terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O calor, crónica publicada no Diário de Notícias





Heat. This is what cities mean to me.

Don Delillo


O primeiro dia do ano no Rio de Janeiro teve uma sensação térmica de 45 graus. Às oito da manhã os termómetros de rua piscavam o número 30 e um mergulho ou um duche – tépido, pois a água, aquecida pela transpiração dos canos, tem a temperatura e a viscosidade do sangue – eram a única forma de abrir um buraco de frescura no manto incendiário que cingiu a cidade. Não é um calor de férias, lúdico, de alívio aos rigores do inverno, mas um calor urbanita e opressor, que emana dos pneus e dos motores e das pessoas, um calor bufado pelos escapes dos ônibus e pelo desespero dos que vão lá dentro; um calor que pinga dos aparelhos sanguessugas de ar condicionado nas fachadas dos prédios; um calor que se instala no esqueleto dos apartamentos e, sem a oposição de uma brisa ou do desafogo da chuva, vai ganhando poder, apertando o cerco, chupando o oxigénio, desacelerando as ventoinhas, cujas pás, incansáveis durante dias, parecem agora fatiar a atmosfera com a indolência de um funcionário que desatou o nó da gravata e decidiu sair mais cedo.
                Com o calor há mais mulheres esbofeteadas e maridos envenenados; puxa-se mais facilmente da faca e da pistola; a espera no trânsito empurra-nos para uma condição bovina, não uma placidez estival e balnear, mas a sensação de que caminhamos nervosa e lentamente para o matadouro. E há o ruminar contínuo dos aparelhos elétricos, geradores, ventoinhas, arcas congeladoras, um exército de máquinas que se alimenta de calor para reduzir o calor. Os computadores sobreaquecem e estafam como cavalos no deserto. Os frigoríficos roncam e estalam a toda a hora num esforço frustrado – a água não gela e a melancia está morna. O calor desprende-se e aninha-se em todas as superfícies, emana da sombra e até da água, refugia-se nas copas das árvores que, chicoteadas inclementemente pelo sol, parecem prestes a pegar fogo. O mormaço ondula sobre a areia, no horizonte, nos contornos dos edifícios, e à noite, aproveitando a ausência da chuva e do vento, ocupa todo o espaço, alimentando-se do fervor elétrico da cidade e aglomerando forças para o dia seguinte. 
                Não há alívio que dure. É preciso uma logística para debelar o calor. Vários duches. Mergulhos apenas ao amanhecer e ao anoitecer porque encontrar um espaço vazio na praia apinhada é como jogar Tetris no nível mais difícil; e porque nem o oceano ou as camadas de creme protetor impedem que a pele crepite e se inflame. Em casa, as ventoinhas estão dispostas estrategicamente após um estudo de circulação do ar e são movidas de divisão consoante as atividades domésticas. Sair à rua entre as onze da manhã e as quatro da tarde implica avaliar a distância dos percursos percorridos a pé e contar com o abrigo temporário das lojas com ar condicionado. As mulheres usam guarda-chuvas como sombrinhas, há mais homens em tronco nu, é sempre preciso dar mais uma chuveirada no cão e respeitar o espaço físico da pessoa com quem vivemos. O calor dos trópicos tem uma conotação positiva e instigadora do romance. Mas este tipo de calor – acachapante, impaciente, revoltoso – impede qualquer tipo de toque que dure mais de alguns segundos. 
                No ensaio Three uses of the knife, o dramaturgo David Mamet escreve: “O estado do tempo é algo impessoal. Percebemos isso, e aproveitamo-nos disso com finalidades dramáticas, isto é, construímos um enredo de forma a encontrar o seu significado para o protagonista, ou seja, nós mesmos.”
O calor, a chuva, o frio, o sol, os dias nublados, têm um influência indelével no nosso comportamento e nos nossos ânimos, da mesma maneira que servem para projetar a nossa narrativa – onde estamos e como vemos o que nos rodeia. Por isso, a simples possibilidade de uma trovoada e de uma chuvada ao fim da tarde é debatida e desejada em conversas de esquina e mesas de boteco como se fosse uma solução para todos os problemas da cidade e da vida.
Este calor fere e enfurece, deixa-nos lassos, na iminência da rendição incondicional. Este calor funde o cérebro e as articulações, aplica-nos a tortura do sono e rouba-nos a fome. Neste enredo, o calor só pode ser o némesis, implacável e omnipresente na resistência física que oferece de cada vez que tento lascar a humidade, sentindo no corpo inteiro o mesmo ardor de quem se submerge numa banheira de água quente. O calor, afinal, é o principal culpado pela incontrolável propensão de estar, por estes dias, muito menos envolvido com a humanidade.



