quarta-feira, 22 de junho de 2011

Um dia especial


"O primeiro dia deste governo podia ter sido contaminado pelas imagens daquele homem que, perdido e sozinho no hemiciclo, parecia um menino transferido de escola a meio do segundo período. Fernando Nobre, que passou de popular nas urnas presidenciais a impopular na campanha para as legislativas - até que foi empurrado para um canto do parlamento -, não resistiu nas notícias muito tempo. História contada, história empacotada. Havia holofotes para acender, câmaras para ligar, directos para fazer, ministros para apanhar a sair de casa. Quando um governo toma posse, para mais com tantos protagonistas novos, espalha-se nas ondas mediáticas e nos olhos dos telespectadores uma espécie de credulidade boa, de primeiro dia de escola, quando ainda não é preciso levar livros, fazer trabalhos de casa e os professores nos deixam sair mais cedo para recuperarmos amizades suspensas após meses de férias nas peladinhas do recreio da manhã."

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terça-feira, 21 de junho de 2011

Nesse corpo estreia o Verão


"É mais que geografia ou anatomia: a curva do teu ombro é também aquela curva perigosa da estrada para a praia, o cheiro do alcatrão melado misturando-se com a maresia, um pára-brisas coberto por insectos kamikaze, música tão alta que não se ouvia o motor. E a boca: comedora de Verões em cada ameixa chupada, lábios que bebiam refrescos pela garrafa, língua com língua no jogo do bate-pé."

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segunda-feira, 20 de junho de 2011

Coisas rápidas que matam devagar


"Há muita pressa e rebuliço nos nossos sistemas nervosos. Não chegou o metro e todos se levantam, uma manada de viajantes que entopem o caminho de quem quer sair das carruagens. São pequenos hábitos que nos controlam e nos corroem como uma carraça escondida na orelha."

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domingo, 19 de junho de 2011

