segunda-feira, 17 de outubro de 2011
Tempo de mudanças
A partir de agora, e várias vezes por semana, estou no Malemolência Zuga, o meu novo blog a partir do Rio de Janeiro.
quinta-feira, 29 de setembro de 2011
Fado da Partida
O meu avô era guarda-fiscal numa aldeia encostada a Espanha onde fazia calor de forno e havia largadas de touros durante o verão. Os miúdos viviam na pobreza descalça de pisar a neve, sem sapatos, no inverno. O meu avô deixou um familiar cruzar a raia a caminho de França. A PIDE descobriu a complacência do meu avô e mandou-o para o castigo de um quartel desterrado, onde não havia aldeias por perto nem familiares aventurosos a caminho das bidonvilles de Paris. Os filhos dos guardas andavam quilómetros a pé para terminarem a quarta classe antiga.
Depois de fazer a guerra em Angola, o meu pai mandou-se para França com uma mulher e um filho. Ganhava mais, podia falar de política em lugares públicos (embora esse não fosse seu hábito), elogiava o sistema de saúde local e talvez tenha pensado em enriquecer. Regressou a Portugal porque a minha mãe não se dava bem com os subúrbios de Paris.
Durante muito tempo o meu pai sugeriu que Truman Capote era da família – tínhamos um tio-avô, de sobrenome Capote, que emigrara para Buenos Aires e depois para algum lugar nos Estados Unidos até que deixou de dar notícias. O meu pai acreditava que o espírito empreendedor e internacional da família tinha, por fim, apresentado resultados grandiosos: um escritor famoso sobre o qual até fizeram um filme com direito a Oscar de melhor actor.
Já vivi em Nova Iorque, Madrid e preparo-me para morar no Rio de Janeiro, mas só agora, muitos anos depois da estreia como emigrante, começo a perceber (a entranhar) uma evidência bem portuguesa – tão portuguesa como é chegar atrasado, desenrascar uma saída num momento de aflição ou ter a habilidade gentil de indicar o caminho certo ou a mesa de casa a um forasteiro. Essa evidência é muito antiga e perpetua-se em nós apesar dos fundos comunitários, dos multibancos e dos hipermercados. É uma evidência que se prolonga na História e se propaga no sangue, algo que se manifesta se ouvimos a voz de Amália no gira discos ou cheiramos as alfarrobeiras a sul ou se a garganta se aperta de tanta beleza numa esquina de luz lisboeta. Essa evidência é mais forte do que aqueles portugueses que a transportam pelo globo, mais importante que o legado da ditadura, a crise ou a globalização. Seja qual for a razão porque saímos deste país – amor, arreliação, aventura, desespero, disponibilidade para a vida – a verdade é que a vontade (ou a inevitabilidade) de partir é tão forte como a certeza que voltaremos um dia, mesmo que não seja para ficar.
Agosto de 2011
terça-feira, 23 de agosto de 2011
O meu romance com um romance
A dormência deste blog não se deve a férias de praia ou descanso do pessoal. Meti-me a escrever furiosamente o próximo romance e não há tempo ou força para muito mais coisas escritas. Mas regressarei em breve, após mudar-me para o Rio de Janeiro. Tenho a certeza que, assim que aterrar, terei muito sobre o que escrever aqui. Para compensar a minha preguiça blogueira, fica um excerto do romance, exclusivo, inédito e on the making.
Até já
Relicário contra comunistas
O verão que antecedeu a minha estreia na escola primária foi o mais quente da história. Digo isto com a mesma certeza com que o meu irmão garantiu, logo no mês de Julho, que nunca mais haveria aulas porque os soviéticos e os americanos estavam prestes a disparar mísseis nucleares. Então, o mundo seria igual aos filmes sobre a Terceira Guerra Mundial. Os sobreviventes deixariam de ter televisão, habitariam grutas subterrâneas e continuaria a haver gente má e alguns canibais, ditadores e banqueiros. Para agravar o pânico de ficar para sempre sem desenhos animados, o meu irmão explicou-me que o calor anormal, que matava pássaros na varanda e deixava a minha mãe tão aflita como um afogado, era prova da aproximação do apocalipse nuclear – a água das piscinas públicas desaparecera, o sol queimava como um ferro de engomar na pele, os cigarros dos adultos acendiam-se sem precisar de fósforos.
Nesse verão, passei muitas tardes na casa de uma vizinha do prédio – a Dona Helena, mãe do Ricardo, colega de turma do meu irmão, e da Susana, que, tendo nascido quatro anos antes de mim, ainda não usava a parte de cima do biquíni na praia. O Ricardo e o meu irmão saíam pelo bairro de bicicleta, faziam parte de uma tribo sénior e masculina que não me aceitava como membro – Susana também fora excluída, tinha os cromossomas errados e jamais conseguiria fazer um cavalinho em cima da bicicleta cor-de-rosa. No final do dia, o meu irmão contava-me como a cidade se preparava para o desastre da aniquilação quase total e aconselhava-me a encontrar um abrigo nuclear. Dizia-me: Já descobri um sítio com o Ricardo, mas não cabe lá mais ninguém."
segunda-feira, 25 de julho de 2011
Não há nenhum consolo nem satisfação em ter dito: I told you so.
(Crónica publicada Julho de 2010 no i)
Dear miss Winehouse,
Quando me contaram que tinhas sido internada outra vez, imaginei-te com um cachimbo de crack e um copo de gin, envolta numa nuvem cocainómana. Depois soube que tinha sido apenas um tropeção que resultou num corte acima do olho e num problema com as tuas novas mamas de cirurgia plástica. Não te escrevo como amigo (não nos conhecemos), nem como paizinho, aliás, dizes na canção “Rehab” que se o teu pai acha que estás bem não precisas de ser internada. Eu até concordo com o comediante Bill Hicks, que disse: “As drogas já nos deram muitas coisas boas. Se não acreditam, peguem nos vossos cds e queimem-nos, porque as pessoas que fizeram essas grandes músicas, que melhoraram as vossas vidas, estavam bastante drogadas.” Nem sequer estou preocupado que os miúdos se ponham a fumar cocaína por causa de ti – as pessoas não precisam de ídolos para se drogar, drogam-se porque querem. Mas fico aflito sempre que vejo que a droga raptou um ser humano e o substituiu por um farrapo de gente – acredita em mim, morreu-me um tio por causa da heroína. Não te peço que deixes para todo o sempre o copo de Tanqueray e alguma maluqueira tóxica. Mas ouve as palavras de outro comediante, George Carlin, cujo génio sobreviveu aos excessos: “As drogas podem ser maravilhosas, mas à medida que as consumimos, a parte do prazer diminui e aumenta a dor. Passa a ser apenas dor.” O que te quero dizer é: põe-te boa dessas costelas doridas e termina o disco que começaste a gravar. Depois, sim, podes festejar. Estraga-te um bocadinho mas, por favor, não te estragues para sempre.
quarta-feira, 13 de julho de 2011
Poliglidiota
Escuta o que te digo
aunque te parezca
uma lenga lenga
of lame, rusty, and
cliché
excuses
Tento todas as palavras contigo
para que te cuelgues en mi cuello
like groupies do with rock stars
ninfeta and slut e dona de casa
fascinada e strastruck
pelo brilhantismo das minhas línguas
falo de sacanagem, versos sem roupa, humidade e umidade
pero nada te convence
nem gramática nem cunnillingus
nem todo o latim malandro das cidades mais sacanas
dizes-me que entre nós não há acordo
nem ortografia em sintonia
dizes:
fuck you very much
pendejo maricon
babaca e filho da puta
só então percebo que, como tantos casais,
temos problemas de comunicação
B.
quarta-feira, 6 de julho de 2011
Coração de papel e tinta
Infelizmente, não por minha vontade, deixei de escrever diariamente no i. Esta é a última crónica. Pode ser lida aqui.
segunda-feira, 4 de julho de 2011
Para português ver
Quando os navios ingleses começaram abordar os barcos portugueses, a fim de fiscalizar o tráfico de escravos, conta-se que as frotas lusitanas mandavam uma embarcação na frente, com mercadorias legais, para ludibriar os bifes. Assim terá nascido a expressão: "Para inglês ver." Os tempos mudaram e o inglês passou de agente fiscalizador a fazer parte do nosso dia-a-dia: palavras em conversas - cool, fashion, kinky -, nomes de discotecas - Silk - restaurantes - Guilty - ou ginásios - Envy.
Para ler tudo, cliquem aqui.
quarta-feira, 22 de junho de 2011
Um dia especial
"O primeiro dia deste governo podia ter sido contaminado pelas imagens daquele homem que, perdido e sozinho no hemiciclo, parecia um menino transferido de escola a meio do segundo período. Fernando Nobre, que passou de popular nas urnas presidenciais a impopular na campanha para as legislativas - até que foi empurrado para um canto do parlamento -, não resistiu nas notícias muito tempo. História contada, história empacotada. Havia holofotes para acender, câmaras para ligar, directos para fazer, ministros para apanhar a sair de casa. Quando um governo toma posse, para mais com tantos protagonistas novos, espalha-se nas ondas mediáticas e nos olhos dos telespectadores uma espécie de credulidade boa, de primeiro dia de escola, quando ainda não é preciso levar livros, fazer trabalhos de casa e os professores nos deixam sair mais cedo para recuperarmos amizades suspensas após meses de férias nas peladinhas do recreio da manhã."
Para ler tudo, clicar aqui.
terça-feira, 21 de junho de 2011
Nesse corpo estreia o Verão
"É mais que geografia ou anatomia: a curva do teu ombro é também aquela curva perigosa da estrada para a praia, o cheiro do alcatrão melado misturando-se com a maresia, um pára-brisas coberto por insectos kamikaze, música tão alta que não se ouvia o motor. E a boca: comedora de Verões em cada ameixa chupada, lábios que bebiam refrescos pela garrafa, língua com língua no jogo do bate-pé."
