Depois de três anos adormecido, este blog volta para, sempre com uma semana de atraso, publicar as minhas crónicas - Postais dos trópicos - no Diário de Notícias.
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Para já ficam aqui as crónicas publicadas até agora.
Suzane: a herdeira loira e sagaz, de boca
carnuda e cintura estreita. Daniel: o rapaz mediano da Classe C paulistana, que
desistira de tirar Direito por causa do aeromodelismo. Viviam cosidos pela boca
e pela ilharga. Faziam tudo juntos. As notas de Suzane descambaram. O casal
passava as tardes em motéis, amor maconheiro, room service, espelhos no teto. Suzane,
com 19 anos, pediu um apartamento ao pai para ir morar com Daniel. Manfred von Richthofen, que se opunha ao
namoro, disse que não. No Dia da Mãe, quando ela se recusou a almoçar com a
família e o insultou, Manfred estreou-se na tarefa paternal do bofetão. Nunca
tinha batido na filha.
Suzane
fugiu, mas voltou, sem o anel que Daniel lhe oferecera – ainda que fosse ela
que o sustentasse. Passaram ao namoro clandestino e montaram um plano. Recrutaram
o irmão de Daniel – Cristian, um truculento cheirador de cocaína, de torso tatuado
e passagens pela polícia. No dia 31 de outubro de 2002, os irmãos subiram ao
primeiro andar da mansão com luvas de látex – separadas por Suzane do
inventário da mãe, médica. Os pais dela dormiam. No piso de baixo, a filha disse
não ter ouvido as barras de ferro e os baques de traumatismo craniano, repetidos,
grossos, definitivos com um pizzicato de contrabaixo.
Paulino
Boto, polícia: “Ela perguntou como estavam os pais. Quando eu disse (mentindo) que
estavam bem, ela ficou espantada. ‘Como?’ É um crime de amadores.”
Antes de
tirar uma foto para Departamento de Homicídios, Suzane penteou-se e perguntou a
Daniel: “Estou bonita?”
Elize foi enfermeira antes de ser prostituta.
Saiu do desterro de Copinzinho, no interior do Paraná, e mandou-se para a
metrópole babilónica dos 20 milhões de habitantes. São Paulo do anonimato, onde
a internet dispensa chulos e amplia o negócio.
Marcos
Kitano, casado, escolhido pelo avô para presidir o império alimentício Yoki, descobriu
Elize num site e pagou para ver – e tocar. Foram amantes durante três anos, até
que Marcos se separou da mulher e, logo de seguida, bancou um casamento para
300 convidados.
Elize descobriu
rapidamente o sentido do adágio “Nas costas dos outros vejo as minhas” – Marcos
era tão infiel com fora com a primeira mulher. Ela contratou um detetive. Disse
ao marido que ia visitar a mãe. Esperou a volta do correio em Copinzinho. Chegaram-lhe
as fotos. Marcos a entrar no Hotel Mercure para o fellatio da tarde. Marcos
manjando um steak Diana e bebendo Malbec com a amante no Alucci Alucci. Marcos voltando
ao hotel para a faena noturna.
Elize
regressou a São Paulo e dispensou a empregada. Marcos fez o último telefonema
da sua vida no dia 6 de Julho de 2012 – para o pai – antes de levar um tiro de um
revólver 38 na cabeça. Elize desmontou o corpo com uma faca de cozinha. A filha
dormia e ela esperou a chegada da babá para sair com três malas. As câmaras do
prédio também gravaram o regresso – sem bagagem. Na estrada, tinha sido parada
numa operação de rotina. Mas o polícia não mandara abrir a bagageira. Os destroços
do cadáver de Marcos apareceram nos arredores de São Paulo. Elize confessou o
crime – ciúmes, paixão, vingança.
Natália,
nome de guerra Lara, garota de programa e amante do falecido, tinha direito a
uma mesada de 9 mil euros e recebera um carro de 25 mil – igualzinho ao que
Marcos oferecera a Elize.
