segunda-feira, 26 de abril de 2010
Mais crónicas no jornal i
Menino do Rio
Não tinha sequer pensado em escrever-te, ando cansado de ti e do teu humor de merda em tantas tardes de chuva. Ia escrever sobre o aniversário da descoberta do Brasil ou sobre os cariocas que graffitaram a estátua do Cristo. Mas depois saí de casa por causa do sol e comprei um cornetto e, juro-te, há sempre miúdos com uma bola na minha rua. Hoje, finalmente, a bola fugiu para os meus pés e dei dois toques antes de passá-la. O dia corria-me bem até porque numa esquina da praça já não se vendem castanhas mas morangos gordos e mangas cor de fogo. Nas escadas de calçada portuguesa encontrei adolescentes que, estou certo, se baldaram à última aula e que fumavam ganzas ou namoravam como nos filmes que vêem nos portáteis – ela com a mão no queixo, ele com a franja nos olhos. E essa asiática linda com óculos escuros de diva e cabelo de guerreira. Ou a miúda que falava ao telemóvel com a mãe, pedindo dinheiro para a renda e dizendo que não sabia se ia receber uma bolsa: “Mas tenho fé”, copiei da boca dela para o meu bloco de notas. Queria falar do Rio de Janeiro, mas por causa de uma limonada no Chiado, das estrangeiras giras com ombros de alças e chapéus de palha, por causa de todos os coxos e cegos e janados que pedem esmola, por causa dos ciganos que me tentam vender haxe, por causa dos prédios que ardem junto da minha casa, devolutos, esquecidos, sem ninguém que faça vida neles há décadas, porque me fodes o juízo e me dás tanto, estou a escrever-te a ti. Sabes, Lisboa, às vezes estás-me tão entranhada.
Memória Histórica
Manuel é táxista no Estoril e o seu português ágil não esconde a ondulação do sotaque sul americano. “Sim”, disse-me, “sou argentino”. (E eu que pensava que a imigração argentina se limitava a futebolistas.) Enquanto o táxi avançava pela marginal, Manuel disse que, ao chegar a Lisboa, em 1982, não vinha para triunfar, apenas para sobreviver. “Tinha-me metido nos sindicatos e era opositor da ditadura”. Manuel foi preso numa operação stop, pouco tempo após a guerra das Malvinas: “A minha sorte foi ter sido mandado parar pela polícia, se tivessem sido os militares não tinha chegado aqui.” Esteve alguns dias preso com o irmão de Che Guevara e, após a libertação, pediu asilo na embaixada de Portugal porque tinha familiares portugueses em Lisboa. Lembrei-me de Manuel ao ler que um tribunal condenou a 25 anos Reynaldo Benito Bignone, último presidente da ditadura argentina (1976-83). Este general foi também responsável por um “chupadero” – assim se chamavam os centros clandestinos de detenção onde se torturava, assassinava e se despachavam presos para os aviões de onde seriam lançados ao Rio de la Plata. Nos apontamentos que tirei após essa viagem de táxi, encontrei esta frase de Manuel: “Estagnei, parei”. Estima-se que a ditadura argentina tenha assassinado mais de 30 mil pessoas. Uma dessas pessoas era a mulher de Manuel.
I ♥ Porn
Durante a II Guerra Mundial, Maurice Ginorias perdeu o pai e herdou o negócio de família, uma editora parisiense com os debochados Henry Miller e Anaïs Nin no catálogo. Durante anos, Ginorias publicou escritores lascivos, fazendo primeiro publicidade a títulos provocadores, como “Com a boca aberta”, e, caso tivesse procura, encomendava romances aos autores. Também publicou “Lolita”, de Vladimir Nabokov. Em 1958, o estado embargou os seus livros, acusando-o de obscenidade, e Ginorias mudou-se para os Estados Unidos, país onde Gerard Damiano, cabeleireiro de mulheres, pegou numa câmara e filmou “Garganta Funda”, em 1974. O filme esgotou salas, pôs senhoras idosas e celebridades a ver porno no cinema, foi banido em 23 estados e levou Nixon a criar uma comissão para acabar com aquilo que, nas palavras de um juiz, era “um festim de carne podre e sordidez, Sodoma e Gomorra enlouquecidas”. Quis a fortuna que a fonte do Washington Post que revelou o caso Watergate, do qual resultaria a demissão de Nixon, ficasse conhecida como “Garganta Funda”. Esta semana, milhares de chineses fintaram a censura na internet para seguir, no Twitter, a estrela porno japonesa Sora Aoi. Tudo o que aqui foi contado cabe numa frase de Gore Vidal: “Ditaduras visionárias, sejam de um só homem ou do proletariado, costumam condenar o sexo fora da norma.” Se a liberdade de expressão fosse um elástico, a pornografia seria esse elástico esticado ao limite. Felizmente, seja com os livros, filmes ou sites de internet, há sempre alguém a correr o risco de rebentar o elástico.