Mais sobre o verão aqui.
segunda-feira, 20 de junho de 2011
Coisas rápidas que matam devagar
"Há muita pressa e rebuliço nos nossos sistemas nervosos. Não chegou o metro e todos se levantam, uma manada de viajantes que entopem o caminho de quem quer sair das carruagens. São pequenos hábitos que nos controlam e nos corroem como uma carraça escondida na orelha."
Para ler na íntegra, cliquem aqui.
domingo, 19 de junho de 2011
Crónica do suplemento LiV, publicada no i
Cira, Regina e Nana*
Ela era tão bonita que ensandecia a tropa
Qualquer descrição da beleza sexual de Cira resultará na confirmação da falta do meu talento literário. Mas Cira era um avião transgaláctico, um hard body ao natural, el pivón de todos los pivones (e qualquer coisa formidável em francês que é língua que desconheço). E a língua carioca de Cira, como era? Eu queria saber. Também queria descobrir o que ficava no lado de dentro daqueles vestidos, o precipício que resvalava das suas coxas, a erupção vulcânica dos mamilos que desprezavam a lei da gravidade. Cira fazia de mim este poeta do mau gosto erótico e dos lugares comuns da sua carne - lugares tão raros e difíceis de alcançar.
Mas eu não era o único poeta atrás da musa da Urca. Muito menos o único homem a perceber a inevitabilidade da biologia nas virilhas quando ela passava, pedalando na bicicleta, voando cabelos, lançando perfume, encaixando como uma boca nas frases que eu considerava geniais: “Ela era um espectacular convite para fazer bebés”, in Slaughter House 5, de Kurt Vonnegut.
Cira era para comer, devorar, engolir inteirinha.
Depois de semanas a beber cerveja naquele bar da Urca, contemplando o pedalar de Cira, fomos apresentados pelo dono do boteco: “Esse português é famoso no país dele. É artista. Você é actriz, não é Cira?” Eu era conhecido, sim, entre os meus familiares – célebre pela minha ausência. E de artista tinha apenas um passado como larápio da boa vontade dos meus pais, que me sustentaram durante um curso de actor, outro de realizador e um workshop de escrita criativa. Também me ajudavam com a renda do apartamento em Copacabana. Cira era mais ou menos actriz. Tinha feito umas fotos para um catálogo de roupas e um anúncio de TV. Mas protagonizava muitos filmes para adultos na minha cabeça.
Cira acreditou na minha fama. Eu acreditaria em qualquer coisa que ela dissesse: “Um amigo vai dar uma festinha num veleiro, aqui mesmo.” Márcio era filho de um general com barco ancorado na marina do quartel da Urca. Comprámos cervejas e vieram buscar-nos numa embarcação de borracha com motor. A festa tinha rapazes e garotas que, como eu, eram financiados por pai-trocínios e heranças de tias, todos eles comedores e fumadores de coisas vegetarianas. Falavam de sustentabilidade e lançavam pragas – não tinham cojones para atirar bombas – a todos os franchises que invadiam o Rio. Odiavam os riquinhos fashion week de São Paulo e tinham feito voluntariado na favela. Um queria ser músico (tinha um iPod), outro dizia ser escritor de romances no twitter, outra enrolava charros com a minúcia de uma criança asiática a coser ténis internacionais.
Márcio era um vendedor de si mesmo, omnipresente no veleiro e no planeta – tinha estado com xamãs mexicanos e guerrilheiros do médio oriente. Escrevia, cantava, salvava espécies em vias de extinção. Tinha uma sunga apertada para salientar aquilo que não podia anunciar em voz alta no contínuo documentário ambulante que era a sua vida.
Cira não fazia parte daquela tripulação. Havia ali arroz com feijão em alguma parte do seu cabelo. E na bunda. Era isso, a bunda. Cira abria todas as portas, tinha uma bunda-mestra que lhe permitiria agradar em todo o lado, do Meat Packing District, bebericando cocktails pela mão de um vampiro de Wall Street ou friccionando coxas e mamas e bunda num baile funk com mais coca que farofa e tiros de AK 47 disparados em celebração de sua glória para o céu do Rio Janeiro.
Cira estava naquele veleiro porque todos – incluindo as garotas cada vez mais dengosas e dançarinas – queriam comê-la.
Márcio ofereceu-se para ir comprar mais cerveja. Levou Cira consigo. Caiu a tarde, avançou a noite e Cira não regressava. Na última vez que a vi, os soldados do quartel ajudavam-na a subir para o cais. Márcio, sabendo que não regressaria ao veleiro do papai Bonaparte, caminhou ao lado daquele corpo para fazer bebés, a mão dele colada nas costas dela, escorrendo para a bunda, uma prova da sua vitória. Depois fez um adeuzinho para o barco.
Eu fiquei longe da costa e dos flancos de Cira. Foi então que surgiu Regina com um baseado que parecia um archote: “Você conhece Fernando Pessoa?”
Ela é a moça certa carregando aquela tocha
Regina era daquelas maconheiras místicas que fala sem parar, enlaçando ideias que julga brilhantes, perdendo-se a meio de uma frase. Mal soube que eu era um escritor famoso não publicado, meteu-se a recitar Alberto Caeiro.
Perguntei: “Conheces o trabalho do Luiz Pacheco?”
“Oi?”
“Acordou um triste dia/ Com uns cornos bem bonitos./ E perguntei à Cira/ porque me pôs os palitos.”
“Esse Pacheco conhecia a Cira?”
Porque não me apeteceu explicar que mudara o nome de Maria por Cira, porque Regina verbalizava para cacete, porque era poetisa e dramaturga, porque tinha boca de boa dicção e nenhum batom, fiz aquilo que em vulgus lusitanus se conhece como: saltar-lhe à boca. Ela seria o meu farol.
Regina não aguentou os beijos de olhos fechados, as voltas e voltas que o fumo, as odes e a cerveja davam dentro da sua cabeça. Bastava olhar para ela para perceber que se sentia como a hélice de um helicóptero. Pediu licença, vomitou borda fora e foi dormir para uma das cabinas. E eu, sem acesso ao barco de borracha que Márcio deixara tão longe como Cira, ponderei saltar para a água e, caso soubesse nadar, ir chapinhando como uma criança amuada até casa. Queria fugir dali. Mas não há duas sem três. E existem tantas coisas melhores do que estar sozinho.
Não é por desmerecer nem dizer que a fila anda, mas agora vou falar do meu amor por Nana
Meu bem supremo, mãe da minha prole por nascer, minha cama, meu nano e micro amor maior. Nana: minha salva-vidas, meu resgate aquático, sereia que se jogou para o mar quando caí borda fora por exageros alcoólicos, campeã da respiração boca-a-boca. O que tenho para dizer sobre ti vai muito além das minhas limitações com palavras. Mas prometo uma coisa. Se ao fim de quinze dias ainda estivermos juntos, mudas-te cá para casa e fazemos um filho. Eu deixo de ser escritor não publicado, paro de beijar artistas e de tentar apanhar aviões com bunda premiada, e arranjo um emprego. Que se dane a literatura. Eu só quero que o amor passe a ser um lugar-comum. Cansei de lugares raros e difíceis de alcançar. Cansei de amor de pau duro e poesia. Preciso de alguém que me salve de um naufrágio. Preciso de ti, Nana.
* Canção do músico brasileiro Lucas Santtana
A vingança da hortaliça
"Quinta-feira, final de tarde e desço a Avenida da Liberdade. Faltam ainda dois dias para o mega, super, jumbo piquenique organizado pelo Continente, com concerto de Tony Carreira, e a avenida já está cortada. Nas laterais, os carros parecem tão parados como um aeroporto em greve. Vejo os condutores irritados ou derrotados como cães esquecidos no calor dos estofos. No centro da avenida (sem automóveis) estão os canteiros com vegetais, uma horta entre o Marquês e os Restauradores."
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sexta-feira, 17 de junho de 2011
Carta cândida aos apóstolos
"Senhor Pedro e senhor Paulo, nada disto tem a ver com o outro Senhor, falo-vos sobre as coisas de César, sobre a terra e o mar e as pessoas que habitam esta cave solarenga da Europa, cada vez mais ilha e menos península. Não quero um subsídio, cunhas ou sequer fazer reclamações. Tampouco peço milagres. Mantenhamos os pés no chão e falemos da terra, do mar e das pessoas que perderam a ilusão da harmonia com o resto do continente."
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quinta-feira, 16 de junho de 2011
O rapaz secretário de Estado
"Depois de tanto entrecosto em jantares comício e visitas a mercados e bandeiras a bater-lhe na cara, ele estava cada vez mais próximo. Tinha-se preparado ao longo dos anos, apertara a mão gosmenta de colegas de partido que, se pudessem, o punham a trabalhar numa portagem."
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quarta-feira, 15 de junho de 2011
Lixo porco
"Por todo o país há esse lixo cheio de bactérias, despudor e mentira, comercializado em capas de revistas que gritam títulos imundos: "Sónia Brazão morte anunciada. Todos os pormenores do horror para sobreviver." Estas revistas defendem o direito ao jornalismo da emoção (?), como quem acena ao leitor com um acidente de carro na auto-estrada. E se o Cristiano Ronaldo passou, em algum momento da sua vida, nessa estrada, melhor ainda. Faz-se logo uma chamada de capa."
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terça-feira, 14 de junho de 2011
Ronha
"O dicionário diz: “Ronha: espécie de sarna que ataca alguns animais. Doença prejudicial à produção do sal. Malícia, velhacaria.” Nada disso. Ronha é encontrar nova posição na cama, a baba escorrendo para a fronha, espreguiçar músculos e tendões que continuarão embrulhados nos lençóis como se num casulo, num regaço, num vaivém espacial."
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Samba do fado da ausência
"Quando ela não estava, o apartamento parecia mais arrumado, chato como uma noite de Junho que sabia a Fevereiro, janelas tremendo no caixilho, os chinelos dela ainda espalhados na sala.
