sexta-feira, 11 de março de 2011

Anita vai à manifestação, hoje no jornal i


Anita já não é menina nem ingénua. Anita é adulta. Mas não acha que sabe tudo nem é especialista em Finanças Públicas. Estudou na universidade e fala três línguas. Usa botas de salto, quer ser mãe e não é membro de coisa alguma – nem mesmo de um ginásio. Anita vai à primeira manifestação da sua vida – tirando aquela vez, em Nova Iorque, em que deu por si no meio de um protesto contra a invasão do Iraque. Anita não gosta da redução da realidade a definições como “Geração à Rasca” ou “Deolindos”. Isso é trabalho para publicitários ou criadores de tendências. Anita não é a Barbie. Trabalha há dez anos a recibos verdes e tenta ser organizada. Por isso, comprou um caderno. Nele escreveu as razões que a levam a manifestar-se:

1
Anita não tem soluções engenhosas para os problemas de Portugal, mas sabe que esteve parada demasiado tempo. Está determinada a fazer mais.
Tomar consciência das metástases do país foi o primeiro passo para a acção – e as metástases têm sido tão analisadas, evidentes e repetidas, que ela entende bem o perigoso estado de saúde do país.

Anita não grita apenas porque sim. Não é parva. Informa-se.
O segundo passo foi perceber que nunca tinha participado numa manifestação, que o seu direito de reclamar, denunciar, debater não se limitava aos amigos, blogs, redes sociais e comentários de leitores nas edições online dos jornais. Anita acredita que esta manifestação pode ser importante para mudar o paradigma nacional do comodismo, da irresponsabilidade, da postura “que se foda o outro e o que vem a seguir”. Esta manifestação pode ser uma forte declaração de intenções: queremos ser melhor que isto, mais limpos, mais competentes, queremos ser melhor do que fomos até agora. Esta manifestação pode ser a pré-primária da participação e da educação cívica para muita gente: ter sentido de comunidade, pertencer, não estar sozinho. Mexer o rabo.

2
Esta não é uma manifestação para consertar Portugal ou os portugueses – as manifestações consertam alguma coisa? Uma manifestação não é um caixa de ferramentas, um think tank, um programa de governo. Esse não é o seu propósito. E para os que têm medo dos aproveitadores, demagogos e pré-tiranos, Anita tem a dizer que esta manifestação não trará nem o primeiro ditador europeu do século XXI nem D. Sebastião. Os malfeitores e os populistas estarão lá, como estiveram na Alameda e na praça Tahir, mas Anita não acredita em líderes enviados pela providência nem em soluções fáceis. Anita já não precisa que lhe ensinem a olhar para os dois lados antes de atravessar a estrada.

3
Anita está cansada da crispação, do sound bite, do spin das notícias. E acha que há uma realidade – produzida pelos políticos, pela comunicação social e pela voragem colectiva de informação – que é teatral, por vezes infantil, e que é dada ao drama e ao espectáculo. O país anda confuso como a vítima de um AVC diante de uma maratona de telenovelas. O que é real e o que é jogo?
Anita, talvez recuperando a ingenuidade do tempo em que protagonizava livros infantis lidos pela sua geração, acredita que esta manifestação pode ser uma forma de perceber que, apesar das diferenças, é mais importante o regresso ao bom senso, ao discurso ponderado e à união das vontades. Se os partidos não se entendem entre si, incapazes de abdicar deles em favor do país, enrolados na sua própria teia narrativa e eleitoralista, o povo dá as mãos (por vezes, Anita tem surtos de PREC, mas é mulher sofisticada e gosta de coisas boas).

4
Anita, que já namorou rapazes de outras nacionalidades, gosta de diversidade: muitas das pessoas que conhece, e que irão manifestar-se, vão fazê-lo por motivos diferentes: justiça empenada, corrupção impune, precaridade prolongada, derrapagens orçamentais, despesismo, clientelismo etc. A lista de erros e desperdícios é longa e levou os 20 últimos anos para estar pronta. Cada um terá as suas razões para estar na manifestação, mas há um propósito comum. Isso interessa a Anita, que poucas vezes na vida sentiu esse propósito comum.

5
Anita pode até dizer que não se importa com o paternalismo dos mais velhos, o desdém dos comentadores, os atestados de estupidez passados à sua geração. É mentira. Anita irrita-se com a petulância daqueles que acham que sabem tudo e que são donos da verdade, subestimando e cuspindo nos seus filhos como os pais fizeram com eles. Por isso, acha que a manifestação será uma boa maneira de mostrar que nós, os filhos mimados da democracia e do cartão de crédito, não somos tão trastes nem patetas como nos julgam. Anita gosta de tolerância e inteligência. Não está interessada em insultar polícias, incendiar carros ou comer gelados com a testa.

Anita, como tantos outros, está pronta para sacrifícios e para apanhar as canas nos próximos anos. Sabe o que aí vem. Não é, já aqui se disse, parva. Mas precisa de um rumo, de uma mudança de pele colectiva. Anita já não é ingénua. Não é por isso que vai deixar de ter sonhos e de sair à rua.

Nem rasca, nem à rasca, nem Deolinda nem interessada no Festival da Canção nem manipulável por partidos ou demagogos ou alienígenas. Anita, por sua própria cabeça, vai levar as suas botas de salto à manifestação.

1 comentário:

Laura Ferreira disse...

Boa, Anita, vai em frente!