Sandra Ruiz Gomes chegou a Tremembé,
transferida de outro presídio, com 27 anos de pena e mais três meses por
agredir um guarda. Barra pesada, conhecida como Sandrão, raptara um adolescente,
com três homens, em 2003. O crime acabara com o pagamento do resgate – apenas
mil euros – e o refém Talison Castro, 14 anos, descartado com um tiro na
cabeça.Sandrão
veste-se como um homem, tem cabelo curto, disciplinado com gel, e apesar da
fama de quebra ossos veste um smoking e faz de mestre de cerimónias nos
desfiles de moda na prisão.
Este ano,
Sandrão, que vivia maritalmente com Elize Kitano na ala de casais de Tremembé, deixou-a
e passou seis meses na ala comum – essas são as regras da prisão –para poder voltar
a viver numa cela para casais com o seu novo amor: uma loira de lábios polposos
que já tinha sido a razão da rixa entre duas guardas, que a disputavam. Um
procurador foi até suspenso por tentar seduzi-la. Essa mulher, condenada a 39
anos, tornara-se religiosa na cadeia, mas deixou a ala das evangélicas e
abdicou do regime semiaberto para poder casar-se com Sandrão. Essa mulher é a
supervisora de Sandrão e de Elize na fábrica de roupa da prisão. Chama-se
Suzane von Richthofen e, quando tinha 18 anos, o pai depositou na Suíça, em seu
nome, sem ela saber – porque era dinheiro de corrupção e desvios – 30 milhões de euros.
No Brasil ser pobre é foda – não no sentido
positivo do termo (algo de bom, como “Aquele Zico era muito foda”), mas num
sentido fadista, de destino traçado na palma da mão, um estigma quase sempre
vitalício.
No Brasil,
pobre não tem direito a artigo nem plural. Só “pobre”. Um dia disseram-me: “Não
vou na praia, está cheia de pobre.” Pobre é desdentado. Mesmo o astro literário
Nelson Rodrigues – que vestia o mesmo casaco puído dias a fio e que tinha mil
trabalhos para pagar as contas – não conservava um dente na boca antes dos 40.
Mas os pobres – mesmo pobres – que não mudaram a dramaturgia do Brasil como
Rodrigues, sempre foram desdentados perpétuos sem esperanças de glória ou justiça,
párias cujo desmerecimento e a exclusão vão muito além da falta de dentes.
“Pereba,
você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar
pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma punheta”, diz uma
personagem em Feliz ano Novo, de Rubem Fonseca.
Pobre é
preto – mesmo quando é branco. Pobre vale menos. Às vezes vale nada. A
escritora americana Julia Michaels, com 30 anos de Brasil, escreveu que uma
mulher fofocava com as amigas sobre o namoro da sua empregada e, quando
perguntaram se a empregada era bonita, a patroa respondeu: “Para eles é”. Nós e eles. Quem manda e quem
obedece. Os privilegiados e os “fudidos”, como por vezes se escreve no Brasil,
uma vez que há aqueles que nem merecem a vogal certa.
Questionei
uma amiga sobre o motivo de alguns anúncios de TV terem o som bastante mais
alto do que os restantes. “Porque é anúncio para pobre”. Pobre viaja esmagado
em ônibus sem ar condicionado. Pobre morre porque o médico não apareceu no
hospital. Pobre não vale um tostão furado para a polícia. Pobre causa mais
repulsa que compaixão. Pobre diz, sobre o vereador, o prefeito, o pastor: “Ele
rouba, mas faz”, uma subversão a condescender porque, por norma, nunca ninguém
faz nada pelo pobre.
Os
norte-americanos têm nigger, kike, spick, chink, guinea, tudo epítetos raciais.
Em Espanha chamam sudacas aos sul-americanos (certo dia vi uma porrada no metro
de Madrid e alguém gritava “Soy argentino, no soy sudaca”). Já ouvi chamar “o
preto”, “o gordo”, “o cigano”, “o anão”, “o mongoloide”, mas nunca, como no
Brasil, ouvira “pobre” como uma designação tão depreciativa e amplamente usada
– um chega para lá social, a arrogância de quem se acha escolhido em oposição à
subserviência de quem, desde sempre, baixa a cabeça e se cala.