Quando ela não estava, ele dava-se conta de como tudo permanecia por tocar, incluindo o patético chapéu verde, que jamais usara na rua, mas que servira de adereço para o disparate matinal do riso - música a tocar bem alto, ele cantando e dançando de vassoura nas mãos."
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sábado, 11 de junho de 2011
Santo António de polpa
"Rogério de alfama era rapaz de boné de basebol, tinha tatuagens tribais e embora morasse no Beco da Bicha cantava fado vadio como quem anda ao estalo com um marinheiro. Dúvidas houvesse da masculinidade dos seus bíceps de ginásio, num abrir e fechar de pestana emprenhou Vanessa, filha da Maria da papelaria e do Albano que morreu num acidente enquanto emigrado em França. Vanessa tinha marchado pela Bica em anos anteriores, onde vivia com a mãe, traficante legal da coscuvilhice e da mentira em revistas cor-de-rosa - também vendia tabaco e material escolar. No apartamento da família, morava ainda um gato, dois canários e uma tia tão solteira como menopausica, que gostava de pombos e de estar à janela como se fosse um par de cuecas voyeurs no estendal."
Para ler na totalidade clicar aqui.
Ilustração de Tiago Albuquerque
sexta-feira, 10 de junho de 2011
Desliga, crónica no i
"Tenta apagar parte da tua vida. Vê como se esvanecem as luzinhas histéricas e deixa de apitar a cada três minutos - no bolso das calças ou no portátil que está no teu colo enquanto espreitas a TV e zapas no comando como quem tecla um SMS com polegares de campeão da Playstation."
Para ler na totalidade, clicar aqui.
quinta-feira, 9 de junho de 2011
Pepino love story
"Juanjo, de Sevilha, estava em Madrid para acampar na Puerta del Sol e contestar a democracia, o desemprego, os bancos. Monica, de Berlim, estava em Madrid para romancear a vida, ver Picassos, Sorollas, Mirós e encher a cara de tintos de verano em esplanadas anticrise."
Para ler no totalidade é só clicar aqui.
quarta-feira, 8 de junho de 2011
Sou da casquinha do ovo
LX trepa com RJ
serás tardes no arpoador
com a ternura faladora da maconha e mergulhos
acrobáticos
voos de menino lisboeta
no mar carioca
serás todo corpo e coração de cavaquinho
suando na Lapa e flutuando dentro
de um táxi
de copacabana ao humaitá
a floresta colada na tua roupa
outras bocas
tantas bocas e a mesma língua
serás mais amigo e mais pé descalço
mais melodia assobiada e anca de menina
serás coisas boas e porres doces
fruta espremida e novos livros
serás mais tu
quando as luzes se acenderem no Vidigal
e a rádio tocar Carinhoso
teu coração batendo feliz sabendo porquê
e serás menino moleque criança transatlântica
um só coração
duas moradas
Partida, lagarta, fugida
Bastava apenas o maravilhoso engenho que era o teu corpo sem dores adultas nas costas ou a efervescência da ansiedade impedindo o sono, obrigando-te a acender mais um cigarro. Bastavam os teus braços como torpedos rasgando as ondas, nem o frio te preocupava, dedos amachucados com papel manteiga (para ler na totalidade cliquem aqui)
segunda-feira, 6 de junho de 2011
Summer Love Overheated
(texto de Junot Diaz, um dos meus escritores favoritos, publicado em 2008 na GQ)
Of course I loved her. Isn’t that how all these stories are supposed to begin? She was from Amsterdam, black Dominican mother, white Dutch father. I called her my chabine because that’s what she looked like; only her lips and hair kept from passing completely, from pulling a Jean Toomer. The ass she had, my fucking God, it was supersonic, which is to say she couldn’t walk past a group of straight men without pulling out the shingles or shattering the panes of their conversation.
She was about the most exotic Dominican woman I’d ever met (that’s the kind of shit that matters to you when you are in your twenties), and the classiest. She spoke Spanish and could dance bachata, but she’d grown up in the farthest spiral reaches of the diaspora, in Delft, Vermeer’s old stomping ground. Was smart, too; could speak four other languages, had traveled all over the world, and could tell a story like you and I could tell a lie. She was finishing her thesis on Dominican women’s identity, but what she really wanted to do was write children’s stories. She wanted to be the next Road Dahl. Every now and then, especially when she was excited, she would forget articles and miscongugate her verbs. She’d pick up her camera and say, I want to make picture. I found it incredibly endearing.
It wasn’t hard to love her. She was funny and she was sexy (she moved like something only recently evicted from the ocean, an undine or a Nereid), and best of all, she loved me. Loved me so much she’d broken off a three-year engagement after the first time we kissed. (Could have been the second time. You know how these things are.) She said she’d never met anybody as alive as I was or as smart, and every time we fucked, I was shaken, absolutely shaken, and because I was a fatalist at my core, I had dreams, nearly every week, in which I lost her.
The shit should have been perfect, perfect, except for the fact that I was basically nuts. I was depressed, experienced alarming mood swings, and suffered from what a psychologist called baseline irritability (which meant I could go from zero to violent in 2.2 seconds). And to top it all off, I wasn’t writing, and wouldn’t for nearly six years. Took that shit out on everybody around me. Especially her.
She wasn’t perfect, either. She was a fiend for male attention, would have flirted at the pope’s funeral, and she could throw a plate with the best of them. But in the final analysis, the banana-ness was mostly mine.
Some relationships snap like bones; others go into long, byzantine declines. Ours was the latter. I was doing something good, followed by something real stupid. I would surprise her at her job in Holland, show up with my suitcase and expensive gifts, and then at her graduation, in front of her whole family, I would attack some poor homeless guy who made a swipe at the flowers I’d bought her. And yet no matter how crazy I acted, I had this unshakable, adamantine conviction that things could work out, and something of my feverish delusions passed on to her. The crap she tolerated of me, I can’t think about it without wanting to laugh. I mean, I’d treated plenty of chicks a lot worse, but I actually cared about Amelia, in my own way, and had I been saner and less self-destructive we probably could have worked.
Or is that just the nostalgia talking?
Anyway, something about where we each were in our lives, something about the wildness of our relationship, something about our weakness—we were kind of trapped in each other. God knows for how long we lingered in our half-lives if not for the shit I’m about to tell you about. I have friends who were in miserable relationships for eight, nine years. I honestly believe we could have been one of them, trapped in “love” like bugs in amber.
So check it: I’d blown it again, another stupid something, and I was in Amsterdam, trying to make amends. We’d been arguing and fussing and of course fucking like crazy, and in the end she decided that we should have a Special Day. She wanted to take me to her favorite park, to her favorite lake, to sit on her favorite bench and find, with luck, some kind of absolution. I was all for a Special Day. Sounds like a fucking plan, I said.
We had to ride about an hour out of Central Station into the country and then hike quite a bit to reach her Special Place. What I remember is how optimistic she was and how long and thin her torso was, how I had this irresistible urge to bite her. Took us an hour and twenty minutes to get to where we were supposed to be which was pretty enough. Forsythias everywhere. At any point in the journey, we could have stopped to tie a shoe or buy a soda and things might have worked out different for us. But like they say in all the fantasy books, you can’t avoid your Destiny.
We sat down on the bench looking out over a lake, the only people in the park, it seemed, but before we could even say “start the reconciliation,” this outdoorsy white dude bounded out of nowhere and in front of us started throwing a stick in the water for his two dogs. The bigger dog, a spaniel, would jump into the water and bring the stick back before the poor smaller dog could even get five feet out from the shore. This happened a couple of times; the smaller dog would start paddling back and then the stick would fly over its head, so of course it would dutifully turn around and start swimming back out toward the stick only to be beaten to it by the spaniel.
After about five of these throws, the white guy was satisfied, and he and his big dog started to walk away, leaving the little dog struggling in the water. I was the only one who noticed the poor fuck go under. Your dog, I told the guy. Fate would have it that he was the lone motherfucker in Holland who didn’t speak English. What is it? my girlfriend asked me. His dog is drowning, I screamed, and that’s when she cried to him in Dutch and the dude, giving out an anguished cry, jumped right into the lake. Brought his dog out in no time at all. My girl was saying, Dios mio. The little guy, some kind of beagle mix, could have been under for more than ten seconds, but he was dead as fuck. Eyes glassy and everything, the color of old smoke, water pouring out his nose holes. White Boy tried to blow air into the little guy’s lungs, tried squeezing his ribs and holding him upside down, but the perrito was dead. White Boy said something to us, miserable, and the girlfriend translated. It’s not even his dog. It was his girlfriend’s. He was just taking it out for a walk.
Right there, my girl burst into tears.
Well that was it for our Special day. That was it for my reconciliation trip. That was it for our relationship.
For the next couple of years, as I slipped deeper into depression and she met other guys and started appearing on Dutch TV, I would occasionally blame that fucking dog.
Of course I did.
domingo, 5 de junho de 2011
Um bom dia para um casamento, publicado no jornal i
A viagem
Eram pequenas coisas que se tornavam enormes: ele a conduzir e o pai ao lado, ele a ajudar o pai a entrar no carro por causa de uma dor nas costas, ele com o total controlo da rota, o silêncio entre os dois, não uma ausência de palavras, o silêncio. Pela primeira vez o silêncio. Crescer era isso – não apenas pagar contas, ser apanhado a conduzir com os reflexos inundados em gin ou nadar para fora de pé sem braçadeiras. Crescer, ser adulto, era aquilo: ir ao funeral da mãe do seu pai, a sua avó, tratar da papelada, ser mais pragmático diante do corpo que um médico em cenário de guerra. Havia muita coisa para fazer. Ser adulto era falar com a senhora das flores. Ser adulto era ouvir na voz do pai a sua voz de menino, frases rotas pelos soluços, as lágrimas escorrendo na garganta. Ele era adulto, o pai era velho. Ele já não era o menino do seu pai.
