quarta-feira, 6 de maio de 2009

Lisboa, por vezes, é Havana


Mais do que uma vez me disseram que não se pode viver como na ficção. E apesar da insistência, continuo a acreditar nos atributos dramáticos da realidade como se fossem um estilo de vida.

Ainda hoje, por exemplo, quando cruzei a ondulação quente dos passeios, e os números digitais confirmavam o calor da noite, e a minha língua, citrina de cerveja mexicana e cigarros, pensou em beijos na boca.

Caminhava numa dessas ruas cujos únicos habitantes são árvores demasiado quietas por causa do calor, e percebi (não é a primeira vez) que Lisboa se transforma em Havana. Se não vejam: a electricidade estática de um noticiário televisivo a atravessar uma cozinha onde se faz o jantar, trazendo para a rua, além das novidades do mundo, o cheiro de pimentos e frango assado e uma manga a ser descascada.

Desci a rua e duas mulatas passeavam o cão. Uma delas, mais velha, tinha unhas cuidadas a vermelho e calças brancas, justas, cintadas, numa eficaz tentativa de suavizar as rugas atrás das hastes dos óculos. A mais nova bamboleava-se, segura da sensualidade do seu peso, que as revistas femininas condenariam mas que todos os dias inquieta os homens do bairro. Como o mulato casado, que lhe paga a conta da pastelaria e que gosta de afastar-lhe o cabelo, brilhante e mais negro pelo suor, que se cola no pescoço dela assim que passam do chão para a cama.

E depois os prédios arranhados por uma decadência que os turistas julgam charmosa, os fumos doces da gasolina, uma banda sonora de apenas alguns segundos sempre que passa um carro com todos os vidros em baixo. E cães que ladram na rua de trás, e miúdos que se desviam de um pára-choques para salvar uma bola, e a hipótese de que alguém nos convide para mais uma garrafa de cerveja.

Cheguei a casa, as janelas abertas como as tinha deixado de manhã. E mesmo assim a sala tem o peso do calor que esteve aqui o dia inteiro. Chá gelado e música na rádio. E agora, posso dizê-lo com toda a certeza, da minha janela posso ver o Malecon.

4 comentários:

idorine Maria disse...

Mas há outra maneira de viver a vida sem ser como na ficção? Desconhecia.

Marta Pisco disse...

Marta likes this.:)

April disse...

Sentir assim é, talvez, "comum". Pelo menos para mim.
Mas escrever assim, é uma benção.

L.T. disse...

gostei muito!
e sim, acho a ficção tão mais interessante que a realidade que a minha realidade me passa quase despercebida umas 3 horas por dia...