos portugueses quando debitou o seu monólogo para microfones. Nunca percebi porque continuamos a esperar por dom Sebastião (ou por aqueles que se fazem passar por ele), se o rei era tão incompetente como para atacar um território que não nos fazia falta e morrer no acto. O sebastianismo não é esperança - é preguiça, é incompetência, é marcar passo.
terça-feira, 6 de janeiro de 2009
Diz-me as tuas prioridades, dir-te-ei quem és
Portugal foi o único país da União Europeia que aumentou as vendas de carros de gama média alta em Dezembro - mais 40 por cento que no mês anterior. Os BMW dispararam. Uma alegria sobre rodas. O rei vai nu, claro, mas com estofos de pele e gps de série. País de patos bravos exibicionistas. Se houvesse uma sequela da aventura de Noé e da sua arca, aposto que muitos pais de família estariam divididos entre levar o casalinho de filhos ou levar os dois carros com jantes de liga leve. Que venha o dilúvio.
segunda-feira, 5 de janeiro de 2009
The Bleak World
Um filme para a Penguin Books, escrito e realizado por um amigo que vive em Londres. É português. E sabe muito bem o que anda a fazer. Enjoy.
sábado, 3 de janeiro de 2009
O Elogio da Crise
(Texto publicado no número 4 do Jornal do Lux)
Portugal queixa-se da crise, mas esta pode ser a nossa oportunidade para sairmos do comodismo do sofá. Já passámos demasiados anos embalados no conforto dos carros, dos telemóveis e do deixa andar. Não queremos desperdiçar mais oportunidades. Com a crise surge a metamorfose.
Por Hugo Gonçalves
Esta história começa nos Estados Unidos e acaba em Portugal. E mesmo que não pareça, ainda pode ter um final feliz. Depende de nós.
Tragédia número 1: o comediante norte-americano Grouxo Marx ficou sem 240 mil dólares (“Podia ter perdido mais, mas era todo o dinheiro que tinha”, disse Grouxo) quando a bolsa de Wall Street se desmoronou em 1929. Um dos seus amigos, Max Gordon, assessor financeiro, ligou-lhe. Gordon disse então as suas últimas palavras e deu um tiro na cabeça.
Tragédia número 2: setenta anos mais tarde, em Dezembro de 1999, eu estava na Venezuela para escrever sobre as inundações e derrocadas que mataram mais de 15 mil pessoas: as chuvas tinham destroçado os morros onde antes se equilibravam milhares de barracas; rios de lama empurraram carros, pessoas e casas até ao mar, despedaçando tudo contra os hóteis de luxo e as mansões de praia da alta burguesia de Caracas. No país que acabara de eleger o comandante socialista Chávez, esta era uma estranha forma da Natureza explicar a luta de classes. Eu, jornalista em fim de estágio, que ainda usava sapatos de vela, comprei o bloco de apontamentos que mais me aproximasse do jornalismo dos filmes Terra Sangrenta e Os Homens do Presidente. Tinha boas intenções. Mas no final dessa semana de reportagem, percebi que, por mais empenho literário que tivesse, haveria coisas que nunca conseguiria contar com suficiente precisão emocional. Tinha apenas de vivê-las: como a irremovível presença do cheiro dos mortos espalhados pela praia, misturados com o lixo, um cheiro dolorosamente doce que se instalava no céu da boca e subsistia mesmo depois de lavarmos os dentes.
Numa estrada de terra onde as pessoas caminhavam em busca de um campo de “damnificados” – assim lhes chamavam os jornais venezuelanos –, quis fazer perguntas a um homem que transportava um frigorífico. Tinha perdido a mulher e os filhos, soterrados dentro de casa. Sobrara-lhe aquele electrodoméstico que acabara de pousar na lama. No final, estendeu-me a mão e, como se fosse eu que precisasse de estímulo, despediu-se: “Buena suerte amigo, siempre p’alante.” E adiante foi, com o frigorífico às costas.