O pai tinha-lhe dito, ao telefone, “A minha mãe morreu, a avó morreu”, e naquelas palavras revisitou o seu próprio choro quando entregava um teste com negativa ou se tinha perdido numa praça de Badajoz ou quando o irmão lhe batia – ou quando o irmão não lhe batia e ele fingia-se saco da pancada, íman das atenções da casa, o filho mais novo.
Pararam várias vezes no caminho. O pai tinha a próstata danificada, demorava-se em frente aos urinóis das estações de serviço enquanto ele lia os jornais, as revistas, as legendas das páginas duplas com mulheres lambidas pelo Photoshop. Comprava chocolates mas ambicionava cigarros. Não fumava diante do pai. Nunca fumaria diante do pai depois de ter sido apanhado, no sétimo ano, com um maço escondido na gaveta das meias, denunciado pela empregada que também lhe apanhara material pornográfico. Os cigarros eram pior. Nunca se falaria de masturbação naquela casa, mas o tabaco era meio caminho andado para as ganzas, a heroína, a desgraça de uma família com as pratas roubadas. Não fumava diante do pai, não falavam de política, não trocavam ideias sobre temas que acabassem em semanas sem um telefonema.
Encostado ao carro, viu o pai, que saía da casa de banho, a braguilha aberta, os olhos procurando um lugar seguro, tal e qual a criança perdida em Badajoz. O pai, naquela estação de serviço, avançando medrosamente para um funeral, era o mesmo homem que, depois de confiscado o tabaco, lhe tinha atirado o maço à cabeça. O pai era forte e ambicioso e arrependia-se sempre que largava um estalo. O pai precisava agora de comprimidos para dormir e tinha os olhos tão vermelhos como uma tarde subaquática na piscina.
Entraram no carro, ele não acendeu a rádio. Não era estranho o silêncio.
Serás terra
Era um dia lindo para um casamento. O céu não tinha um farrapo de nuvens e havia pássaros. Iam a pé até ao cemitério, o pai sem dizer nada, caminhando atrás da carrinha funerária, atrás da sua mãe, encolhida por tantos anos de vida, dentro de um caixão. No final, quando a demência tudo confundia na linha cronológica das sinapses da avó, ela só reconhecia o seu filho. Não o filho com filhos, dores na próstata e três casamentos. O filho dela, pequeno, o filho carente de coisas doces, o miúdo incapaz de perceber que a mãe seria enterrada num dia lindo para se fazer um casamento.
O pai não falou no caminho para o cemitério, mas ele ouvia a sua voz como se equipado com auscultadores de museu. Na visita guiada, o pai repetia o que lhe contara há muitos anos, quando por ali passaram num verão:
“Esta foi a casa onde nasci.”
“O teu avô pôs um baloiço naquele sobreiro.”
Ele analisou as mulheres no cortejo. Só uma prima em segundo grau o cativou. Depois olhou para os pés dela e ficou manso. Sentiu-se aliviado. Não queria filmes nem filhos vítimas da consanguinidade. Olhou outra vez para os pés dela. Queria ter a certeza que não era aquilo que precisava. Ouviu a voz do pai nos auscultadores da infância:
“Devia vir cá mais vezes.”
“Tens a genica do teu avô.”
Cruzaram os corredores de sepulturas. Como fazia sempre que estava num cemitério, pôs-se a contabilizar a longevidade das vidas dos mortos: Justino Gomes (1956-98), Bernardina Ramalho (1910-78), Domingos Lourenço (1976-77). Ele sabia que todos os humanos faziam esse jogo nos cemitérios, esse exercício de perspectiva, como quando estamos debaixo de um céu estrelado ou nas ruínas de uma civilização muito antiga.
Há anos que o pai comprara, naquele cemitério, um pedaço de descanso eterno com jardim privado e cheiro a ciprestes. Estava lá o avô, estava lá o buraco que seria a campa de mármore da avó. Fez contas de cabeça para saber a idade do avô. Nos auscultadores ouviu:
“O teu avô fumava e bebia muito.”
“Eu nunca quis fazer mal a ninguém.”
“A minha mãe morreu.”
Porque tinha estado em vários funerais, ele sabia do apogeu dramático do caixão a descer ao fundo da cova. Segurou o pai pelos ombros, beijou-lhe a cara, não disse nada. Não fosse o choro do pai, que era também o seu choro de menino, tudo seria outra vez silêncio. Ele não chorou. Ele era o pai e o pai era o filho.
Regresso
Nessa noite dormiram num hotel na cidade mais próxima. A prima em segundo grau também. No bar, porque sabia dos poderes libertadores das bebidas espirituosas, ele pediu apenas um copo de vinho, enquanto ela sorvia Baileys com gelo em cálice largo e falava de uma série de televisão com médicos e do preço do aparelho para os dentes da filha. Ser adulto era ver ficção americana no pequeno ecrã e endireitar aquilo que nasceu torto por causa dos nossos genes. Ser adulto era ir para o quarto sozinho.
Ela disse: “Devíamos ver-nos mais vezes, nem sequer tenho o teu número.” Por via das dúvidas, ele olhou para os pés dela. Disse: “Vou dormir, o meu pai não anda bem.”
Escovou os dentes, apagou a luz e atreveu-se na escuridão, as pupilas aumentando, procurando os objectos, o seu pai deitado numa das camas. Dobrou-se sobre aquele corpo. Tentou ouvir a respiração. Não lhe tocou. Lembrou-se como, juntamente com o irmão mais velho, fingia que a cama era uma nave espacial. Entre os lençóis, disse baixinho: “Vamos levantar voo.” Não demorou muito a adormecer.
Na manhã seguinte, dentro do carro, outra vez o silêncio. Entregou o pai na casa onde crescera. Ali seria sempre mais filho do que pai, mesmo quando tivesse crianças e elas saltassem para a piscina e houvesse festas de aniversário e Natais que seriam outros Natais.
O pai disse: “Não queres entrar?”
E ele voltou a ser o filho.
sábado, 28 de maio de 2011
O teu cheiro
És toda partículas que se espalham pela casa, és toda moléculas de pele que pairam como bandos de pássaros numa casa de janelas abertas para a cidade das palmeiras, dos jacarandás, das árvores que conspiram para plagiar o teu cheiro. Escuta como digo: o teu cheiro. Está nos vincos da almofada que te marcam a cara quando dormes toda a manhã, está nas meias coloridas e nas pastilhas elásticas que deixas nos recantos do quarto, está nas mãos que não se cansam de te apertar. O teu cheiro: milhões de partículas que se despegam desses lugares em ti, do cabelo molhado quando sais do banho e um rádio toca alto na sala, das mãos escrevendo bilhetes com caligrafia de carta antiga, da curva do pescoço que serve de casa, de templo, de falésia ao resto do teu corpo.
Não há outra maneira de o dizer: farejo-te como um bicho, o nariz imitando os dedos, deslizando pela tua pele como um peregrino ou um caçador. O teu cheiro: infinitos fragmentos de ti, o teu código genético, tudo aquilo que já foste - mergulhos na praia Grande, mortais de ginasta, sobrancelhas levantadas pela curiosidade de perceber e viver tudo o que te rodeia. O teu cheiro, ainda o teu cheiro. Se te toco altera-se, se acordas é outra coisa, se te vais embora fica por aqui, balançando todo o dia como uma cama de rede num alpendre. O teu cheiro: tantos e tantos pedaços de ti que respiro agora mesmo, suaves estilhaços que pousam nos pulmões e entram na circulação sanguínea, instalando-se em cada célula, forrando o lado interior do coração. O teu cheiro és tu a pulsar dentro de mim.
sexta-feira, 27 de maio de 2011
Relatos masculinos sobre mulheres estereotipadas, publicado no jornal i
Diogo e a cock teaser
Ela era loira e magra e muito beta. Mas também era tão gira que passei um mês a dar-lhe boleias, a escrever bilhetinhos e a cortejá-la com jantares e apontamentos da faculdade e presentes originais que ela, tenho agora a certeza, achava inúteis. Os seus cabelos manipulavam-me como se eu fosse um golfinho amestrado, sempre pronto para a salvar. Eu escondia o meu tesão, escondia a minha natureza. Ela não ia dar-me nada que estivesse além da fronteira da roupa. Repara, não era pudica, de certeza que havia quem lhe pusesse as mãos nas mamas. Mas eu era o microondas, a volta de aquecimento, caindo no seu jogo de vai-vem, o anda cá agora que preciso de tua atenção, artolas, e toma lá um inunendo sexual para continuares na minha órbita, ou um bater de pestanas que queria dizer: sei que vais para casa brincar com o teu corpo como se fosse um jogo de flippers enquanto pensas na minha boca que comia um cornetto pago por ti.
Já reparaste que não há uma palavra, em português, para classificar as mulheres que provocam mas não dão nada? Os espanhóis têm “calienta pollas”, os franceses dizem “rôtisseuse”, os anglo-saxónicos dispõem de “cockteaser”. Faz-nos falta uma palavra assim na nossa língua, alguma coisa que nos avisasse da existência perigosa destas mulheres que nos têm presos pelas partes baixas.
No fundo, sabia o que ela estava a fazer. Sabemos sempre. Um dia fomos lanchar e ela começou a falar-me de outro gajo. Declarou-me o seu amor por um beto mais giro, mais alto e que a desejava menos do que eu.
Podia dizer que isto aconteceu porque eu era um miúdo. Mas não. Eu caí então como caio agora, ainda hoje, com esta idade, porque sigo a incontornável lei biológica que mantém viva a espécie: espalha a semente. Parece-te um disparate? Então como explicas que mesmo conhecendo a existência destas mulheres tantos homens se enfiem contra a parede, uma e outra vez, qual carrinho (mal) telecomandado? Meu amigo, o predador desata a correr ainda que saiba que a presa é mais rápida e engenhosa. Uns chamam-lhe estupidez. Eu sou apenas um escravo estúpido do sangue animal que herdei.