Malditas gajas
Soubessem os islandeses ou os haitianios o que sabe Hojatoleslam Sedighi, líder religioso iraniano, sobre os movimentos das entranhas do planeta, e não se metiam em sarilhos. Sedighi disse: “Muitas mulheres não se vestem de forma modesta, desencaminhando os homens, corrompendo a sua castidade e disseminando o adultério, o que aumenta os terramotos.” Já se sabe que as nórdicas são libertinas e que as mulheres das ilhas tropicais têm uma apetência para a devassidão. Não haveria catástrofes naturais caso se cumprissem os requisitos de decência impostos pela revolução iraniana, como proibir que as mulheres cantem em público, se candidatem à presidência do país, apertem a mão de homens que não sejam da família ou usem batom vermelho (porque é um insulto ao sangue dos mártires). O Irão tem um plano de prevenção para catástrofes naturais, onde se inclui prender Alieh Doost, uma mulher que participou numa manifestação pacífica ou matar, com pancada, a fotojornalista Zahra Kazemi. Para evitar males maiores, as iranianas podem, por exemplo, ser apedrejadas por adultério. E se Teerão está numa zona de grande actividade sísmica, resta aos iranianos, como aconselha Sedighi, “adaptar a vida aos códigos morais do Islão”. Mas caso deus se ponha a derrubar prédios na capital, fiquem a saber que a culpa é das iranianas subversivas que agora são 70% da população universitária, vêem o “Sex & City” em canais de satélite e cobrem a cabeça com lenços Hermès, porque as gajas, já se sabe, ou estão a disseminar o adultério ou a empurrar placas tectónicas.
Más notícias
Se o seu coração, refém da nuvem de cinzas, está preso num aeroporto, incapaz de encontrar-se com a mulher por quem se apaixonou no Facebook, se é um agricultor queniano e as suas flores não chegaram a uma jarra de Estocolmo, se é um miúdo turco que queria ver o espectáculo (cancelado) da World Wrestling Entertainment, se pagou mais por uma garrafa de água no aeroporto da Portela do que pagaria na semana passada, se espera um livro de poesia que está parado num armazém da DHL, se vai alugar um carro, por dois mil euros, para viajar entre Lisboa e Paris, se a sua vida lhe parece embargada diante de um painel que diz “Cancelado”, tenha em conta que, apenas na última semana, a terra tremeu no Afeganistão – sete mortos – e na China – 1900 mortos – ou que 18 manifestantes tailandeses perderam a vida em confrontos com a polícia. Se é um dos 6,8 milhões de passageiros afectados pelo encerramento dos aeroportos, pense que, nos últimos sete dias, quatro palestinianos foram mortos pelo exército israelita e que outros dois foram fuzilados pelo Hamás por colaborar com o inimigo. Não se esqueça que quatro espanhóis, em missão humanitária no Haiti, morreram na queda de um helicóptero ou que explodiram bombas suicidas no Paquistão – 40 mortos – e no Afeganistão – sete mortos. Sim, o mal dos outros não deve ser o nosso consolo, até porque há sempre alguém pior que nós – na Somália indigente e sem lei, radicais islâmicos proibiram a emissão de música nas rádios. E pior que sofrer, é sofrer sem direito a uma banda sonora.
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4 comentários:
adorei o menino do rio.
e ainda bem que li hoje sobre lisboa e não sobre o rio, ainda bem e que bom, reler a minha paixão por lisboa através dos olhos dos outros. E com todos os defeitos que tem, Lisboa é unica, e tem a mistica que poucas cidades têm.
tenho mta pena que o i te tenha posto a escrever crónicas telegráficas. gosto mais quando tens mais espaço para aprofundar as coisas. parece-me que assim fica tudo meio dito.
mas como sempre, gostei.
Catarina
A propósito da crónica "menino do rio", faz-me lembrar uma sensação que tive há uns tempos: do Rossio a Bombaim, vai uma chamuça de distância. A Ribeira das Naus cheira a merdzia. A Av. da Liberdade - os nossos pequenos Campos Elísio ou a nossa 5.ªa Avenida à escala - é transfigurada pelos andaimes. Lisboa é um ser humano: ás veszes, também desilude.
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