Crónica do suplemento LiV, publicada no i


Cira, Regina e Nana*

Ela era tão bonita que ensandecia a tropa


Qualquer descrição da beleza sexual de Cira resultará na confirmação da falta do meu talento literário. Mas Cira era um avião transgaláctico, um hard body ao natural, el pivón de todos los pivones (e qualquer coisa formidável em francês que é língua que desconheço). E a língua carioca de Cira, como era? Eu queria saber. Também queria descobrir o que ficava no lado de dentro daqueles vestidos, o precipício que resvalava das suas coxas, a erupção vulcânica dos mamilos que desprezavam a lei da gravidade. Cira fazia de mim este poeta do mau gosto erótico e dos lugares comuns da sua carne - lugares tão raros e difíceis de alcançar.
Mas eu não era o único poeta atrás da musa da Urca. Muito menos o único homem a perceber a inevitabilidade da biologia nas virilhas quando ela passava, pedalando na bicicleta, voando cabelos, lançando perfume, encaixando como uma boca nas frases que eu considerava geniais: “Ela era um espectacular convite para fazer bebés”, in Slaughter House 5, de Kurt Vonnegut.
Cira era para comer, devorar, engolir inteirinha.
Depois de semanas a beber cerveja naquele bar da Urca, contemplando o pedalar de Cira, fomos apresentados pelo dono do boteco: “Esse português é famoso no país dele. É artista. Você é actriz, não é Cira?” Eu era conhecido, sim, entre os meus familiares – célebre pela minha ausência. E de artista tinha apenas um passado como larápio da boa vontade dos meus pais, que me sustentaram durante um curso de actor, outro de realizador e um workshop de escrita criativa. Também me ajudavam com a renda do apartamento em Copacabana. Cira era mais ou menos actriz. Tinha feito umas fotos para um catálogo de roupas e um anúncio de TV. Mas protagonizava muitos filmes para adultos na minha cabeça.
Cira acreditou na minha fama. Eu acreditaria em qualquer coisa que ela dissesse: “Um amigo vai dar uma festinha num veleiro, aqui mesmo.” Márcio era filho de um general com barco ancorado na marina do quartel da Urca. Comprámos cervejas e vieram buscar-nos numa embarcação de borracha com motor. A festa tinha rapazes e garotas que, como eu, eram financiados por pai-trocínios e heranças de tias, todos eles comedores e fumadores de coisas vegetarianas. Falavam de sustentabilidade e lançavam pragas – não tinham cojones para atirar bombas – a todos os franchises que invadiam o Rio. Odiavam os riquinhos fashion week de São Paulo e tinham feito voluntariado na favela. Um queria ser músico (tinha um iPod), outro dizia ser escritor de romances no twitter, outra enrolava charros com a minúcia de uma criança asiática a coser ténis internacionais.
Márcio era um vendedor de si mesmo, omnipresente no veleiro e no planeta – tinha estado com xamãs mexicanos e guerrilheiros do médio oriente. Escrevia, cantava, salvava espécies em vias de extinção. Tinha uma sunga apertada para salientar aquilo que não podia anunciar em voz alta no contínuo documentário ambulante que era a sua vida.
Cira não fazia parte daquela tripulação. Havia ali arroz com feijão em alguma parte do seu cabelo. E na bunda. Era isso, a bunda. Cira abria todas as portas, tinha uma bunda-mestra que lhe permitiria agradar em todo o lado, do Meat Packing District, bebericando cocktails pela mão de um vampiro de Wall Street ou friccionando coxas e mamas e bunda num baile funk com mais coca que farofa e tiros de AK 47 disparados em celebração de sua glória para o céu do Rio Janeiro.
Cira estava naquele veleiro porque todos – incluindo as garotas cada vez mais dengosas e dançarinas – queriam comê-la.
Márcio ofereceu-se para ir comprar mais cerveja. Levou Cira consigo. Caiu a tarde, avançou a noite e Cira não regressava. Na última vez que a vi, os soldados do quartel ajudavam-na a subir para o cais. Márcio, sabendo que não regressaria ao veleiro do papai Bonaparte, caminhou ao lado daquele corpo para fazer bebés, a mão dele colada nas costas dela, escorrendo para a bunda, uma prova da sua vitória. Depois fez um adeuzinho para o barco.
Eu fiquei longe da costa e dos flancos de Cira. Foi então que surgiu Regina com um baseado que parecia um archote: “Você conhece Fernando Pessoa?”

Ela é a moça certa carregando aquela tocha


Regina era daquelas maconheiras místicas que fala sem parar, enlaçando ideias que julga brilhantes, perdendo-se a meio de uma frase. Mal soube que eu era um escritor famoso não publicado, meteu-se a recitar Alberto Caeiro.
Perguntei: “Conheces o trabalho do Luiz Pacheco?”
“Oi?”
“Acordou um triste dia/ Com uns cornos bem bonitos./ E perguntei à Cira/ porque me pôs os palitos.”
“Esse Pacheco conhecia a Cira?”
Porque não me apeteceu explicar que mudara o nome de Maria por Cira, porque Regina verbalizava para cacete, porque era poetisa e dramaturga, porque tinha boca de boa dicção e nenhum batom, fiz aquilo que em vulgus lusitanus se conhece como: saltar-lhe à boca. Ela seria o meu farol.
Regina não aguentou os beijos de olhos fechados, as voltas e voltas que o fumo, as odes e a cerveja davam dentro da sua cabeça. Bastava olhar para ela para perceber que se sentia como a hélice de um helicóptero. Pediu licença, vomitou borda fora e foi dormir para uma das cabinas. E eu, sem acesso ao barco de borracha que Márcio deixara tão longe como Cira, ponderei saltar para a água e, caso soubesse nadar, ir chapinhando como uma criança amuada até casa. Queria fugir dali. Mas não há duas sem três. E existem tantas coisas melhores do que estar sozinho.