Pedro e a papa-hóstias
Eu estava no Rio de Janeiro de férias, estavas lá comigo, Hugo, conheces a história tão bem como eu. Mas está bem, eu falo disso: nós com um apartamento ao lado da casa de meninas mais famosa da cidade, perto da praia com corpos resplandecentes de bronze e possibilidades, as nossas amigas cariocas giras na cabeça e sem teias de aranha na moral, mas calha-me uma miúda que, sempre que passávamos diante de uma igreja, se benzia e dava um beijinho no Cristo de prata no fio ao pescoço. Numa noite pós jantar/chopp/passeio na praia, lá nos beijámos à porta do prédio dela (vivia com os pais). Eu arrisquei uma mão na bunda, e a mão dela, manipulada pelos ensinamentos do senhor padre, rapidamente me pôs na linha.
Já viste como a religião escavacou a sexualidade das mulheres? E dos homens? Mas com as mulheres é pior. Na doutrina clerical bafienta, as mulheres ou são putas – Maria Madalena – ou são santas – Maria imaculada mãe de Cristo. Devassa ou virgem mãe – por mais bizarro que seja a ideia de uma mãe com o hímen intacto. Faz algum sentido? Não tem que fazer, é religião, essa forma burocrática que a superstição encontrou para parecer mais legítima e chamar-se religião. E depois foram séculos a destruir a auto-estima feminina, a constante tentativa de controlar as pessoas, cintos de castidade, uma campanha de medo e castigo, a ameaça definitiva em jeito de exortação: cuida do templo que é o teu corpo, os homens vão tentar abusar de ti e poluir a tua pureza, ama apenas o Senhor e não os senhores que te convidam para jantar. Caso contrário és uma quenga que arderá no inferno da fornicação eterna – e serás escorraçada por nós, queimada, excluída, achincalhada em praça pública. Um banqueiro tem mais hipóteses de entrar no Paraíso que uma mãe solteira com três one night stands na sua carreira de cama.
No último dia no Rio, ela quis levar-me a passear. Sabes onde fomos, não sabes? Lá a cima, mais perto do Céu, onde vive o Cristo Redentor de braços abertos sobre o assombro que é aquela cidade onde todos se comem – menos eu e a papa-hóstias.
Rodrigo e a mulher casada
O sexo era tão bom que os vizinhos acendiam um cigarro. Ela estava em forma, quase não se percebia a cicatriz da cesariana e a hora de almoço sempre foi das minhas preferidas para foder (podes escrever foder, no jornal? Se puderes, melhor, porque aquilo não era fazer amor). Ela chegava a minha casa, fumávamos uma ganza, ela trazia sempre um Cd novo, punha a música a tocar e comíamos japonês, bebíamos cerveja gelada, ela dizia: “Vou almoçar-te”. Minutos depois estávamos na cama, a transpiração arrefecida por causa das janelas abertas para a luz da cidade. No final, cada um caía para seu lado da cama, pensando coisas muito diferentes, o coração a bater numa veia do pescoço, o fôlego recuperado aos poucos, uma espécie de trip com levitação.
Regressados à realidade, dizíamos umas piadas, ela tomava um duche e eu fumava um cigarro a olhar os jacarandás da rua. Ela nunca se demorava. Eu gostava disso. Era muito bom, muito cinemático, e até durou um par de meses. Mas havia coisas que me faziam perder o equilíbrio sobre a corda. Mais que uma vez ela atendeu o telefone para falar com o marido. Nós dois nus, o lençol tão desarrumado que se via parte do colchão, uma caixa de preservativos no soalho e ela, “Baixa a música”, antes de atender, enquanto se cobria com uma almofada.
Então eu tentava ficar longe, mas por vezes ouvia a voz do marido, coisas sobre familiares e cartões de crédito e miúdos para apanhar na escola. Na última vez que ela entrou lá em casa o telefone tocou quando, entre as suas coxas, eu parecia um crocodilo camuflado, instantes antes do ataque. Sentei-me na cama e ela atendeu. Ouvi um dos filhos perguntar: “Mãe, onde estão os patins em linha?”
Eu sei que tu és um libertário armado ao libertino e mais não sei quê, mas aquilo atirou-me ao chão. Não te rias, ela podia ser a tua mãe. Pois. E até aposto que não metes isto no jornal.
Só mais uma coisa: tem cuidado quando te puseres a reduzir as mulheres a conceitos, como se fosses um publicitário. Funciona muito bem numa página de jornal ou no teu facebook. Mas na vida, na cama, no mano-a-mano que são estas coisas, nada nunca é tão simples como queres que pareça nas tuas histórias.
PS - Após a publicação deste texto, recebi um email de um leitor tão engraçado como pertinente. Transcrevo parte desse email, pela importante informação contém: "Talvez
por ser uma pessoa com "tendência" para passar por situações semelhantes àquela que o Diogo descreve, há muito que aprendi a classificar essas mulheres.
"ESTICA-PIÇAS"
Não sou o criador da expressão. Ouvi-a pela primeira vez
numa discussão de amigas quando uma delas acusava a outra de ser uma
"estica-piças". Acho que o seu amigo Diogo ficará feliz por conhecer este vocábulo."
sábado, 21 de maio de 2011
Palavra (En)cantada
Não percam este documentário sobre a música brasileira, passa manhã, domingo, na RTP2, às 15h00, com a participação de Chico Buarque, Maria Bethânia, Adriana Calcanhotto, Lenine e muitos mais. E aqui fica uma entrevista no jornal i, que fiz ao autor e guionista do filme.
sexta-feira, 20 de maio de 2011
Bolas de Berlim na praia e melão na varanda, publicado no i
Proust e sua madalena
Pergunte-se a um chefe de cozinha que menu escolheria para última refeição antes de ir desta para pior e quase todos incluirão um ou mais sabores da infância.
Pergunte-se a um daqueles cientistas que investigam cérebros sobre os artifícios da memória, e quase todos dirão que é mais fácil guardar uma recordação marcada pelos sentidos do que é decorar um número de telefone, essa sequência desinteressante de algarismos sem memórias de uma cara lambuzada de fruta com o mar ao fundo e os pés descalços.
Pergunte-se ao fantasma de Proust sobre os contributos de uma madalena mergulhada no chá para a ciência das viagens no tempo, e ele responderá com sete volumes.
Há no nosso sangue rabanadas de Natal com cheiro a lareira e irmãos em pijama, há o espanto do primeiro caracol na língua, há rissóis de camarão que a vizinha do 2º Esquerdo vendia para fora.
Nós somos aquilo que já comemos.
O anjo de chapeuzinho branco
Ele tinha cara de irmão Metralha – quantos fósforos acendeu na lixa da barba? – e óculos espessos como as lentes de um telescópio. Usava sandálias de cabedal sobre meias turcas. Tinha o cheiro do suor e do vinho e, no entanto, era um anjo branco que marchava sobre a areia, distribuindo milagres a troco de moedas, cantando com voz de taberna o mais belo dos pregões: “Eeeeh boli Berlim, olha a bolinha quentinha.”
Esqueçam os perdigueiros de caça e os poderes Jedi e o sentido de aranha de Peter Parker. Ouvia o chamamento do anjo branco ainda ele estava a sair da padaria. Podia estar a meio de uma competição de carreirinhas, mas sabia perfeitamente quando é que o anjo trocava o seu chapeuzinho de marinheiro pelo capacete e montava a moto com atrelado onde transportava, numa cesta, o tesouro de açúcar. Ele metia o pé na areia da praia e eu tornava-me tão rápido como uma falsa partida, disparava praia fora, saltando sobre bifas com pele de churrasco, desinteressado do topless estrangeiro, galopando para o chapéu-de-sol onde a minha mãe começava a fazer contas – “Para ti, para o teu irmão, para o teu primo, e compra mais duas para os filhos da São.”
Mãe, como é que podias atrasar dessa maneira adulta e preocupada toda a urgência que eu tinha no corpo? Claro que me davas as moedas – lenta na execução, mas davas – e já tinha um atraso para os outros miúdos em corrida. Mas eu era rápido como o metabolismo de um hamster. Lá ia, miúdo bala, no encalço do loirinho que tinha uma prancha de skimming e acesso às revistas pornográficas do pai; pela minha esquerda apresentava-se a ameaça de uma gazela algarvia ainda sem maminhas que um dia me chamou “lisboeta escarreta” durante um jogo de apanhada. Mesmo a meu lado, tentando ganhar posição, vinha o gordo que ia ao banho de T-shirt e que se limitou a ficar para trás, comendo a areia largada pela rapidez das minhas pernas.
Nem sempre chegava em primeiro. Por vezes, o anjo branco já tinha aberto a cesta, começando a distribuir os milagres.
Regressava ao chapéu-de-sol depois de entregar as moedas, caminhando como um cowboy depois de salvar mais uma cidade dos bandidos. Comia a primeira bola de Berlim antes de chegar ao chapéu-de-sol. Guardava a segunda para mais tarde, quando toda a praia celebrasse a minha glória de campeão de carreirinhas.
Sobre a hierarquia familiar das refeições
Não havia naquela casa de Verão regras austeras para o comportamento à mesa. Não se lambiam facas nem se arrotava, é verdade, mas havia quem comesse em tronco nu, quem pusesse música no rádio em cima do frigorífico, quem me ameaçasse com uma sequela do Alien: “Se engulires um caroço de cereja [degluti vários], cresce-te uma árvore na barriga.” Naquela casa não havia protocolos diplomáticos na hora do almoço. Mas ninguém se sentava à mesa antes que o meu avô chegasse.
Era fácil saber quando ele se aproximava – outra vez os meus super poderes. Da longa varanda do segundo andar – andei lá de patins – ou do terraço mais acima – andei lá num carrinho Fórmula 1 a pedais – podíamos vê-lo chegar, o boné na cabeça transpirada, os seus pés pesados e a barriga de melancia subindo as escadas de mármore, uma melodia que nos punha em sobressalto.