Caco
Antibes, personagem da sitcom brasileira Sai de Baixo, ficou famoso por ter
“horror a pobre” e pelos aforismos: “Pobre precisa entender que só passeia no
shopping de havaiana quem é rico.” Presumível caricatura de ficção, Caco
Antibes tem muitos sucedâneos na vida real.
Pobre
faz parte do imaginário do Brasil, como o boteco, o arroz com feijão ou
Carinhoso, de Pixinguinha. A designação “pobre”, para definir um grupo de
milhões – mesmo os que não são pobres –, diz muito sobre o teimoso legado da
escravidão e as conservadoras e pouco lubrificadas estruturas sociais neste
país.
O Brasil já
não é, de facto, desdentado. Antes pelo contrário, a democratização dos
aparelhos odontológicos faz com que hoje a maioria – até “pobre” – tenha a
brancura dental das estrelas de Hollywood. Há mais gente na universidade, menos
a passar fome, muitas famílias podem agora ter algum conforto, manter os filhos
na escola, aspirar a mais do que subsistir da mão para a boca.
Mas mesmo a
vida dos que deixaram de ser oficialmente pobres continua impedida pelo descaso
das autoridades e pela estrutura de castas. Horas de martírio para ir de casa
para o emprego, medíocre prestação do Estado na saúde e educação, corrupção,
favoritismo, discriminação, desamparo e muito pouca mobilidade social. Ser
pobre não é apenas uma designação do governo federal – aqueles com menos de 25
euros de rendimento mensal. É também uma sina e uma opressão.
Encontrei o
porteiro do meu prédio, que deveria estar de férias, a lavar um carro no parque
de estacionamento às sete da manhã. Perguntei-lhe o que fazia ali. “O coroa vai
viajar e pediu para eu lavar o carro dele.” O porteiro tinha vindo de propósito
de São Gonçalo (longe para burro), de madrugada, interrompendo as férias, para
obedecer ao pedido (à ordem) de um inquilino. Quando me indignei, ele não
pareceu especialmente vingado. “Faz parte”, disse-me – a ordem natural das
coisas como ele sempre as conheceu e que se perpetua ainda, apesar do aumento
dos rendimentos dos pobres.
Milhões podem
ter saído oficialmente da pobreza. Mas, no Brasil, que por vezes parece o país
dos coronéis, ser pobre ainda continua a ser foda – mesmo que se tenham os
dentes todos.
Desde
que, há mais de 500 anos, se escreveu pela primeira vez sobre as mulheres
brasileiras, a sua cotação tem andado em alta. As relíquias são amplamente celebradas
no imaginário global – as bundas do Posto 9, as mulatas do sambódromo, as
modelos da Victoria’s Secret com asas endiabradas e pernas de asfixia erótica.
Se Pero Vaz de Caminha se estreou no assunto elogiosamente, mas com alguma
reserva – “Também
andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não
pareciam mal” –, os anúncios da Reef, com bundas douradas e formidavelmente
redondas, bem como a poesia de Vinicius de Moraes, exprimiram plenamente, cada
um à sua maneira, o magnetismo da mulher brasileira.
Só que, no
Brasil de hoje, a beleza nada tem a ver com garotas de Ipanema ou sequer com a
imagem batida da mulher com pouco peito, bunda empinada e uma sexualidade incendiária.
Em primeiro lugar, porque não há um cânone da beleza brasileira. Se é verdade
que, nas revistas de moda, ainda se veem, exclusivamente, as mesmas modelos
galgazes e internacionais, que deslizam com lascívia e facilidade para dentro
de uns skinny jeans, também é verdade
que novos padrões se tornaram mais populares, contagiosos e duradouros do que o
“Ai seu eu te pego”, do Michel Teló.