Não é por desmerecer nem dizer que a fila anda, mas agora vou falar do meu amor por Nana

Meu bem supremo, mãe da minha prole por nascer, minha cama, meu nano e micro amor maior. Nana: minha salva-vidas, meu resgate aquático, sereia que se jogou para o mar quando caí borda fora por exageros alcoólicos, campeã da respiração boca-a-boca. O que tenho para dizer sobre ti vai muito além das minhas limitações com palavras. Mas prometo uma coisa. Se ao fim de quinze dias ainda estivermos juntos, mudas-te cá para casa e fazemos um filho. Eu deixo de ser escritor não publicado, paro de beijar artistas e de tentar apanhar aviões com bunda premiada, e arranjo um emprego. Que se dane a literatura. Eu só quero que o amor passe a ser um lugar-comum. Cansei de lugares raros e difíceis de alcançar. Cansei de amor de pau duro e poesia. Preciso de alguém que me salve de um naufrágio. Preciso de ti, Nana.

* Canção do músico brasileiro Lucas Santtana

A vingança da hortaliça


"Quinta-feira, final de tarde e desço a Avenida da Liberdade. Faltam ainda dois dias para o mega, super, jumbo piquenique organizado pelo Continente, com concerto de Tony Carreira, e a avenida já está cortada. Nas laterais, os carros parecem tão parados como um aeroporto em greve. Vejo os condutores irritados ou derrotados como cães esquecidos no calor dos estofos. No centro da avenida (sem automóveis) estão os canteiros com vegetais, uma horta entre o Marquês e os Restauradores."

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sexta-feira, 17 de junho de 2011

Carta cândida aos apóstolos


"Senhor Pedro e senhor Paulo, nada disto tem a ver com o outro Senhor, falo-vos sobre as coisas de César, sobre a terra e o mar e as pessoas que habitam esta cave solarenga da Europa, cada vez mais ilha e menos península. Não quero um subsídio, cunhas ou sequer fazer reclamações. Tampouco peço milagres. Mantenhamos os pés no chão e falemos da terra, do mar e das pessoas que perderam a ilusão da harmonia com o resto do continente."

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quinta-feira, 16 de junho de 2011

O rapaz secretário de Estado


"Depois de tanto entrecosto em jantares comício e visitas a mercados e bandeiras a bater-lhe na cara, ele estava cada vez mais próximo. Tinha-se preparado ao longo dos anos, apertara a mão gosmenta de colegas de partido que, se pudessem, o punham a trabalhar numa portagem."

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quarta-feira, 15 de junho de 2011

Lixo porco


"Por todo o país há esse lixo cheio de bactérias, despudor e mentira, comercializado em capas de revistas que gritam títulos imundos: "Sónia Brazão morte anunciada. Todos os pormenores do horror para sobreviver." Estas revistas defendem o direito ao jornalismo da emoção (?), como quem acena ao leitor com um acidente de carro na auto-estrada. E se o Cristiano Ronaldo passou, em algum momento da sua vida, nessa estrada, melhor ainda. Faz-se logo uma chamada de capa."

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terça-feira, 14 de junho de 2011

Ronha


"O dicionário diz: “Ronha: espécie de sarna que ataca alguns animais. Doença prejudicial à produção do sal. Malícia, velhacaria.” Nada disso. Ronha é encontrar nova posição na cama, a baba escorrendo para a fronha, espreguiçar músculos e tendões que continuarão embrulhados nos lençóis como se num casulo, num regaço, num vaivém espacial."

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Samba do fado da ausência


"Quando ela não estava, o apartamento parecia mais arrumado, chato como uma noite de Junho que sabia a Fevereiro, janelas tremendo no caixilho, os chinelos dela ainda espalhados na sala.

Quando ela não estava, ele dava-se conta de como tudo permanecia por tocar, incluindo o patético chapéu verde, que jamais usara na rua, mas que servira de adereço para o disparate matinal do riso - música a tocar bem alto, ele cantando e dançando de vassoura nas mãos."