Mesmo sem super poderes, os adultos também podiam antecipar a chegada do meu avô. Onde quer que ele fosse, ia a assobiar: fados, marchas e mais fados. O seu assobio era motivo de plágio por parte dos canários, habitantes amarelos da gaiola que todas as noites a minha avó cobria com um pano como quem aconchega os netos na cama.
O meu avô, além de alto e grande e com mãos de Hulk, tinha o atributo de saber tudo sobre a qualidade da fruta. Ele apertava um melão, cheirava um pêssego, via uns morangos de esguelha e tinha uma sentença em poucos segundos. Nenhum vendedor de melão casca de carvalho ou nêsperas, à beira da estrada, conseguiu passar-lhe a perna.
Os miúdos comiam na varanda, numa mesa desmontável. Os grandes almoçavam na cozinha. Mas a circulação era livre entre as mesas. E havia sempre fruta. Mas não era fruta impingida, não nos sentíamos prisioneiros molestados como acontecia quando nos serviam fígado. Nós comíamos fruta com o (quase) entusiasmo de quem trinca o chocolate de um Perna de Pau.
O meu avô sabia que uma melancia de seis quilos – “A maior e melhor que lá havia” – tinha em nós o efeito de um um cão com duas cabeças. Queríamos a maior melancia, o pêssego que parecia uma toranja, as bananas que serviriam de sabre de Sandokan em duelos à mesa.
Mais que o número de circo da melancia gigante, o que se entranhou em nós foi a colher a entrar na meloa cortada ao meio – “Metade para ti, metade para o teu irmão” –, o sabor vermelho das cerejas, a frescura aquática da melancia, o queixo a pingar pêssego, os gomos das tangerinas fazendo a vez de barcos que naufragavam nas nossas bocas, a perfeição das talhadas de melão quando o meu avô pegava na faca e produzia cubos de felicidade tão fria que magoava os dentes.
Proust, espero que não me leves a mal estar aqui a falar dos poderes mágicos da comida sem ter lido um volume sequer da tua obra-mestra. Mas acabei de comer uma bola de Berlim numa tarde de primavera que me pareceu de verão. O resto do dia, passei-o a assobiar.
quinta-feira, 19 de maio de 2011
Palavra (En)cantada
Não percam este documentário e ficarão a perceber porque as letras namoram tão bem com as músicas no Brasil. Passa na RTP 2, no domingo, às 15h00.
sábado, 14 de maio de 2011
Relicário de um homem solteiro, crónica semanal no i
Retrato possível do cérebro do escritor enquanto (mais ou menos) jovem
Parece masturbação mas não é
Não estou aqui para enganar ninguém. Este texto tem o centro no meu umbigo, é sobre mim, fala da pessoa que aqui escreve. Será, como já se percebeu, redundante. Mas não saiam já da sala, ainda que isto possa parecer um teatro de vaidades estranhas. Fiquem mais um bocadinho e aproveitem a viagem no comboio fantasma do parque de diversões para freaks e desadaptados que, por vezes, pode ser o cérebro deste narrador que vos fala.
Talvez a origem desta crónica sirva para diminuir a gravidade do meu exibicionismo: quero escrever sobre o prazer orgásmico de uma ideia. Não se falará aqui de onanismo, mas do deleite do processo criativo de quem escreve. Imaginem-se a marcar um golo, a beijar a boca de alguém por quem estão apaixonados desde o jardim infantil, a ganhar um campeonato de tango, a saltar da prancha mais alta, a entrar na igreja em dia de casamento – basta de imagens estilizadas antes que isto se torne num anúncio televisivo de cerveja. O que quero dizer é isto: dá um prazer do camandro agarrar uma ideia, ver como cresce em poucos minutos ou ao longo de semanas, e depois a explosão, a chave para a última porta fechada, o tal momento Eureka, um shot de qualquer coisa que podia ser bourbon e cocaína e intravenoso de cacau. É tão bom. Ilumina o dia, torna-me mais simpático, mais como gostaria de ser.
Uma história
Passei o dia com senhas na mão, conferindo o número no papel (A124) e no quadro electrónico (A198) – em repartições, nos correios, na Loja do Cidadão, no talho do supermercado. Foi um desses dias de papéis fotocopiados, assinaturas e salas de espera. Não havia nada activo no território criativo da minha cabeça. Eu era o robot programado para desempenhar as mais aborrecidas tarefas no mundo da realidade. No final do dia, chegado a casa, abri as janelas para forçar a chegada do Verão. Não fazia calor mas a luz suavizava os telhados na outra colina, uma palmeira ao longe pareceu-me mais tropical que um coqueiro de catálogo turístico.
Sentei-me ao computador e descobri que o meu pai se estreara no Facebook e queria ser meu amigo. Não quis sequer reflectir sobre a estranheza de imaginar o meu pai a clicar em Likes, a comentar vídeos, a mandar-me despejar o lixo com um post no meu mural. Mas assim que vi um álbum que dizia “Tropa” e outro “Amigos”, com fotografias a preto e branco, escancarou-se em meu redor a armadura de robot dos recados, e acenderam-se todos os pirilampos que habitam o caótico mundo da imaginação intra-craniana.
Eu não via aquelas fotos há anos. Rapazes mais novos que eu, uns putos charilas com cigarros de malandro, sentados em jipes, a fazer poses de galã de cinema. O meu pai num campo pelado com o resto da equipa da Torre muito antes da tropa. O Russo que tinha caparro de Conan o Bárbaro sem recurso a esteróides. Os jeans apertados, os polegares nos bolsos, as popas meladas e inspiradas nos actores que apareciam no ecrã gigante do cinema São José.
Eu já não estava nesta casa, não estava sequer nas histórias que o meu pai me contou e cujos protagonistas apareciam em fotografias digitalizadas e colocadas numa rede social. Desta vez foi rápido (mas intenso). De repente tinha a génese de uma história – uma crónica? Um conto? Um livro? Não me podia distrair, quando estas ideias aparecem como um espasmo, um ataque de coração, uma epifania, tenho de concentrar-me, andar de um lado para o outro, meter os pirilampos em combustão máxima.
E a história foi-se construindo, tomei notas e recorri a outro truque – como se fosse um treino específico para bolas paradas. Quando tenho uma ideia que me entusiasma muito, telefono a pessoas que têm paciência para me ouvir, e conto-lhes a história. O acto de contar a história – como se conta a um amigo algo que nos aconteceu no emprego – e o acto de verbalizar uma coisa abstracta que até então apenas existiu nas sinapses ou em pequenos apontamentos, permitem-me ganhar músculo, preencher lacunas, acrescentar pormenores. É como ir ao ginásio. E aos poucos, como se fosse possível acelerar o processo de crescimento, uma ideia recém-nascida já tem o buço de um adolescente.
Não interessa aqui contar qual a história que construi nesse dia. O que importa é o espanto que sinto sempre que isto acontece, como se pudesse repetir o assombro de uma criança quando anda de moto ou toca na língua de um cão ou pisa a areia da praia pela primeira vez. É sempre bom. É sempre empolgante.
Não posso ser mais exacto quanto ao aparecimento de uma ideia. Há coisas que nem eu percebo. Mas posso dizer que, por vezes, só é preciso uma fotografia de um pai, uma frase graffitada na parede, uma mulher na esplanada, uma janela sobre a cidade para que, de repente, tudo aquilo que se acumulou nas traseiras do coração e da cabeça, se precipite para a sala de controlo da minha vida a fim de activar e telecomandar os pirilampos em chamas.
Como nossos pais
Quando sou arrebatado por uma ideia, depois de repeti-la ao telefone, de tirar notas, há um momento em que a história não aceita mais atenção ou trabalho. Tenho de voltar mais tarde. Por isso, decido celebrar. São coisas pequenas. Fumar um cigarro, sentar-me na praça a apreciar as pessoas, beber cerveja com amigos. Desta vez foi música. Quando falava ao telefone da tal história que aparecera enquanto via fotografias antigas, a minha interlocutora disse, já no final da conversa: “Somos como os nossos pais”, e as sinapses trouxeram de imediato a canção de Elis Regina: “Como nossos pais.” Esse seria o título da história. Desliguei o telefone e fiz algo que não fazia há muito tempo. Fechei as portadas do quarto, pus a música a tocar, deitei-me na cama, apaguei a luz e ouvi a música, uma e outra vez. Ouvi mesmo, com atenção a todas as palavras, ao baixo, à bateria espalhando-se no diafragma, ao poder da voz fumada e vivida e filha da mãe de Elis Regina.
Perdoem-me o exibicionismo. A minha motivação é, palavra de honra, cândida e infantil. Neste tempo de anúncios apocalípticos, em que nos sentimos contaminados pela mentira, pelo desperdício de oportunidades, pelo desgoverno das almas, eu só queria partilhar uma coisa pequena mas que me faz muito feliz. Talvez isso me sirva de atenuante.
terça-feira, 10 de maio de 2011
segunda-feira, 9 de maio de 2011
Relicário de um homem solteiro, crónica semanal no i
Mulheres sem nome em Nova Iorque
Jersey City
Tinha acabado de chegar, moreno como um mouro, a barba por fazer, escura e cerrada, e as torres tinham caído há três semanas. Estava a viver em Jersey City, a meia hora de Nova Iorque. Entre a minha casa e a estação de comboios, passava todos os dias pelo prédio onde viveram os terroristas do primeiro ataque ao World Trade Center, em 1993. Jersey City tinha lixo na rua, os corredores do supermercado guatemalteco pareciam os corredores do hotel do “Shining” em versão centro americana, e não havia nada para fazer a partir das oito da noite.