Cresci a ouvir que as mulheres brasileiras
tinham pouco peito. Era uma verdade tão incontroversa como a genialidade supersónica
e os cojones de Ayrton Senna. Talvez
tenha sido assim um dia. No Brasil de hoje, que ultrapassou os Estados Unidos enquanto
país onde se fazem mais cirurgias estéticas, é normal oferecer uma operação
plástica às filhas adolescentes pelo aniversário. Rinoplastias estão entre as
mais escolhidas, tal como o aumento de peito. Há até um tamanho oficioso,
supostamente popularizado pelas atrizes da TV Globo: 250 ml para cada mama, o
que parece uma frugalidade se tivermos em conta os peitos propagandeados – e
disseminados com sucesso – por vedetas de reality shows, cantoras de funk e
mulheres fruta. Pouco importa a proporção ou a aparência ciborgue da caixa
toráxica: estão na moda as mamas com formato de balas de canhão de desenho
animado.
As mulheres fruta, exageradamente redondas,
ícones sexuais desejados e imitados, enchem literalmente as capas dos jornais
populares. Com bundas entre a melancia e a bola de pilates, estas mulheres têm
em fartura o que as bundas da Reef tinham em equilíbro, contenção e resistência
à força da gravidade.
A
“Playboy”, antes acostumada a cativar leitores com atrizes de telenovela, fez
uma produção na favela da Rocinha, com a estrela do funk Valesca Popozuda – 970
ml de silicone no peito e 1100 ml na bunda. Por causa do seu sucesso “Beijinho
no ombro”, Valesca já superou o estatuto tabloide de mulher fruta e entrou com
estrondo, coxas musculadas e stilettos,
na cultura popular.
Jenny
Barchfield, jornalista americana, definiu assim um novo estilo de beleza, muito
popular no Brasil, após ter conversado com um personal trainer em São Paulo: “(Ele) descreveu o seu ideal de beleza feminina e parecia o resultado da
experiência do doutor Frankenstein, aos 12 anos, equipado com um maçarico, uma
Barbie e um boneco G.I. Joe: ‘Feminina e elegante da cintura para cima, músculo
sólido das ancas para baixo’”.
Mulheres com pernas que parecem pénis musculados entraram no main stream. O consumo de esteroides
aumentou e, entre os inúmeros problemas de saúde causados pelas injeções, está
a hipertrofia do clitóris – o que se ganha em tamanho, no entanto, perde-se em
sensibilidade num genocídio de células nervosas.
O peito nem
sempre é pequeno, a bunda não necessariamente empinada, e o apetite sexual
perde agora para um reflexo musculado no espelho.
O doce
balanço
Uma das
coisas que mais aprecio no Brasil é a descontração e a aceitação do corpo, a
forma como negras imensas, em biquínis mini, caminham triunfantemente pelo areal
– mais confiantes do que estrelas pop apuradas por estilistas, dietistas e
maquilhadoras. O Brasil tem mulheres lindíssimas e de todos os géneros, mas
custa-me que muitas se mutilem na busca de um padrão homogéneo – as mesmas
coxas, o mesmo peito, as mesmas caras repuxadas e botoxadas, entre o travesti e
o lagarto. Será hoje a uniformização – e a masculinização – o que as
gorduchinhas eram para Botticelli e as heroinómanas para Calvin Klein?
Sem meninas
que vão e que vêm num doce balanço a caminho do mar, talvez as músicas, no
futuro, celebrem implantes de glúteos, imortalizem personal trainers e declarem amor eterno
– “enquanto duro” – aos clitóris
culturistas.
Galgávamos o asfalto com o habitual desvario
assassino dos ônibus cariocas quando percebi o fio de voz do homem de cabelos
brancos. Falava com a macieza dos patriarcas na poltrona da sala, perguntando à
cobradora sobre a possibilidade de baixar o ar-condicionado. Reconheci,
imediatamente, o tato e a mudez sem ossos das vogais portuguesas apesar de ter
ouvido “Estou resfriado” em vez de constipado – as sílabas dele ainda não
totalmente meladas por décadas de “você” e “gerúndios” e a triste, mas
inevitável, substituição de “gajo” por “cara”. Meti conversa. Ele mudou-se para
o meu lado.
