domingo, 19 de junho de 2011

Crónica do suplemento LiV, publicada no i


Cira, Regina e Nana*

Ela era tão bonita que ensandecia a tropa


Qualquer descrição da beleza sexual de Cira resultará na confirmação da falta do meu talento literário. Mas Cira era um avião transgaláctico, um hard body ao natural, el pivón de todos los pivones (e qualquer coisa formidável em francês que é língua que desconheço). E a língua carioca de Cira, como era? Eu queria saber. Também queria descobrir o que ficava no lado de dentro daqueles vestidos, o precipício que resvalava das suas coxas, a erupção vulcânica dos mamilos que desprezavam a lei da gravidade. Cira fazia de mim este poeta do mau gosto erótico e dos lugares comuns da sua carne - lugares tão raros e difíceis de alcançar.
Mas eu não era o único poeta atrás da musa da Urca. Muito menos o único homem a perceber a inevitabilidade da biologia nas virilhas quando ela passava, pedalando na bicicleta, voando cabelos, lançando perfume, encaixando como uma boca nas frases que eu considerava geniais: “Ela era um espectacular convite para fazer bebés”, in Slaughter House 5, de Kurt Vonnegut.
Cira era para comer, devorar, engolir inteirinha.
Depois de semanas a beber cerveja naquele bar da Urca, contemplando o pedalar de Cira, fomos apresentados pelo dono do boteco: “Esse português é famoso no país dele. É artista. Você é actriz, não é Cira?” Eu era conhecido, sim, entre os meus familiares – célebre pela minha ausência. E de artista tinha apenas um passado como larápio da boa vontade dos meus pais, que me sustentaram durante um curso de actor, outro de realizador e um workshop de escrita criativa. Também me ajudavam com a renda do apartamento em Copacabana. Cira era mais ou menos actriz. Tinha feito umas fotos para um catálogo de roupas e um anúncio de TV. Mas protagonizava muitos filmes para adultos na minha cabeça.
Cira acreditou na minha fama. Eu acreditaria em qualquer coisa que ela dissesse: “Um amigo vai dar uma festinha num veleiro, aqui mesmo.” Márcio era filho de um general com barco ancorado na marina do quartel da Urca. Comprámos cervejas e vieram buscar-nos numa embarcação de borracha com motor. A festa tinha rapazes e garotas que, como eu, eram financiados por pai-trocínios e heranças de tias, todos eles comedores e fumadores de coisas vegetarianas. Falavam de sustentabilidade e lançavam pragas – não tinham cojones para atirar bombas – a todos os franchises que invadiam o Rio. Odiavam os riquinhos fashion week de São Paulo e tinham feito voluntariado na favela. Um queria ser músico (tinha um iPod), outro dizia ser escritor de romances no twitter, outra enrolava charros com a minúcia de uma criança asiática a coser ténis internacionais.
Márcio era um vendedor de si mesmo, omnipresente no veleiro e no planeta – tinha estado com xamãs mexicanos e guerrilheiros do médio oriente. Escrevia, cantava, salvava espécies em vias de extinção. Tinha uma sunga apertada para salientar aquilo que não podia anunciar em voz alta no contínuo documentário ambulante que era a sua vida.
Cira não fazia parte daquela tripulação. Havia ali arroz com feijão em alguma parte do seu cabelo. E na bunda. Era isso, a bunda. Cira abria todas as portas, tinha uma bunda-mestra que lhe permitiria agradar em todo o lado, do Meat Packing District, bebericando cocktails pela mão de um vampiro de Wall Street ou friccionando coxas e mamas e bunda num baile funk com mais coca que farofa e tiros de AK 47 disparados em celebração de sua glória para o céu do Rio Janeiro.
Cira estava naquele veleiro porque todos – incluindo as garotas cada vez mais dengosas e dançarinas – queriam comê-la.
Márcio ofereceu-se para ir comprar mais cerveja. Levou Cira consigo. Caiu a tarde, avançou a noite e Cira não regressava. Na última vez que a vi, os soldados do quartel ajudavam-na a subir para o cais. Márcio, sabendo que não regressaria ao veleiro do papai Bonaparte, caminhou ao lado daquele corpo para fazer bebés, a mão dele colada nas costas dela, escorrendo para a bunda, uma prova da sua vitória. Depois fez um adeuzinho para o barco.
Eu fiquei longe da costa e dos flancos de Cira. Foi então que surgiu Regina com um baseado que parecia um archote: “Você conhece Fernando Pessoa?”

Ela é a moça certa carregando aquela tocha


Regina era daquelas maconheiras místicas que fala sem parar, enlaçando ideias que julga brilhantes, perdendo-se a meio de uma frase. Mal soube que eu era um escritor famoso não publicado, meteu-se a recitar Alberto Caeiro.
Perguntei: “Conheces o trabalho do Luiz Pacheco?”
“Oi?”
“Acordou um triste dia/ Com uns cornos bem bonitos./ E perguntei à Cira/ porque me pôs os palitos.”
“Esse Pacheco conhecia a Cira?”
Porque não me apeteceu explicar que mudara o nome de Maria por Cira, porque Regina verbalizava para cacete, porque era poetisa e dramaturga, porque tinha boca de boa dicção e nenhum batom, fiz aquilo que em vulgus lusitanus se conhece como: saltar-lhe à boca. Ela seria o meu farol.
Regina não aguentou os beijos de olhos fechados, as voltas e voltas que o fumo, as odes e a cerveja davam dentro da sua cabeça. Bastava olhar para ela para perceber que se sentia como a hélice de um helicóptero. Pediu licença, vomitou borda fora e foi dormir para uma das cabinas. E eu, sem acesso ao barco de borracha que Márcio deixara tão longe como Cira, ponderei saltar para a água e, caso soubesse nadar, ir chapinhando como uma criança amuada até casa. Queria fugir dali. Mas não há duas sem três. E existem tantas coisas melhores do que estar sozinho.

Não é por desmerecer nem dizer que a fila anda, mas agora vou falar do meu amor por Nana

Meu bem supremo, mãe da minha prole por nascer, minha cama, meu nano e micro amor maior. Nana: minha salva-vidas, meu resgate aquático, sereia que se jogou para o mar quando caí borda fora por exageros alcoólicos, campeã da respiração boca-a-boca. O que tenho para dizer sobre ti vai muito além das minhas limitações com palavras. Mas prometo uma coisa. Se ao fim de quinze dias ainda estivermos juntos, mudas-te cá para casa e fazemos um filho. Eu deixo de ser escritor não publicado, paro de beijar artistas e de tentar apanhar aviões com bunda premiada, e arranjo um emprego. Que se dane a literatura. Eu só quero que o amor passe a ser um lugar-comum. Cansei de lugares raros e difíceis de alcançar. Cansei de amor de pau duro e poesia. Preciso de alguém que me salve de um naufrágio. Preciso de ti, Nana.

* Canção do músico brasileiro Lucas Santtana

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