Sentia-me estrangeiro. Tinha sotaque, olhava para mapas e procurava o nome das ruas em placas, não percebia a necessidade das sanduíches que pareciam majestosas catedrais da abundância e dos ataques de coração. Não processava o nome de produtos como “I can’t belive it’s not butter”. Não gostava dos polícias nem dos soldados de metralhadora que protegiam o sul de Manhattan nem da mulher que vendia bilhetes de metro e que, sem conseguir perceber a minha pergunta, me tratou como se eu tivesse sarna. Ela era negra e apeteceu-me falar-lhe da luta pelos direitos civis. Eu tinha direito de estar ali. Mas não consegui eloquência nem coragem para sermões. Meti a cauda de imigrante entre as pernas e senti a estranheza de não fazer parte, de não pertencer.
Vivia no primeiro andar de uma casa de madeira. No piso térreo morava uma mulher alta, cabelo grisalho, magra, com uma sala cheia de caixas de cartão. Nunca entrei, mas por vezes falávamos na ombreira da porta. E um dia, ela, que era negra e crescera no sul dos Estados Unidos, contou-me como uma mulher branca lhe cuspiu na cara, castigando-a por ser uma criança negra que se sentara num banco exclusivo para brancos.
Não me lembro do nome da minha vizinha. Tenho pena. Por causa dela senti-me menos estrangeiro. O meu desconforto, nas primeiras semanas naquele país, era muito mais insegurança de menino que estigma xenófobo. Tinha de ganhar juízo, olhar para aquela mulher a quem tinham cuspido na cara, tirar-lhe o chapéu. Pouco tempo depois mudei-me, por fim, para Manhattan.
Sway with me
Tinham passado uns quantos meses e comecei a trabalhar num restaurante. Numa noite de segunda-feira, depois de acabar o turno, cansado, a cheirar a vapores da cozinha, pronto para adormecer no sofá enquanto via má televisão, saí para a rua e lá estava G. – um cliente do restaurante onde eu trabalhava, milionário excêntrico (se fosse pobre seria louco), que um dia me apanhou a ler um livro de Sade e reapareceu mais tarde com as fotografias e o menu do jantar, que tinha organizado em sua casa, em homenagem às obras do fornicador e filósofo francês. Eu estava na companhia de outro empregado de mesa, Frederico, um brasileiro de São Paulo, que cedeu ao encanto de G. quando este disse: “Venham comigo ao Sway, a segunda-feira é a melhor noite. Pago-vos uns copos”.
Sway: discoteca pequena com mesas cheias de pessoas que me pareceram bonitas – estava sóbrio, tinha critério. Sway: uma espécie de speak easy para gente com dinheiro que gosta de bas-fond – músicos, chefes de cozinha, senhores que usam gravata de dia e t-shirts esgaçadas de noite, mulheres que iniciam conversas, que pagam bebidas e que são entusiastas do sexo oral.
G. arranjou uma mesa e apresentou-nos ao grupo. Uma das miúdas, estrangeira como eu, ficou a meu lado e, segundos depois de nos apresentarmos com um aperto de mão, estávamos a beber shots. Eu estava indeciso – ir para casa descansar ou continuar? Precisava de tempo, de ver o que a minha cara me dizia no espelho. Informei-a: “I’m going to the little boys’ room”. Ela respondeu: “Do you want company?”
Nessa noite perdi uma luva, vi o rio Hudson num jardim num sétimo andar, acordei numa casa que não era a minha. Regressei ao meu micro apartamento de manhã, quando as pessoas iam para o emprego. O pequeno-almoço soube-me tão bem.
Stand clear of the closing doors please
Ela entrou na estação 86th Street e sentou-se à minha frente. Não havia muita gente na carruagem e ela não esperou, começando a falar como se nos conhecêssemos do liceu. Estava sem casa, tinha de ir buscar as suas coisas ao apartamento de um amigo, ia a uma festa vestida de cantora pop dos anos 80: “Madonna rules”, e apontou para o seu kit da noite – uns trapos estranhos e sujos, uma mistura de folhos com luvas sem dedos.
Ela era polaca e tinha sotaque como eu. Também me pareceu louca (se fosse rica era excêntrica). Depois pareceu-me apenas perdida, com as unhas sujas e o cabelo oleoso: “Tenho fome, não me podes ajudar com alguma coisa?” Saímos do metro para a superfície. Fomos a um restaurante de hamburguers e ela pediu um menu económico. Não falámos muito e despedimo-nos no passeio. Ela insinuou-se, chegou perto, depois sentiu vergonha quando a tratei como a familiar acabada de chegar à grande cidade. Ela percebeu que eu tinha pena. Foi-se embora zangada.
Voltei a vê-la uma semana mais tarde, na mesma estação. Passou por mim com a mesma roupa e a mesma mochila. Não me reconheceu. Nunca cheguei a perguntar-lhe como se chamava.
Expect the unexpected
Em Nova Iorque a pessoas cruzam-se, tocam-se, indagam quem são os outros habitantes da Babilónia. Falei com gente sem nome enquanto esperava na passadeira pelo sinal verde ou no conforto do café com leite e jornal de domingo nalgum coffee shop. Primeiro a cidade oprime, mostra que somos apenas mais um entre milhares e milhares – uma centopeia de ambições que todos os dias se agita, criando uma efervescência de ideias e negócios e grandiosas histórias de amor, de sucesso e de desgraça. Mas depois a cidade ensina-nos a ser mais disponíveis, a perceber a quantidade de histórias que acontecem a todo o momento, e andamos mais curiosos, queremos conhecer quem viaja a nosso lado no metro, saímos de casa a pensar que qualquer improvável coisa pode acontecer. Nova Iorque enlaça-nos pela garganta, obriga-nos a viver.
Cheguei a Jersey City a sentir-me estrangeiro e saí de Manhattan, anos mais tarde, seguro de que pertenceria para sempre àquela cidade. Nova Iorque é agora como uma mulher sem nome. Há anos que não a vejo, que não falo com ela. No entanto, sei que se nos sentássemos na mesma carruagem de metro, se nos cruzássemos nas escadas do prédio, se dormíssemos juntos na primeira noite, retomaríamos a conversa onde a deixámos, disponíveis para a vida, prontos a ser parte do enredo, prontos para tudo.
sexta-feira, 6 de maio de 2011
Feira do Livro
segunda-feira, 2 de maio de 2011
Relicário de um homem solteiro, crónica semanal no i
Dois contra dois com balizas pequenas
“O futebol é a recuperação semanal da infância”
Javier Marías
Há qualquer coisa que se desmancha quando percebemos que, caso se tivesse concretizado o sonho de sermos jogadores de futebol, estaríamos agora no final da carreira ou nos primeiros anos da reforma. Olhamos para os atletas em campo e, fossemos nós jogadores da nossa equipa favorita, estaríamos no banco, seríamos o decano do plantel que entra a cinco minutos do fim para ser aplaudido. Mesmo que joguemos com amigos em campos de relva sintética uma vez por semana, há qualquer coisa que se desvanece no ego futebolístico quando percebemos que a nossa carreira imaginária – com golos na final do Mundial e, pelo menos, uma Bota de Ouro – chegou ao fim.
Sabemos que jamais poderemos reviver as tardes no alcatrão da rua, com pedras ou mochilas a servir de balizas, bolas defeituosas que desapareciam no quintal de algum vizinho maldisposto, o corpo incansável durante tardes inteiras – mais uma finta, mais um sprint, mais um corte de carrinho e os joelhos raspados. Perdemos o fulgor dos jogos na praia, com os pés doridos e as pernas pesadas na areia molhada da maré baixa, quando um golo de calcanhar, num “muda aos três acaba aos seis”, fechava o encontro e autorizava os corpos cansados e quentes a esfaquear as ondas. Será difícil experimentar outra vez a vergonha de falhar um penalti, o desespero de pontapear lama nos pelados em manhãs de chuva ou a ansiedade no dia antes do jogo, a preocupação com o equipamento, as caneleiras e as meias e a camisola, o nosso número nas costas.
Não voltaremos ao recreio da manhã onde se jogava aos centros, ao torneio de futebol de salão onde estragámos um joelho, ao descontrolo dos gritos e da corrida sem destino certo quando se marcava um golo num clássico entre escolas rivais.
Mas temos outras coisas. Coisas que não se despegam de nós por mais anos que passem e os tornozelos não aguentem mais que três toques na bola e o coração entupido impeça que vejamos os jogos importantes do nosso clube. Sabem do que falo. Conversas com amigos sobre o penalti falhado do Veloso, o empenho canino de Jaime Magalhães, as fintas fotocópia do Paneira, o golo bala de Figo contra a Inglaterra no Euro 2000 – qualquer coisa que resgate da memória factos dispensáveis mas tão importantes. Não sabemos como armazenamos dados e pormenores de histórias que aconteceram há tanto tempo – Platini a beijar a bola antes do penalti em 86, Chalana a partir a loiça em 84, Zidane a mostrar o seu futebol matrix slow motion em 98.
Resgatamos, com os amigos, informações e recordações de jogos do Euro de 88 como quem troca cromos – aquele golo de Van Basten, sem ângulo, tão espantoso como um quadro de museu ou a estreia no território dos soutiens desapertados. Esta é a nossa forma de comunicarmos. O nosso passado em comum – como aquela noite de chuva torrencial em que andámos de moto e comemos numa pizzaria do Estoril e quase houve porrada entre amigos: Sporting 3 – Benfica 6.
Mas aquilo que temos é mais do que a compilação de factos e histórias, é um impulso que precisa de ser satisfeito. Por exemplo, se descemos a rua e reparamos num café onde passa futebol, olhamos para a televisão tentando encontrar o resultado no canto do ecrã. Gostamos de entrar num táxi a meio de um relato e ficar atentos enquanto não chegamos ao restaurante. E quando chegamos a casa, depois de um dia cruel trabalho, prontos para comer o que seja e aterrar onde seja, se por acaso percebemos que vão passar os resumos da Liga dos Campeões, perdemos o sono por, pelo menos, meia hora.