No seu discurso de vitória, o optimista pragmático Barack Obama avisou que as coisas não iam andar bem no futuro: “Duas guerras, um planeta em perigo, a pior crise financeira num século”. O mundo encolhe-se, tosse, sofre dores, tem demasiado medo. Pode vir aí uma depressão tão decisiva e prolongada como será, por ventura, o aquecimento global caso fiquemos quietos. Portugal também se lamenta. Parece um paciente depressivo que nem consegue tomar a medicação. E eu pondero se esta crise não será antes a nossa oportunidade. Pergunto-me: continuamos na vida em loop ou abrimos a pestana?
Nós, os que nascemos depois do 25 de Abril, nunca tivemos uma causa geracional, metemos nojo aos colunistas que lutaram pela liberdade, somos os doutores e engenheiros que queriam que fôssemos; somos os primeiros filhos da classe média, somos os irmãos anónimos de Tyler Durden, de Clube de Combate. Temos a sua desilusão precoce, embora nos falte o inconformismo incendiário, porque temos sempre a desculpa de que há alguma coisa melhor a passar na televisão. Senhoras e senhores, Tyler Durden: “Na História, somos o filho do meio; não temos um propósito, um lugar, não temos nenhuma grande guerra, nenhuma grande depressão; a nossa grande guerra é espiritual; a nossa depressão são as nossas vidas.”
Nós, os filhos da pós revolução, crescemos com televisões a cores, com jogos de computador, com os vídeoclips da MTV a açucarar-nos a vida. Nunca estamos sozinhos – os telemóveis, as sms, o messenger, o facebook. Recebemos o conforto que faltou aos nossos pais. Trabalhamos num escritório com ar condicionado e wi-fi, numa rua com dezenas de multibancos. Estamos sempre na vanguarda da superfície das coisas – o mp3, o plasma para a sala, a assinatura da Sport TV. Podemos viajar, ler jornais estrangeiros na internet, encomendar livros de Inglaterra, comer massas tailandesas. Queremos ser intérpretes do aforismo moderno: pensa globalmente, actua localmente. Mas as nossas maiores emoções colectivas são partilhadas diante de um jogo da selecção nacional. As nossas maiores emoções pessoais precisam de ser intensificadas com desportos radicais, com o consumo de drogas, com o sexo a abrir, com a esperança de um amor que não resulte no modelo de família protagonizado pelos nossos pais. E, no entanto, tantas vezes os copiamos.
Habituámo-nos a que personagens como Valentim Loureiro ou Alberto João Jardim fossem tidas como figuras cómicas em vez de desastres para a nação. Cruzámos os braços. Não fomos votar no referendo do aborto. Comprámos, por fim, a casa. Crescemos entre a abundância parola dos centros comerciais e o medo do risco, esse legado de uma ditadura tão insuficiente como pacóvia, que se agarra a nós como um polvo durante o cio. Portugal: o país de rabo entre as pernas, pobre, mas que se comporta como novo rico. Tivemos professores obsoletos que anunciavam que nunca dariam mais de doze valores num exame, deixámos de acreditar que o mérito abre caminho, passámos a vida a empurrar elefantes na areia para chegar a algum lado. Num conciso exercício de clarividência, o presidente da Liga de Futebol descreveu-nos: “Somos muito resistentes à mudança.” – o país num cartão postal: futebol e pasmaceira.
Dizemos que, mais de um século após terem sido escritas, as análises de Eça de Queiróz ainda nos descrevem. Dizemos, sim, dizemos. E o que fazemos? Ouvimos Saramago explicar porque escreveu O Ano da Morte de Ricardo Reis. Conta ele que pegou numa frase do heterónimo de Pessoa – “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo” –, e quis perguntar ao seu autor se em Portugal, naquela década de 30, numa Lisboa fraca nas ambições, cinzenta nas caras e asfixiada no cérebro, bastava com estar contente diante do espectáculo do mundo, sem fazer nada. Eu pergunto: e hoje, basta? Será que ainda temos capacidade para perguntar, como a personagem idosa de Jack Nicholson, que entra na sala de espera do consultório do psicólogo e questiona: “Is this as good as it gets?” Em todo este tempo, do D’Artacão à Luciana Abreu, do Pinheiro de Azevedo ao Santana Lopes, do telefone de disco ao telemóvel com raio laser, parece-me que alguma coisa se nos escapou, que alguma oportunidade se perdeu, que pedimos para sair do barco e fomos para casa, onde se está muito mais confortável.