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sábado, 11 de junho de 2011

Santo António de polpa


"Rogério de alfama era rapaz de boné de basebol, tinha tatuagens tribais e embora morasse no Beco da Bicha cantava fado vadio como quem anda ao estalo com um marinheiro. Dúvidas houvesse da masculinidade dos seus bíceps de ginásio, num abrir e fechar de pestana emprenhou Vanessa, filha da Maria da papelaria e do Albano que morreu num acidente enquanto emigrado em França. Vanessa tinha marchado pela Bica em anos anteriores, onde vivia com a mãe, traficante legal da coscuvilhice e da mentira em revistas cor-de-rosa - também vendia tabaco e material escolar. No apartamento da família, morava ainda um gato, dois canários e uma tia tão solteira como menopausica, que gostava de pombos e de estar à janela como se fosse um par de cuecas voyeurs no estendal."

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Ilustração de Tiago Albuquerque

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Desliga, crónica no i


"Tenta apagar parte da tua vida. Vê como se esvanecem as luzinhas histéricas e deixa de apitar a cada três minutos - no bolso das calças ou no portátil que está no teu colo enquanto espreitas a TV e zapas no comando como quem tecla um SMS com polegares de campeão da Playstation."

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quinta-feira, 9 de junho de 2011

Pepino love story


"Juanjo, de Sevilha, estava em Madrid para acampar na Puerta del Sol e contestar a democracia, o desemprego, os bancos. Monica, de Berlim, estava em Madrid para romancear a vida, ver Picassos, Sorollas, Mirós e encher a cara de tintos de verano em esplanadas anticrise."

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quarta-feira, 8 de junho de 2011

Sou da casquinha do ovo



LX trepa com RJ

serás tardes no arpoador
com a ternura faladora da maconha e mergulhos
acrobáticos
voos de menino lisboeta
no mar carioca

serás todo corpo e coração de cavaquinho
suando na Lapa e flutuando dentro
de um táxi
de copacabana ao humaitá
a floresta colada na tua roupa
outras bocas
tantas bocas e a mesma língua

serás mais amigo e mais pé descalço
mais melodia assobiada e anca de menina
serás coisas boas e porres doces
fruta espremida e novos livros

serás mais tu
quando as luzes se acenderem no Vidigal
e a rádio tocar Carinhoso
teu coração batendo feliz sabendo porquê

e serás menino moleque criança transatlântica
um só coração
duas moradas

Partida, lagarta, fugida


Bastava apenas o maravilhoso engenho que era o teu corpo sem dores adultas nas costas ou a efervescência da ansiedade impedindo o sono, obrigando-te a acender mais um cigarro. Bastavam os teus braços como torpedos rasgando as ondas, nem o frio te preocupava, dedos amachucados com papel manteiga (para ler na totalidade cliquem aqui)

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Summer Love Overheated


(texto de Junot Diaz, um dos meus escritores favoritos, publicado em 2008 na GQ)


Of course I loved her. Isn’t that how all these stories are supposed to begin? She was from Amsterdam, black Dominican mother, white Dutch father. I called her my chabine because that’s what she looked like; only her lips and hair kept from passing completely, from pulling a Jean Toomer. The ass she had, my fucking God, it was supersonic, which is to say she couldn’t walk past a group of straight men without pulling out the shingles or shattering the panes of their conversation.

She was about the most exotic Dominican woman I’d ever met (that’s the kind of shit that matters to you when you are in your twenties), and the classiest. She spoke Spanish and could dance bachata, but she’d grown up in the farthest spiral reaches of the diaspora, in Delft, Vermeer’s old stomping ground. Was smart, too; could speak four other languages, had traveled all over the world, and could tell a story like you and I could tell a lie. She was finishing her thesis on Dominican women’s identity, but what she really wanted to do was write children’s stories. She wanted to be the next Road Dahl. Every now and then, especially when she was excited, she would forget articles and miscongugate her verbs. She’d pick up her camera and say, I want to make picture. I found it incredibly endearing.