Talvez seja a pulsão de regressarmos ao tal lugar onde fomos felizes – a bola no pé direito, uma tabelinha, outra vez em mim, remate cruzado ao ângulo, a pulsação a galopar em todos os músculos. Esse lugar onde nada mais importava que a bola, sem contas para pagar, sem medo das feridas por fora e por dentro do corpo, e com a certeza que um dia jogaríamos na Luz, em Alvalade, na Antas, no Maracanã.
É um impulso ainda mais incontrolável se temos uma bola ao alcance do olhar. Se alguém na praia chuta uma bola para junto de nós, corremos para devolvê-la, pomos empenho no passe, regressamos felizes. Se os putos jogam na rua, desejamos que alguém com menos pontaria chute na nossa direcção. Pisamos o esférico com o pé e atiramos para o lado direito do guarda-redes de rua. Se os sobrinhos têm uma bola mínima, que faz trajectórias escanifobéticas, organizamos logo um concurso de penaltis – e não vamos à baliza.
Porque o tempo passa, porque temos outros interesses na vida, mas também por causa do lixo verbal e das manhas dos dirigentes, por causa da boçalidade animal das claques, alguns de nós fomos perdendo o interesse obsessivo pelo futebol. Mas esperamos ainda encontrar todas as semanas o assombro de uma finta, de um petardo de fora da área ou de uma defesa com a ponta dos dedos de um guarda-redes com lombares de gato.
Já chorámos depois de uma derrota da selecção, já perdemos a cabeça, a voz e a compostura, já fomos tão incendiários e idiotas como os presidentes dos clubes. Mas isso é apenas folclore. Aquilo que mais interessa está nalgum fim de tarde, quando o carro passava na rua e por fim podíamos regressar ao jogo e marcar o livre. Tínhamos a boca seca e uma ferida em chamas na coxa, ainda com marcas do asfalto. Havia suor nas patilhas, a nossa equipa jogava sem t-shirt, os ténis sobreaqueciam, e queríamos bater a bola por cima da barreira. Faltava pouco para que alguém nos viesse chamar para casa, a comida está na mesa, não te volto a avisar. Faltava pouco para ficar escuro e havia um livre para marcar.
Aquilo que mais interessa hoje, quando vemos Messi ou Ronaldo ou Xabi, é que eles sejam sempre essa tarde de futebol na rua quando batemos o livre e – estas coisas sabem-se – já estávamos de braço no ar quando a bola passou entre uma mochila do He-Man e o guarda-redes sem luvas. Depois disso, não precisávamos de mais nada para saber que íamos ser felizes na final do campeonato do mundo.
sábado, 30 de abril de 2011
Feira do Livro
"Fado, samba e beijos com língua", já está nas livrarias e eu estarei na Feira do Livro de Lisboa nestes dias:
Sábado, dia 30 de Abril, às 16h30
Sábado, dia 7 de Maio, às 18h00
Domingo, dia 8 de Maio, às 18h00
E aqui fica mais uma crónica de fim-de-semana: Kátia & Wanderlei, um casamento real, no jornal i.
terça-feira, 26 de abril de 2011
segunda-feira, 25 de abril de 2011
Fado, samba e beijos com língua
quinta-feira, 21 de abril de 2011
Relicário de um homem solteiro, crónica semanal no i
Três: a conta que deus fez
João
Ele acendia o cigarro mas nada. O ecrã continuava branco. Não havia outra maneira de dizê-lo: estava seco como a terra depois de uma queimada. Sentia-se tão falso como uma carteira dos chineses. Tudo o que pensava escrever naquele computador era apenas a derivação de algum filme antigo ou de um livro que já lera.
Comia hamburguers, fumava mais que a Petroquímica em hora de ponta, barbeava-se pouco. Não estava no melhor momento de forma. E havia contas para pagar.
O problema era a falta de um ordenado depois de anos e anos numa redacção de jornal, décimo terceiro mês, um sítio onde ir todos os dias. Agora, sem emprego, queria escrever umas memórias, um romance, a reportagem que daria um livro. Mas nada. Passara demasiado tempo a fazer a mesma coisa. Tinha menos de 40 anos e comportava-se como um velho despedido três anos antes da reforma.
Em algumas ocasiões, lúcido como um asceta vegetariano, disse ao espelho: “Deixa de te queixar.” Mas depois, em vez de escrever, punha-se a ver, pela enésima vez, “A Floresta Petrificada”, com Bogart a fazer de bandido.
Na mesa, ao lado do computador, acendeu-se a luz do telemóvel em modo de silêncio. Ele resistiu. Não foi ver.
João usava gabardines e até chapéus de detective. Acreditava na decência e na beleza do jornalismo. Era um romântico ultrapassado pela rapidez das notícias cuspidas a metro, não produzia tantos artigos como os estagiários, julgava que o apuro na prosa ainda servia para alguma coisa. Foi despedido e desde então nem cigarros o salvavam do aborrecimento. Passava os dias a ver filmes de gangsters, imaginando ser tão duro como James Cagney. Não era e nunca seria.
Abriu as janelas e havia um sopro de Agosto no início da noite. Ia escrever como Kerouac em speed. Ia escrever durante semanas. O telemóvel voltou a acender a luz. A primeira mensagem dizia: “Estou em casa com uma amiga a beber tequila.”
A segunda mensagem dizia: “Vem.”
Isabel
Não era a primeira vez que beijava uma mulher. Mia disse-lhe: “Outro”. Isabel beijou-a, provou o vapor da tequila, o seu polegar subiu pelas costelas, pousou no mamilo, fez peso. Mia disse: “Queria outro copo de tequila, mas isso também pode ser.”
Isabel foi buscar a garrafa. Não tirou os sapatos de salto – parecia que nunca os tirava. Todas as horas de voo, reuniões, noitadas a fechar projectos se podiam notar quando ficava bronzeada. Isabel sabia que aquelas rugas e manchas davam tesão a alguns homens mas afastavam outros. Com as mulheres era diferente.
Isabel cortou limão para a tequila. Mia investigava as lombadas dos livros. Disse: “Tanta poesia.”
Isabel tinha mais livros que muitos escritores – profissão que nunca tentara apesar dos diários acumulados desde a adolescência e da fome de histórias no papel. João, seu amante ocasional, sempre estranhou como Isabel não se punha a fazer aquilo que mais amava e, em vez disso, passava horas a analisar a viabilidade de empresas em escritórios alcatifados. A verdade é que João não sabia muito bem o que ela fazia. Interessava-se mais pelas suas pernas de sapatos de salto, pelo despojamento do seu corpo de mulher – não uma miúda, mas uma mulher com estrias, o peito um pouco descaído, uma mulher sem medo de ficar com a cama vazia no dia seguinte. João deixou de telefonar quando ela lhe perguntou, depois de uma sessão de cama sabotada pelo excesso de vinho: “Para quando esse livro?”
João respondeu: “E tu, quando é que te casas em tens um filho?”
Mia
Mia pegou num dos livros. Disse como se beijasse alguém na boca: “Música de Cama”. Disse como se estivesse no palco: “Título: Tri(n)o; autor: David Mourão Ferreira.” Disse como se tirasse a roupa: “As vossas quatro mãos/ As minhas duas/ Ó bando de seis aves no lençol.”
Fizeram um brinde, Mia tapou a boca com os dedos quando o álcool passou a fronteira da garganta. Tinha os olhos húmidos, as pernas bambas, o cabelo na cara. Perguntou: “Já fizeste um trio?”
Mia era filha de pais americanos mas nascera na Mouraria. Cresceu a brincar no Martim Moniz e passava férias na liberdade arborizada da Califórnia. Os pais eram meio hippies meio libertários e incentivaram-na a cantar fado. Mia tornou-se na fadista mais alegre da história. Era uma daquelas pessoas de bem com a vida, uma “loved child”, sem traumas ou melancolias. Mas cantava o “Fado do Ciúme” e parecia que algum homem tinha, de facto, saído de casa para as coxas da amante sem dizer se regressava. Mia cantava numa tasca e senhores de bigode punham-se a limpar os olhos com um lenço de pano. Mia dava uma volta de diva desgraçada no “Fado Português” e logo alguém gritava: “Ah boca linda”.
A boca de Mia: cheia de lábios e língua e tequila e paixão de fadista. Ela tinha um t-shirt que dizia: “Experimentalista”.
Isabel ouviu a campainha. Mia continuava a beijá-la, não queria parar. Isabel disse: “É ele.”
Três pares de asas nos lençóis
João caminhou nu pela cozinha. Todas as janelas estavam abertas e, ainda assim, os corpos naquela casa tinham a pele coberta por uma película agridoce de suor. Abriu a torneira e meteu a boca no jacto de água. Lavou a cara, viu um maço de cigarros na mesa mas distraiu-se com os gritos marítimos das gaivotas sobrevoando Lisboa. Uma vez na vida não ia ser um lugar-comum. Uma vez na vida não ia acender um cigarro para estilizar a cena. Sentou-se no parapeito. O sol começou a aparecer sobre a Graça, espalhando uma claridade meiga nas fachadas da Baixa. Era de manhã que esta cidade lhe parecia mais portuária, mais imprevista, cargas e descargas, floristas que chamam os fregueses, navios arrastando-se no Tejo para um lugar onde ele não estava.
João voltou a cobiçar os cigarros. No quarto, Mia e Isabel dormiam com as pernas entrelaçadas. Dormiam profundamente, saciadas e com a respiração de quem bebeu e fumou de mais, um fio de baba escorrendo dos lábios de Mia.
João procurou uma caneta e um papel. Queria tirar notas. Talvez aquela noite fosse o começo de alguma coisa extraordinária. Talvez fosse a estreia de uma relação com três pessoas, uma outra promessa de felicidade, um triângulo perfeito com filhos e casa de férias, a harmonia de uma santíssima trindade. Talvez aquela fosse a história que ele sempre procurou viver e escrever.
Enfrentou o espelho da casa de banho: “Deixa de te queixar. Dá graças pelo que tens.”
Depois voltou para a janela e anunciou a Lisboa, sem uma peça de roupa no corpo, a primeira frase da sua obra-prima.
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