Com a crise nasce a oportunidade – de meter um fundo a este fundo. Chega de justificar qualquer falha com: Isto é Portugal, pá. Seja o café que vem frio, o dinheiro que desapareceu do banco ou a impunidade sem vergonha, não queremos ouvir mais a desculpa: Isto é Portugal, pá. Não serve. Vocês deram-nos a liberdade, o ensino superior democratizado, os empréstimos à habitação. Nós agradecemos. Já não precisamos de cavar a terra para comer. Obrigado. Temos o essencial para dar o passo seguinte e não temos medo de assumir as nossas insuficiências. Não temos complexos de inferioridade. Sabemos que há muito que fazer. Mas queremos mais que um carro desportivo, e o maior centro comercial da Europa, e telejornais de hora e meia. Também já não somos fatalistas, nem desgraçados, nem nos resignamos diante da tristeza como se fosse uma marca genética. Isso, acreditem, já não nos diz nada.
Em breve, caso a depressão económica nos arrase, deixaremos de ter subsídios de férias, e segurança social, e ar que se respire. Em breve talvez sejamos mais frugais, mais sensatos, obrigatoriamente mais activos – a necessidade apura o engenho. Precisamos muito desta crise. O Empire State Building foi construido durante a depressão dos anos 30. Picasso estava exilado na capital francesa quando Franco deixou que a força aérea alemã incendiasse uma aldeia no País Basco. Depois, Picasso pintou Guernica. O trabalho de Nelson Mandela, por exemplo, não foi nada facilitado pelos 27 anos que passou na prisão. Mas a sua perseverança durou muito mais que esses 27 anos de cela. Dizer que os tempos de crise estimulam grandes ideias e mudanças não é fazer nenhuma descoberta inédita. Os homens precisam de superar as suas circunstâncias – muito bem explicado (e tão duramente) na frase que Orson Welles acrescentou ao guião do Terceiro Homem, escrito por Graham Greene: “Em Itália, durante os 30 anos dos Bórgias, houve guerra, terror, sangue, mas produziram o Miguel Ângelo, o Leonardo Da Vinci e o Renascimento. Na Suíça, houve amor fraternal, 500 anos de democracia e paz, e o que produziram? O relógio de cuco.”
Não queremos guerra nem sangue. Mas queremos o tempo que nos pertence. Sim, também temos culpa, também já confundimos o que é essencial com o que é assessório, já conduzimos bêbedos, já nos drogámos mais que a medida, já fizemos demasiadas coisas pela metade, já preferimos o conforto inconsequente ao prazer de fazer o que realmente gostamos. Houve dias, meses, anos, em que não crescemos quase nada. Mas um país que se está a cagar para tudo é um país de merda. E nós não queremos viver na latrinas. Vem aí a crise – é a nossa chance. Sabemos que estamos melhor preparados, sabemos que temos a força nas pernas, a resistência no coração e o brilhantismo na cabeça. Este momento é nosso, saiam da frente. Vamos ser melhores políticos, melhores pais, melhores cidadãos. Seremos muito mais exigentes, simpáticos, curiosos, divertidos, disponíveis, ambiciosos, inconformistas. Deixaremos de encolher os ombros quando nos responderem: Isto é Portugal, pá. Não seremos indulgentes, nem passivos, nem mandriões. Não precisamos de ser os melhores da turma. Mas queremos chegar a casa, ao fim do dia, e dizer: Fizeste bem, amanhã há mais. Fighting the fight, percebem?
Há quase oitenta anos o amigo de Grouxo Marx matou-se com um tiro na cabeça e evitou assim cruzar uma década de depressão económica e a grande guerra que se lhe seguiu, enfim, uma vida inteira. Há quase dez anos um venezuelano com um frigorífico às costas decidiu enfrentar o caminho para diante sem família, sem nada. Qual destas duas histórias nos convence mais? Qual é a nossa resposta quando a tragédia ou a crise ou conformismo tornarem as nossas vidas insuportáveis?