It wasn’t hard to love her. She was funny and she was sexy (she moved like something only recently evicted from the ocean, an undine or a Nereid), and best of all, she loved me. Loved me so much she’d broken off a three-year engagement after the first time we kissed. (Could have been the second time. You know how these things are.) She said she’d never met anybody as alive as I was or as smart, and every time we fucked, I was shaken, absolutely shaken, and because I was a fatalist at my core, I had dreams, nearly every week, in which I lost her.

The shit should have been perfect, perfect, except for the fact that I was basically nuts. I was depressed, experienced alarming mood swings, and suffered from what a psychologist called baseline irritability (which meant I could go from zero to violent in 2.2 seconds). And to top it all off, I wasn’t writing, and wouldn’t for nearly six years. Took that shit out on everybody around me. Especially her.

She wasn’t perfect, either. She was a fiend for male attention, would have flirted at the pope’s funeral, and she could throw a plate with the best of them. But in the final analysis, the banana-ness was mostly mine.

Some relationships snap like bones; others go into long, byzantine declines. Ours was the latter. I was doing something good, followed by something real stupid. I would surprise her at her job in Holland, show up with my suitcase and expensive gifts, and then at her graduation, in front of her whole family, I would attack some poor homeless guy who made a swipe at the flowers I’d bought her. And yet no matter how crazy I acted, I had this unshakable, adamantine conviction that things could work out, and something of my feverish delusions passed on to her. The crap she tolerated of me, I can’t think about it without wanting to laugh. I mean, I’d treated plenty of chicks a lot worse, but I actually cared about Amelia, in my own way, and had I been saner and less self-destructive we probably could have worked.

Or is that just the nostalgia talking?

Anyway, something about where we each were in our lives, something about the wildness of our relationship, something about our weakness—we were kind of trapped in each other. God knows for how long we lingered in our half-lives if not for the shit I’m about to tell you about. I have friends who were in miserable relationships for eight, nine years. I honestly believe we could have been one of them, trapped in “love” like bugs in amber.

So check it: I’d blown it again, another stupid something, and I was in Amsterdam, trying to make amends. We’d been arguing and fussing and of course fucking like crazy, and in the end she decided that we should have a Special Day. She wanted to take me to her favorite park, to her favorite lake, to sit on her favorite bench and find, with luck, some kind of absolution. I was all for a Special Day. Sounds like a fucking plan, I said.

We had to ride about an hour out of Central Station into the country and then hike quite a bit to reach her Special Place. What I remember is how optimistic she was and how long and thin her torso was, how I had this irresistible urge to bite her. Took us an hour and twenty minutes to get to where we were supposed to be which was pretty enough. Forsythias everywhere. At any point in the journey, we could have stopped to tie a shoe or buy a soda and things might have worked out different for us. But like they say in all the fantasy books, you can’t avoid your Destiny.

We sat down on the bench looking out over a lake, the only people in the park, it seemed, but before we could even say “start the reconciliation,” this outdoorsy white dude bounded out of nowhere and in front of us started throwing a stick in the water for his two dogs. The bigger dog, a spaniel, would jump into the water and bring the stick back before the poor smaller dog could even get five feet out from the shore. This happened a couple of times; the smaller dog would start paddling back and then the stick would fly over its head, so of course it would dutifully turn around and start swimming back out toward the stick only to be beaten to it by the spaniel.