“Tenho 85 anos, sou tripeiro e moro no Rio desde 1952. Os meus pais não
queriam que eu viesse, a minha mãe chorou muito. Vim pela aventura. Embarquei
num cargueiro – era um antigo navio de guerra italiano, o Génova. Demorámos 19 dias. Eu nunca tinha visto sequer uma foto do
Rio. Voltei a primeira vez ao Porto onze anos depois. Só a minha irmã estava
viva. O meu irmão morreu de tétano, tinha dez anos. Cortou os dedos da mão numa
máquina. Trabalhei para a mesma fábrica 40 anos, sempre fui vendedor, já era
vendedor na rua Sá da Bandeira, no Porto. Comprei o meu primeiro apartamento,
no Leblon, nesta rua onde estamos, 17 anos depois de ter chegado. O meu nome é
Francisco Silva Peralta.”
E há outro Francisco, o da feira da Gávea,
que me guarda melões do Algarve e que, apesar da bata azul e das socas, inclina
na cabeça um chapéu fedora que podia ser herança de Don Draper. Chegou ao Rio
em 1965 e só voltou a Lisboa em 1998. “Nasci em Trás-os-Montes, mas sou de
Campo de Ourique”, disse-me, uma manhã, o peito cheio e os galões de quem
parece estar ainda no Jardim da Parada antes de partir para uma ginjinha no
Rossio. E há o Luís, da farmácia, onze anos sem pisar em Figueiró dos Vinhos, e
que no outro dia me chamou para junto do balcão como se quisesse comprovar as
façanhas do pai. “Diga lá aqui ao meu colega se as estradas em Portugal não são
um espetáculo?”
Quando converso com estes homens, duas coisas
se repetem: nas palavras deles aflora mais forte, porque nunca desapareceu, o
sotaque do lugar de onde partiram. E eu pergunto sobre a chegada ao Brasil,
quantos anos estiveram sem ir a Portugal, como foi esse regresso. Imagino o
Génova aproximando-se do porto com um vagar de baleia transatlântica e Francisco Silva Peralta olhando o Rio pela primeira vez, o
pasmo dos dias iniciais, ensopado de humidade e clorofila (ficou em casa de um
amigo, tirou umas semanas para conhecer a cidade, arranjou emprego com um
português); tal como imagino o outro Francisco, de Campo de Ourique, a
regressar a Lisboa, em ano de Expo 98, no esplendor da década de ouro, depois
de ter largado o país quando Salazar nem sequer tinha caído da cadeira à espera
do calista Hilário.
Eça de Queirós cunhou a frase: “O brasileiro
é o português – dilatado”. Agostinho da Silva escreveu: “O brasileiro é o
português à solta.” Embora estas frases tenham servido de refrão ao tema de
abertura da vida de muitos portugueses no Rio de Janeiro, sinto que não
desvelam plenamente a experiência de viver cá. É que, por mais que eu hoje
saiba fintar as marés vivas no Posto 11, por mais tapioca com goiabada e Bloco
Me Beija que Sou Cineasta e shows de rock no Circo Voador e a bicicleta a rolar
na orla entre miúdas de skate e uma paisagem bom astral, a verdade é que, de
cada vez que falo com estes homens, e depois de alguns anos de Rio, parece-me
que a expansividade da estreia resulta quase sempre numa desejada volta ao
recato.
Talvez seja apenas um simples caso de
saudades – do que vivemos em Portugal e do que deixámos de viver por estar
aqui. Mas quando converso com estes portugueses da velha guarda, sinto o
consolo de um regresso, de um refúgio, e as palavras do nosso sotaque, por mais
desossadas e afónicas que pareçam aos nativos, ressoam em nós como os sinos
numa praça de casas caiadas onde, além dos gritos das gaivotas do Tejo, podemos
escutar as vozes dos pais, dos irmãos e dos amigos no fôlego das alfarrobeiras,
dizendo, com carinho, sem pressas, aquilo que nós já aprendemos: podes ir o
mais longe que puderes, é aqui que mais pertences.
O Brasil não é para principiantes
Antes da tomada pose de Dilma Rousseff, em
2011, muito se discutiu: chamar presidente ou presidenta à primeira mulher
eleita para o cargo no Brasil? Ficou presidenta. Uma legislatura depois, e com
duas mulheres como principais candidatas – além de Dilma, Marina Silva –, a
escolha de um “a” em vez de um “e”, ainda que simbólica, parece um detalhe
prosaico na grande fotografia do Brasil.