Sabem quais foram as últimas palavras do amigo de Grouxo Marx, ao telefone, antes de disparar a pistola, referindo-se ao descalabro da bolsa? “The joke is over.” Também aqui chegou o tempo de se acabar com a palhaçada. O que ainda nos falta fazer começa, exactamente, agora.
sexta-feira, 2 de janeiro de 2009
Rewind & Fast Foward (compacto de Natal e Ano Novo)
e por isso, naquele palacete de Lisboa, quando ela, na noite de ano novo, ainda bonita, com falta de equilíbrio nas pernas e no discurso (embora sempre elegante), de vestido preto e sorriso Burberry's, me perguntou, 'quando é que voltas a escrever?', eu, que tinha o copo de plástico quase vazio e pouco sentido de orientação, enrolei a língua, 'preciso de mais vodka neste gelo'; e não voltei a pensar em escrever até que me sentei aqui para, num instante, estar outra vez a correr para o Estádio da Luz, dias antes da consoada, atrasado para um jogo de bocejo entre o Benfica e o Nacional da Madeira; o meu vizinho de bancada enrolou uma ganza, o meu vizinho de trás conseguiu repetir a palavra 'xuxu' em cada frase - 'Xuta, Xuxu', 'Olha-me este Xuxu', 'Então não foi falta, Xuxu?' - e ainda comi uma febra no intervalo; depois entrei num carro para o Bairro Alto, onde apareci num jantar com pessoas que não conhecia, e alguém falou da Islândia, depois dos transsexuais no Irão, e já estava no Majong, onde um rapaz musculado, sem metade do teclado dentífrico, mas com narinas de muita coca e mortinho para andar ao estalo, me perguntou se eu achava que ele era paneleiro - não fosse o meu estado ébrio impedir-me de responder, e de certeza que a suas mãos de carroceiro tunning teriam feito de mim mais um boneco na mesa de matraquilhos.
claro, e a consoada: um exercício de rapidez numa família que, por vezes, parece uma granada após a explosão: cada fragmento para o seu lado. havia uma televisão acesa, e eu e os meus irmãos jogámos dominó, e os presentes foram atacados antes de tempo pelos meus sobrinhos, crianças adoráveis mas em estado de choque pela abundância de caixas e papel de embrulho e brinquedos. regressei a casa. dormi sozinho.
e mais dias e noites com o conforto dos amigos, tantos deles que, por esta altura, regressam de cidades fora de fronteiras; horas entrelaçadas de disparate, outras de comodismo, uma casa de fados, deitar-me cada vez mais tarde, e a clara consequência dos excessos: uma espécie de bolha de álcool e leitão assado e sobredose de açúcar, o sono a empurrar-me para uma posição vertical de sofá, a preguiça sem solução, a lucidez cada vez mais embaciada.
noite de ano novo. três retratos de três festas. enfim, um esforçado exercício de síntese e desaceleração da realidade dessas 12 horas de festa a prego a fundo.
primeiro: uma mulher que me falou do seu trabalho social (uma história de louvar), eu a dizer-lhe que, segundo um estudo recente (li num jornal?) o altruísmo nos faz mais felizes que o egoísmo, e ela, altruista, com uma das pernas em ângulo quase recto, o pé sobre um canteiro, o vestido a subir sempre que ela passava a mão entre o joelho e a coxa. despedi-me. fui-me embora.
segundo: na festa seguinte, num palacete em Lisboa, o tempo passou tão depressa que, de repente, já estou outra vez num táxi a chegar ao Cais-do-Sodré.
terceiro: perdido na selvajaria do after hours do Europa, cruzando a espessura atmosférica do calor, da transpiração colectiva, da drogaria eufórica da multidão, I found a young lady, dressed in pink, que me sorriu como se me perdoasse todas as insuficiências, tão visíveis na minha cara quando saí para a rua e já era de dia.
durante toda a noite puxaram-me a gravata. tinha transpirado na pista de dança. olhar-me nas montras não seria aconselhável. Lisboa estava acordada, molhada, com vontade de não sair à rua. eu precisava de dormir. cheguei a casa de dia: a auto-estrada, na janela do táxi, cinzenta e tranquila, obrigou-me a perceber que, por vezes, num fulminante momento de tristeza e cansaço festivo, estamos irremediavelmente sozinhos - e que, logo de seguida, deixamos outra vez de estar sozinhos. e eu (sei-o tão bem) preciso de fazer sempre, mas sempre, essa viagem de retorno.
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