segunda-feira, 19 de julho de 2010

O Estado da Nação, texto publicado no i


Um estranho em São Bento

Num corredor do Parlamento, Eduardo está sentado na cadeira de veludo. Tem a seu lado duas colegas do sétimo ano. Os três teclam nos telemóveis, esperam que os outros miúdos usem as casas de banho. O debate no hemiciclo começou há uma hora e lá dentro há quem feche os olhos e não resista ao calor, ao corpo a pedir sesta, aos deputados que parecem alunos de liceu hiperactivos, tantas vezes indiferentes ao orador do momento, actualizando o Facebook, falando para trás, para o lado e para o telefone. Porque Eduardo é tão estreante nestas coisas do parlamento como eu, porque ainda não tem idade para cinismos, parece-me melhor interlocutor que os assessores parlamentares. Eduardo diz-me, sobre a viagem de estudo: “É interessante”. Quanto ao estado do país, informa-me: “Não tem nada a ver com o que o primeiro-ministro disse” – José Sócrates tinha falado do sucesso das medidas contra a crise, dos bons indicadores económicos, da aposta na ciência e tecnologia, da defesa do Estado Social e da importância do optimismo.

Escolher um adolescente para comentar o debate parece tão gratuito como os programas de televisão com criancinhas a cantar. Mas eu só queria descobrir alguém que ainda não tivesse sofrido desgostos políticos. Uma visão livre de preconceitos. Tudo isto porque decidi enfrentar a minha primeira viagem ao parlamento com o mesmo entusiasmo com que visitaria a Disneylândia caso alguém me tivesse levado em criança. E começou bem: a Assembleia parece funcionar com o profissionalismo de um condomínio fechado. Tudo impecavelmente polido e brilhante, senhoras de bata que empurram carrinhos como num hotel, menus no refeitório com direito a opção dieta, uma biblioteca com candeeiros dourados.

Há qualquer coisa de country club naquelas madeiras. Há qualquer coisa de requinte funcional, de serviço de conciérge, de internet sem fios grátis. Mas o parlamento também tem as características de uma escola ou de um quartel, esses sítios onde se juntam pessoas que se isolam do exterior – além do regimento oficial há um código de costumes para quem lá vive, as conversas nos corredores, as sms dos deputados para os jornalistas ao longo do debate, os apartes durante um discurso como uma guerra de bocas na sala de aula, o grupo parlamentar do PS aplaudindo quatro vezes o primeiro-ministro nos primeiros 2’51 minutos da sua intervenção, aplausos que surgem antes de
Sócrates finalizar uma ideia, aplausos regimentais.

O debate é aborrecido e, duas horas depois, há menos deputados nas cadeiras, os miúdos das escolas desapareceram das galerias. Mesmo tendo votado em branco, quero saber se me foi atribuido um deputado. Por sorte, encontro o único parlamentar que conheço pessoalmente – entrevistei-o antes das eleições. António Leitão tem 30 anos, estudou em Harvard, foi eleito pelo PSD. Faz-me uma visita guiada e diz-me que sim, que as pessoas têm direito a um deputado, que na próxima semana vai receber uma senhora que o contactou por email. Mas também me diz que: 1) o peso do ritual é brutal e as coisas não funcionam tão bem como deviam 2) pode não fazer-se nada como deputado ou pode fazer-se imenso como deputado. 3) não se governa a partir do parlamento, ou seja, a ilusão de mudanças rápidas geradas no hemiciclo seria uma ingenuidade.

Basta um debate no parlamento para perder a inocência de estreante. Basta olhar para o hemiciclo para perceber que aquelas pessoas gostam tanto das redes sociais como nós e que também bocejam sem tapar a boca. Em determinados momentos tudo aquilo parece inútil, como se fosse um teatrinho para as câmaras. Noutros momentos parece solene, tão decisivo e imponente como as escadarias do edifício.

No corredor deserto António Leitão pára de falar porque aparece José Sócrates acompanhado de seguranças. Diz-nos: “Boa tarde”. E em seguida comentamos a resiliência do primeiro-ministro. Sócrates regressa minutos depois. Voltamos a calar-nos. Vejo-o caminhando, sozinho, afastando-se sobre o tapete vermelho, sem a escolta dos seus ministros no hemiciclo, e lembro-me que o chefe de governo gosta de Fernando Pessoa. “O que há em mim é sobretudo cansaço/ Não disto nem daquilo,/ Nem sequer de tudo ou de nada:/ Cansaço assim mesmo, ele mesmo,/ Cansaço”. Só agora me dou conta que o cansaço não é apenas do primeiro-ministro, é um cansaço antigo que está nos retratos de todos os mortos pedurados no parlamento, na cara de parvo de D. João VI, no olhar assertivo de Sá Carneiro, no público nas galerias, nos deputados que acumulam legislaturas, na nação que está a ser debatida, “um supremíssimo cansaço./ Íssimo, íssimo. íssimo,/ Cansaço…”.

2 comentários:

JPM disse...

Caro Hugo,

Muitos parabéns pelo teu trabalho. Tanto nas crónicas do i , como no canal Q e outras coisas que vou apanhando aqui e ali. És uma lufada de ar fresco nos comentadores da nossa sociedade.

Um abraço.

Escrevinhador disse...

Olá,
Dou-lhe os parabéns por este seu espaço. É muito interessante. Já sou seguidor e vou passar por cá mais vezes. Deixo-lhe o convite para que passe no meu blogue, o Interjeições, e seja também seguidor do meu espaço.
Abraço,
Escrevinhador