segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Crónicas das últimas semanas, no jornal i


Escritor

Mario Vargas Llosa viajou para o Congo e iniciou o relato desses dias com as palavras de Tharcisse: “O principal problema são as violações. Matam mais mulheres que a cólera, a febre amarela, a malária. Aqui o sexo não tem nada de prazer só ódio.” Tharcise cuida das mulheres violadas pelas milícias hutu fugidas do Ruanda. Llosa escreve sobre a miúda de 15 anos, escrava sexual dos hutu durante cinco meses, na selva, até que a expulsaram por estar grávida. Regressou a casa e um tio disse-lhe que, matando o bebé, seria bem recebida. Llosa escreve sobre o peso dos violadores que esmagaram a bacia de uma criança de cinco anos. Mas em nenhuma das descrições há voyeurismo comercial ou exploração de tablóide. Llosa escreve com o respeito de quem sabe ouvir. Num campo de refugiados ou diante de crianças soldado, o escritor encontra o lugar mais profundo da derrota mas também o lugar onde ainda se combate o fracasso – em Kinshasa, por exemplo, onde Émile Zola tenta impedir as térmitas de comer um museu ou no hospital de Tharcisse, onde a destruição das mulheres não impediu o escritor de reparar que o médico não vê a família há dois anos. Escreve Llosa, sobre a chegada: “Um lugar de beleza natural – havia nenúfares de flores malva na praia onde desembarcámos – e indescritíveis horrores humanos”. O escritor não ganhou o Nobel por esta reportagem no “El País” mas, como ele disse, o jornalismo ajudou-o a escrever livros. Num tempo de jornais anémicos e robotizados, Llosa lembra que o jornalismo só não consegue a nobreza da literatura se não quiser.


‘da-se

O taxista percebe que a corrida é curta, vira a boca de SG Gigante para o lado e morde a primeira sílaba: ‘da-se. O pai desliga a Playstation e ordena que o filho tire as canecas com leite de baixo da cama. O rapaz obedece mas primeiro afasta a franja canina dos olhos: ‘da-se. A mulher informa o marido que há reunião de condomínio. Ele veste o casaco e: ‘da-se. Há um ponto de equilíbrio, entre a confrontação e a resignação, que pode ser definido pela palavra: ‘da-se. É uma espécie de desabafo, uma declaração de princípios No fundo, ao dizer ‘da-se, estamos a dizer: ok, faço o que tu mandas, mas só porque sou obrigado. Por vezes – quando a mãe ordena um recado na hora do jogo, quando o chefe não sai do escritório antes das nove, quando o irmão mais velho monopoliza o computador – prolongamos a última sílaba num assobio – ‘da-sssse – para deixar claro que um dia destes ainda nos revoltamos. Quantas vezes, na adolescência, após uma homilia paterna, dissemos qualquer coisa mastigada, quase muda, mas cheia de raiva: ‘da-se. Quem tem algo a perder fica-se sempre pelo ‘da-se. Sem dúvida que dizer ‘da-se é mais chunga e mariquinhas que dizer a palavra por inteiro, mas assim evitam-se cenas de estalo, divórcios e parricídios. Embora amputada, trata-se de uma palavra necessária para a convivência humana. E se o governo português não enfrentou carros virados na rua e pneus em chamas bem pode agradecer ao carácter de uma nação que há anos, no café com a malta, diante das notícias, na casa de banho da empresa, prefere dizer ‘da-se do que gritar foda-se.