After about five of these throws, the white guy was satisfied, and he and his big dog started to walk away, leaving the little dog struggling in the water. I was the only one who noticed the poor fuck go under. Your dog, I told the guy. Fate would have it that he was the lone motherfucker in Holland who didn’t speak English. What is it? my girlfriend asked me. His dog is drowning, I screamed, and that’s when she cried to him in Dutch and the dude, giving out an anguished cry, jumped right into the lake. Brought his dog out in no time at all. My girl was saying, Dios mio. The little guy, some kind of beagle mix, could have been under for more than ten seconds, but he was dead as fuck. Eyes glassy and everything, the color of old smoke, water pouring out his nose holes. White Boy tried to blow air into the little guy’s lungs, tried squeezing his ribs and holding him upside down, but the perrito was dead. White Boy said something to us, miserable, and the girlfriend translated. It’s not even his dog. It was his girlfriend’s. He was just taking it out for a walk.

Right there, my girl burst into tears.

Well that was it for our Special day. That was it for my reconciliation trip. That was it for our relationship.

For the next couple of years, as I slipped deeper into depression and she met other guys and started appearing on Dutch TV, I would occasionally blame that fucking dog.

Of course I did.

Enquanto houver estrada para andar

domingo, 5 de junho de 2011

Um bom dia para um casamento, publicado no jornal i




A viagem
Eram pequenas coisas que se tornavam enormes: ele a conduzir e o pai ao lado, ele a ajudar o pai a entrar no carro por causa de uma dor nas costas, ele com o total controlo da rota, o silêncio entre os dois, não uma ausência de palavras, o silêncio. Pela primeira vez o silêncio. Crescer era isso – não apenas pagar contas, ser apanhado a conduzir com os reflexos inundados em gin ou nadar para fora de pé sem braçadeiras. Crescer, ser adulto, era aquilo: ir ao funeral da mãe do seu pai, a sua avó, tratar da papelada, ser mais pragmático diante do corpo que um médico em cenário de guerra. Havia muita coisa para fazer. Ser adulto era falar com a senhora das flores. Ser adulto era ouvir na voz do pai a sua voz de menino, frases rotas pelos soluços, as lágrimas escorrendo na garganta. Ele era adulto, o pai era velho. Ele já não era o menino do seu pai.
O pai tinha-lhe dito, ao telefone, “A minha mãe morreu, a avó morreu”, e naquelas palavras revisitou o seu próprio choro quando entregava um teste com negativa ou se tinha perdido numa praça de Badajoz ou quando o irmão lhe batia – ou quando o irmão não lhe batia e ele fingia-se saco da pancada, íman das atenções da casa, o filho mais novo.
Pararam várias vezes no caminho. O pai tinha a próstata danificada, demorava-se em frente aos urinóis das estações de serviço enquanto ele lia os jornais, as revistas, as legendas das páginas duplas com mulheres lambidas pelo Photoshop. Comprava chocolates mas ambicionava cigarros. Não fumava diante do pai. Nunca fumaria diante do pai depois de ter sido apanhado, no sétimo ano, com um maço escondido na gaveta das meias, denunciado pela empregada que também lhe apanhara material pornográfico. Os cigarros eram pior. Nunca se falaria de masturbação naquela casa, mas o tabaco era meio caminho andado para as ganzas, a heroína, a desgraça de uma família com as pratas roubadas. Não fumava diante do pai, não falavam de política, não trocavam ideias sobre temas que acabassem em semanas sem um telefonema.
Encostado ao carro, viu o pai, que saía da casa de banho, a braguilha aberta, os olhos procurando um lugar seguro, tal e qual a criança perdida em Badajoz. O pai, naquela estação de serviço, avançando medrosamente para um funeral, era o mesmo homem que, depois de confiscado o tabaco, lhe tinha atirado o maço à cabeça. O pai era forte e ambicioso e arrependia-se sempre que largava um estalo. O pai precisava agora de comprimidos para dormir e tinha os olhos tão vermelhos como uma tarde subaquática na piscina.
Entraram no carro, ele não acendeu a rádio. Não era estranho o silêncio.