Barba rija, crónica publicada no Diário de Notícias




É um tema sério, mas talvez os responsáveis pela criação de tendências não tenham compreendido ainda a relevância da barba na história pessoal de cada homem, continuando a inventar novos tipos de macho – depois dos metrossexuais, os lumbersexuals, com barbas fartas e camisas de lenhador –, não entendendo o determinismo selvagem e a inevitabilidade masculina (não uma moda, não um acessório ou um gadget) de ter pelos na cara.
                O primeiro contacto com as pelosidades faciais pode ser traumático. Um buço púbere jamais é celebrado com o mesmo entusiasmo que os pelos púbicos. Enquanto o despertar da vida abaixo do trópico do umbigo é usado como uma medalha ao peito, o aparecimento de uma penugem mansa sobre o lábio superior costuma ser objeto de chacota dos pares e de nojinho por parte das raparigas – quem é que quer beijar um Cantiflas pubescente? Há quem não aguente a pressão e use, antes do tempo certo, a lâmina do pai, ignorando todos os ensinamentos e maldições que garantem que um pelo rapado hoje regressa amanhã com a determinação hirsuta dos lobisomens.
                E há a importância do ritual, as diferentes técnicas passadas de pai para filho, quem esconhoa e quem desliza a lâmina na direção do pelos; a água quente para abrir os poros, o pedacinho de papel higiénico para estancar um corte, a água fria e as chapadas nas bochechas para encerrar o processo. Esta manifestação diária vai mais além da biologia e da higiene pessoal – faz parte do relicário do género masculino, como os livros de detetives que usam chapéu, “O Padrinho” de Coppola, Muahammad Ali no ringue ou a possibilidade de urinar em pé. O ritual é tão importante que resolvi ser oldschool e pus a minha jugular à disposição de um barbeiro, que manobrou uma navalha das antigas – como o meu avô usava – com a precisão de um espadachim e me fez sentir mais Ricky Blane circa 1942 e menos anúncio da Gillette.
O processo diário de fazer a barba oferece-nos ainda um instrumento metafísico: o enfrentamento com o eu, o nosso reflexo no espelho, as olheiras culpadas da ressaca, o vinco de preocupação na testa que nenhum botox desenrugará. Um ritual intímo, no entanto, bastante explorado cinemática e literariamente; uma liturgia que, apesar de repetida tantas vezes, ainda nos faz perguntar “afinal, quem és tu?”   
                Muito se pode saber sobre um homem se tivermos em conta a sua barba. Três dias sem uma lâmina pode ser descuido, mas também pode ser modelo de anúncio de cigarros. Até no “conflito de civilizações” a barba desempenha um papel. No seu livro “Generation Kill”, Evan Wright conta como os marines que invadiram o Iraque, em 2003, estavam proibidos de deixar crescer bigodes (muito menos barbas). Quando, anos antes, os taliban chegaram a Kabul, no Afeganistão, chicoteavam os homens sem barbas e o ministro para a promoção da virtude e prevenção do vício, Mohammed Wali, alertou que os bigodes dessas barbas deviam ser aparados para jamais cobrirem os lábios – sob pena de mais xibatadas.  
                Não importa se o homem é hetero ou gay, casado ou solteiro, novo ou velho, a barba é um elemento fundamental da sua masculinidade. Pode parecer primitivo e limitado, mas é um facto inexorável. Não importa que use echarpes ou que seja pugilista, que faça a barba todos os dias ou que pareça um arrumador de carros, há qualquer coisa de primoridal na relação do homem com a sua barba. Ela é uma sina e um símbolo, um elemento de metamorfose e de renovação. Muitas vezes, ao longo da vida, deixei crescer a barba enquanto escrevia um livro ou porque me sentia em modo de mudança ou porque queria abraçar o meu lado mais jagunço, de Mogli criado por lobos na selva. E qualquer homem vos dirá que o ato de deixar crescer a barba, tal como a decisão de, semanas ou meses depois, voltar a ter a cara limpa, têm um enorme poder de transmutação sobre a psique masculina – por vezes com profundidade, após o fim de uma relação amorosa ou a morte de um familiar; por vezes de forma juvenil e inconsequente, como numas férias com amigos ou como resultado de uma promessa durante um campeonato do mundo de futebol.   
                Tudo isto para fazer um pedido. É que talvez as mulheres ainda não tenham percebido a importância da exclusividade da lâmina que barbeia a cara de um homem, mas, por favor, parem de subtrair-nos as Gillettes a fim de amaciar pernas e virilhas, indiferentes ao facto de que uma lâmina tem para nós a mesma importância que a faca de mato tinha para John Rambo.