Cem anos de esperança

Estás na rua tão cedo que te lembras das manhãs de aulas, quando os estores subiam inclementes na janela e a tua mãe assegurava que não sairias de casa com ramelas. Mas é feriado e és adulto e vais trabalhar. Estás numa praça com bandeiras do teu país e, como os miúdos que esperam a carrinha da escola, imaginas-te a viajar no tempo cem anos. Estarias na rua, de espingarda na mão, ou ficarias em casa, preocupado com a preservação do teu corpo? Serias um revolucionário ou um comodista? Daqui a nada, vais ouvir um amolador noutro sítio deserto da cidade. Perceberás então que os feriados são muito mais generosos para os miúdos que, ainda na cama, ouvem a flauta solitária sem a melancolia do passado que oprime os adultos. Neste feriado haverá políticos e bandas filarmónicas e comparações entre aquilo que somos e aquilo que fomos. Num jornal, encontras mesmo uma foto dos “Vencidos da vida” – Eça, Ramalho, Junqueiro etc. – e um texto desse poeta açoriano que estoirou os miolos num jardim: “Se não reconhecermos e confessarmos os nossos erros passados, como podemos aspirar a uma emenda sincera e definitiva?” No final da manhã já encontras famílias na rua, crianças aprumadas como embrulhos de Natal, miúdos mais interessados num Happy Meal do que atormentados pelos erros dos pais, avós e bisavós. Serão um dia revolucionários ou comodistas? Não conheces nada do futuro. Mas sabes que, em vez da pistola de Antero de Quental, ainda preferes a placa do jardim onde o poeta se matou. Dizia: “Esperança”.

SOS

Na livraria há uma sala escondida, com bancos corridos, onde os clientes se abrigam para ler enquanto um clarinete nas colunas de som parece algodão caindo na alcatifa. É um sítio de paz onde uma tosse levantaria as sobrancelhas dos leitores. Num dos bancos está um velho que dorme um sono pós-almoço. Tem bigode, bochechas de vinho e um livro de Anaïs Nin na mão. Logo de seguida, estão quatro lolitas literárias – a mais bonita lê “Orgulho e Preconceito”, a mais pequena “Contos”, Eça de Queiroz, aquela que tem aparelho nos dentes segura um livro cor-de-rosa. Chega outro velho. É daqueles homens com unhas compridas, que sacralizam a literatura, julgando alcançar a poesia como ninguém e que, cruzando as pernas, apoiam o pulso no joelho – um gesto que tenta provar a gravidade da sua condição de eleito e que afasta a quarta leitora para outro lugar. O velho de bigode acorda. Os seis corpos, uns adolescentes, outros decadentes, estão agora alinhados no mesmo banco mas, páginas após página, as sinapses de cada um criam coisas diferentes – francesas que gostam de cama, inglesas pudicas, portuguesas loiras e singulares que roubam jóias. Estes leitores estão agora noutro mundo, não percebem sequer o martelo a bater na rua, não se importam com o rapaz mais giro da turma que não respondeu aos sms ou com o filho que deixou de ligar ao pai bebedor de tinto desde que a mãe morreu. Porque quando tudo nos falha – a religião, a política, a terapia, a internet, o amor – só a ficção nos poderá explicar aquilo que ainda não conseguimos perceber. E salvar-nos.



Cicuta

Nós, os portugueses, temos uma apetência para empurrar com a barriga decisões que precisam de rapidez e uma grua – adiamos, atrasamos, contornamos e esperamos sempre que tudo se resolva no último segundo. Nisso, este governo é muito português. Em Fevereiro, Sócrates disse: “Vamos fazer uma consolidação orçamental baseada na redução da despesa e não através do aumento de impostos.” Em Março disse: “O governo vai concentrar-se na redução da despesa do Estado. Mais fácil seria aumentar impostos, mas isso prejudicaria a nossa economia”. Na apresentação do primeiro PEC, disse: “Não haverá aumento de impostos”. Em Junho, disse, em Bruxelas, que não seria preciso reduzir os salários. Mais grave que a retórica do primeiro-ministro nos últimos meses – afinal sempre é preciso aumentar impostos e cortar salários – é a sensação que o governo, com o barco a meter água há tanto tempo, pensou que podia chegar a porto seguro sem mandar nada borda fora. Ou o primeiro-ministro mentiu, com medo de não ganhar as próximas eleições, ou cometeu o grave erro de não perceber, há meses, a necessidade das medidas agora anunciadas quando tantos países europeus já seguiam esse caminho. Se todas estas medidas tivessem sido tomadas no tempo devido, os portugueses talvez se sentissem agora mais empenhados que traídos. Sócrates, o filósofo grego, foi obrigado a beber cicuta por dizer a verdade. Sócrates, o primeiro-ministro português, perderá as próximas eleições por adiar a verdade.

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