sexta-feira, 20 de maio de 2011

Bolas de Berlim na praia e melão na varanda, publicado no i


Proust e sua madalena
Pergunte-se a um chefe de cozinha que menu escolheria para última refeição antes de ir desta para pior e quase todos incluirão um ou mais sabores da infância.
Pergunte-se a um daqueles cientistas que investigam cérebros sobre os artifícios da memória, e quase todos dirão que é mais fácil guardar uma recordação marcada pelos sentidos do que é decorar um número de telefone, essa sequência desinteressante de algarismos sem memórias de uma cara lambuzada de fruta com o mar ao fundo e os pés descalços.
Pergunte-se ao fantasma de Proust sobre os contributos de uma madalena mergulhada no chá para a ciência das viagens no tempo, e ele responderá com sete volumes.
Há no nosso sangue rabanadas de Natal com cheiro a lareira e irmãos em pijama, há o espanto do primeiro caracol na língua, há rissóis de camarão que a vizinha do 2º Esquerdo vendia para fora.
Nós somos aquilo que já comemos.


O anjo de chapeuzinho branco
Ele tinha cara de irmão Metralha – quantos fósforos acendeu na lixa da barba? – e óculos espessos como as lentes de um telescópio. Usava sandálias de cabedal sobre meias turcas. Tinha o cheiro do suor e do vinho e, no entanto, era um anjo branco que marchava sobre a areia, distribuindo milagres a troco de moedas, cantando com voz de taberna o mais belo dos pregões: “Eeeeh boli Berlim, olha a bolinha quentinha.”
Esqueçam os perdigueiros de caça e os poderes Jedi e o sentido de aranha de Peter Parker. Ouvia o chamamento do anjo branco ainda ele estava a sair da padaria. Podia estar a meio de uma competição de carreirinhas, mas sabia perfeitamente quando é que o anjo trocava o seu chapeuzinho de marinheiro pelo capacete e montava a moto com atrelado onde transportava, numa cesta, o tesouro de açúcar. Ele metia o pé na areia da praia e eu tornava-me tão rápido como uma falsa partida, disparava praia fora, saltando sobre bifas com pele de churrasco, desinteressado do topless estrangeiro, galopando para o chapéu-de-sol onde a minha mãe começava a fazer contas – “Para ti, para o teu irmão, para o teu primo, e compra mais duas para os filhos da São.”
Mãe, como é que podias atrasar dessa maneira adulta e preocupada toda a urgência que eu tinha no corpo? Claro que me davas as moedas – lenta na execução, mas davas – e já tinha um atraso para os outros miúdos em corrida. Mas eu era rápido como o metabolismo de um hamster. Lá ia, miúdo bala, no encalço do loirinho que tinha uma prancha de skimming e acesso às revistas pornográficas do pai; pela minha esquerda apresentava-se a ameaça de uma gazela algarvia ainda sem maminhas que um dia me chamou “lisboeta escarreta” durante um jogo de apanhada. Mesmo a meu lado, tentando ganhar posição, vinha o gordo que ia ao banho de T-shirt e que se limitou a ficar para trás, comendo a areia largada pela rapidez das minhas pernas.
Nem sempre chegava em primeiro. Por vezes, o anjo branco já tinha aberto a cesta, começando a distribuir os milagres.
Regressava ao chapéu-de-sol depois de entregar as moedas, caminhando como um cowboy depois de salvar mais uma cidade dos bandidos. Comia a primeira bola de Berlim antes de chegar ao chapéu-de-sol. Guardava a segunda para mais tarde, quando toda a praia celebrasse a minha glória de campeão de carreirinhas.

Sobre a hierarquia familiar das refeições
Não havia naquela casa de Verão regras austeras para o comportamento à mesa. Não se lambiam facas nem se arrotava, é verdade, mas havia quem comesse em tronco nu, quem pusesse música no rádio em cima do frigorífico, quem me ameaçasse com uma sequela do Alien: “Se engulires um caroço de cereja [degluti vários], cresce-te uma árvore na barriga.” Naquela casa não havia protocolos diplomáticos na hora do almoço. Mas ninguém se sentava à mesa antes que o meu avô chegasse.
Era fácil saber quando ele se aproximava – outra vez os meus super poderes. Da longa varanda do segundo andar – andei lá de patins – ou do terraço mais acima – andei lá num carrinho Fórmula 1 a pedais – podíamos vê-lo chegar, o boné na cabeça transpirada, os seus pés pesados e a barriga de melancia subindo as escadas de mármore, uma melodia que nos punha em sobressalto.
Mesmo sem super poderes, os adultos também podiam antecipar a chegada do meu avô. Onde quer que ele fosse, ia a assobiar: fados, marchas e mais fados. O seu assobio era motivo de plágio por parte dos canários, habitantes amarelos da gaiola que todas as noites a minha avó cobria com um pano como quem aconchega os netos na cama.
O meu avô, além de alto e grande e com mãos de Hulk, tinha o atributo de saber tudo sobre a qualidade da fruta. Ele apertava um melão, cheirava um pêssego, via uns morangos de esguelha e tinha uma sentença em poucos segundos. Nenhum vendedor de melão casca de carvalho ou nêsperas, à beira da estrada, conseguiu passar-lhe a perna.
Os miúdos comiam na varanda, numa mesa desmontável. Os grandes almoçavam na cozinha. Mas a circulação era livre entre as mesas. E havia sempre fruta. Mas não era fruta impingida, não nos sentíamos prisioneiros molestados como acontecia quando nos serviam fígado. Nós comíamos fruta com o (quase) entusiasmo de quem trinca o chocolate de um Perna de Pau.
O meu avô sabia que uma melancia de seis quilos – “A maior e melhor que lá havia” – tinha em nós o efeito de um um cão com duas cabeças. Queríamos a maior melancia, o pêssego que parecia uma toranja, as bananas que serviriam de sabre de Sandokan em duelos à mesa.
Mais que o número de circo da melancia gigante, o que se entranhou em nós foi a colher a entrar na meloa cortada ao meio – “Metade para ti, metade para o teu irmão” –, o sabor vermelho das cerejas, a frescura aquática da melancia, o queixo a pingar pêssego, os gomos das tangerinas fazendo a vez de barcos que naufragavam nas nossas bocas, a perfeição das talhadas de melão quando o meu avô pegava na faca e produzia cubos de felicidade tão fria que magoava os dentes.
Proust, espero que não me leves a mal estar aqui a falar dos poderes mágicos da comida sem ter lido um volume sequer da tua obra-mestra. Mas acabei de comer uma bola de Berlim numa tarde de primavera que me pareceu de verão. O resto do dia, passei-o a assobiar.

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