A morte recente
de duas mulheres em consequência de abortos clandestinos reavivou números
indesejáveis: um milhão de abortos e cerca de 150 mil mulheres que precisam de
assistência médica, como resultado dessas intervenções. Uma morte a cada dois
dias. Nenhuma das candidatas pretende mudar a lei – a interrupção só está
autorizada em caso de violação ou deficiência do feto. Sequer falaram
profundamente sobre o problema. E ambas poderão ser presidentas. Com “a”.
Para quem
vive no Brasil, não é estranho que a realidade mais inclemente seja tratada com
um assobio para o ar. No ano passado, 50 mil pessoas morreram assassinadas, 42
mil em acidentes de trânsito, e mais de 40 mil mulheres foram violadas. Não
deviam estes números ser uma sirene tocando incessantemente durante a campanha?
Não. Porque se é verdade que nas democracias de todo o mundo há uma crise de
representatividade e um fosso entre o discurso político e os problemas dos
cidadãos, esse fosso é colossal no Brasil – e a cara de pau dos políticos
também.
Marina Silva, evangélica, recuou no tema do
casamento gay quando o pastor evangélico Silas Malafaia ameaçou retirar-lhe o
apoio num post do Twitter. Os partidos evangélicos podem conseguir 18% dos
lugares do Congresso. Malafaia, conhecido pelas suas tiradas homofóbicas, estrela
dos televangelistas e entusiasta da teologia da prosperidade que promete
riqueza terrena, disse aos fiéis, num programa de TV: “Você
quer saber o valor do meu anel? Quatro mil dólares. Tá vendo o Mercedes e500,
blindado na Alemanha? Foi um parceiro meu que me deu de presente de aniversário”.
Durante os
protestos de 2013, quando o Brasil saiu à rua, Dilma Rousseff prometeu mudanças
no sistema político e eleitoral, medidas excecionais para combater a corrupção,
até um plebiscito para alterar a constituição. Um ano e três meses depois nada
aconteceu.
Tom Phillips, inglês, correspondente em
Xangai, participou num livro escrito por jornalistas estrangeiros, sobre o
Brasil, que organizei recentemente. No seu texto, conta que, quando saiu do
Rio, em 2010, só produzia artigos sobre as grandes mudanças e o otimismo do
país. No regresso, em 2014, visitou os lugares por onde andara nos seus dez
anos de Rio. Na favela da Coreia, com um amigo pastor, conheceu Denis, o rapaz
que cometera um crime no Complexo do Alemão e fora condenado pelos traficantes.
No texto, Tom sublinha o absurdo: Denis fora condenado por traficantes e salvo
por um evangélico. O Estado estava ausente em todo o processo.
Parte da
população está desamparada, nas mãos de traficantes, de milícias (máfias
policiais), de presidentes do Senado que viajam no avião oficial para ir de
Brasília a Recife fazer um implante de cabelo.
No Rio, os
dois principais candidatos a governador – Garotinho e Pezão – têm ou tiveram
problemas com a justiça. Traficantes e milícias controlam o voto das populações
que subjugam. Projeta-se um porto futurista no Centro, com arranha céus e
hotéis espelhados, mas despeja-se grande parte do esgoto da cidade na Baía de
Guanabara.
O
maior drama do Brasil não é ter problemas – tudo aqui é complexo, excessivo,
intenso –, mas que esses problemas continuem a ser desprezados, adiados e
maquilhados de uma forma descarada e impune, com Copas do Mundo, Jogos
Olímpicos e uma narrativa que parece extraída do livro “O Segredo”: pensa
positivo, que vai dar certo.
No final da
sua viagem de regresso ao Brasil, Tom concluiu – como muitos cariocas – que
pouco mudara desde 2010, que a insegurança se agravara novamente, e que a
propaganda oficial do sucesso, em tempos credível, parece hoje tão falsa como
uma mala Fendi comprada nos chineses.
Estas
eleições são, pelo menos para mim, uma evidência dolorosa: no eterno país do
futuro, o presente continua (ainda e sempre) espetacularmente ignorado.