Serás terra

Era um dia lindo para um casamento. O céu não tinha um farrapo de nuvens e havia pássaros. Iam a pé até ao cemitério, o pai sem dizer nada, caminhando atrás da carrinha funerária, atrás da sua mãe, encolhida por tantos anos de vida, dentro de um caixão. No final, quando a demência tudo confundia na linha cronológica das sinapses da avó, ela só reconhecia o seu filho. Não o filho com filhos, dores na próstata e três casamentos. O filho dela, pequeno, o filho carente de coisas doces, o miúdo incapaz de perceber que a mãe seria enterrada num dia lindo para se fazer um casamento.
O pai não falou no caminho para o cemitério, mas ele ouvia a sua voz como se equipado com auscultadores de museu. Na visita guiada, o pai repetia o que lhe contara há muitos anos, quando por ali passaram num verão:
“Esta foi a casa onde nasci.”
“O teu avô pôs um baloiço naquele sobreiro.”
Ele analisou as mulheres no cortejo. Só uma prima em segundo grau o cativou. Depois olhou para os pés dela e ficou manso. Sentiu-se aliviado. Não queria filmes nem filhos vítimas da consanguinidade. Olhou outra vez para os pés dela. Queria ter a certeza que não era aquilo que precisava. Ouviu a voz do pai nos auscultadores da infância:
“Devia vir cá mais vezes.”
“Tens a genica do teu avô.”
Cruzaram os corredores de sepulturas. Como fazia sempre que estava num cemitério, pôs-se a contabilizar a longevidade das vidas dos mortos: Justino Gomes (1956-98), Bernardina Ramalho (1910-78), Domingos Lourenço (1976-77). Ele sabia que todos os humanos faziam esse jogo nos cemitérios, esse exercício de perspectiva, como quando estamos debaixo de um céu estrelado ou nas ruínas de uma civilização muito antiga.
Há anos que o pai comprara, naquele cemitério, um pedaço de descanso eterno com jardim privado e cheiro a ciprestes. Estava lá o avô, estava lá o buraco que seria a campa de mármore da avó. Fez contas de cabeça para saber a idade do avô. Nos auscultadores ouviu:
“O teu avô fumava e bebia muito.”
“Eu nunca quis fazer mal a ninguém.”
“A minha mãe morreu.”
Porque tinha estado em vários funerais, ele sabia do apogeu dramático do caixão a descer ao fundo da cova. Segurou o pai pelos ombros, beijou-lhe a cara, não disse nada. Não fosse o choro do pai, que era também o seu choro de menino, tudo seria outra vez silêncio. Ele não chorou. Ele era o pai e o pai era o filho.

Regresso
Nessa noite dormiram num hotel na cidade mais próxima. A prima em segundo grau também. No bar, porque sabia dos poderes libertadores das bebidas espirituosas, ele pediu apenas um copo de vinho, enquanto ela sorvia Baileys com gelo em cálice largo e falava de uma série de televisão com médicos e do preço do aparelho para os dentes da filha. Ser adulto era ver ficção americana no pequeno ecrã e endireitar aquilo que nasceu torto por causa dos nossos genes. Ser adulto era ir para o quarto sozinho.
Ela disse: “Devíamos ver-nos mais vezes, nem sequer tenho o teu número.” Por via das dúvidas, ele olhou para os pés dela. Disse: “Vou dormir, o meu pai não anda bem.”
Escovou os dentes, apagou a luz e atreveu-se na escuridão, as pupilas aumentando, procurando os objectos, o seu pai deitado numa das camas. Dobrou-se sobre aquele corpo. Tentou ouvir a respiração. Não lhe tocou. Lembrou-se como, juntamente com o irmão mais velho, fingia que a cama era uma nave espacial. Entre os lençóis, disse baixinho: “Vamos levantar voo.” Não demorou muito a adormecer.
Na manhã seguinte, dentro do carro, outra vez o silêncio. Entregou o pai na casa onde crescera. Ali seria sempre mais filho do que pai, mesmo quando tivesse crianças e elas saltassem para a piscina e houvesse festas de aniversário e Natais que seriam outros Natais.
O pai disse: “Não queres entrar?”
E ele voltou a ser o filho.