O cemitério da Recoleta, em Buenos Aires –
com os seus jazigos megalómanos e suficiente estatuária para atafulhar um museu
–, é um legado da grandiosidade e da fortuna de outros tempos. Uma cidade dos
mortos, com as moradas egrégias de clãs que podiam protagonizar romances
históricos de vários tomos. O luxo do mármore italiano e a decadência das
cúpulas. Os monumentos aos heróis da nação e os vitrais despedaçados. E, para
quem visita, há ainda o bónus de um assombroso sentimento de viagem no tempo e
de pequenez existencial.
Mas o
presente impõe-se ao passado, mais atual do que nunca, e a cultura das
celebridades e da documentação constante da vida é expressa diligentemente
pelos turistas diante do mausoléu de Eva Perón. Agitados como se num concerto
de Madonna, engatilham telefones e tablets, e fotografam o jazigo, encostando o
próprio rosto a uma Evita de pedra, incrustada na parede.
O espectro
peronista e a sua herança nos últimos 70 anos da história da Argentina não
caberiam numa crónica. Mas, porque me faz espécie que se confunda um cemitério
com a Disneylândia ou um treino da seleção, e porque ainda acredito que viajar
serve mais para aprender do que para atualizar o Facebook a cada cinco minutos,
não pude deixar de sentir uma revolta com os mirones da selfie, bem como uma
solenidade estranha, mas desejável, ao pensar na proximidade do cadáver de Eva
Perón – a mesma que senti ao ver a mudança da guarda no túmulo do libertador
das Américas, José San Martín. Não tanto porque me tremam os joelhos diante de
celebridades – póstumas ou vivas –, mas porque aquele corpo embalsamado faz
parte da novelesca, e profundamente dolorosa, história da Argentina.
Evita
morreu em 1953, o seu corpo foi embalsamado por um mestre espanhol e guardado
no edifício da Confederación General de Trabajadores. Mas a ditadura –
poeticamente designada “Revolución Libertadora” (1955-58) –, que colocaria Juan
Perón no exílio, quis impedir o culto ao maior símbolo do peronismo – Evita – e
um grupo liderado por Carlos Moori Koening, chefe dos serviços de inteligência,
sequestrou o corpo numa carrinha de flores. Embora o presidente Aramburu
tivesse pedido um enterro cristão, o corpo foi guardado na casa de um amigo de
Moori Koening, o major Arandía. Certa noite, Arandía viu uma silhueta e julgou
ser um comando de peronistas em busca do cadáver. Descarregou a pistola,
matando a sua mulher grávida.
Moori
Koening tentou então levar Evita para casa. Não o deixaram. Segundo a filha: “O
meu pai queria trazê-la, mas a minha mãe ficou ciumenta.” Moori Koening manteve
Evita, enfiada numa caixa, no seu escritório, durante quase um ano, até que as
histórias de deboche com o cadáver começaram a circular e o general Aramburu
afastou Moori Koening e ordenou o “Operativo Translado”, que secretamente levou
Evita para um cemitério de Milão.
Durante
14 anos ninguém soube onde estava o cadáver, até que, em 1970, os Montoneros –
grupo radical peronista – sequestrou o ex-presidente Aramburu, obrigando-o a
confessar onde se encontrava Evita. Julgado sumariamente pelos captores, Aramburu
foi executado com três tiros.
O
governo argentino, sob pressão popular e dos Montoneros, entregou o corpo de
Evita ao marido, exilado em Espanha. Em 1973, Perón regressou à Argentina e
ganhou as eleições presidenciais, mas, ao fim de um ano, morreu de ataque
cardíaco e foi substituído pela terceira mulher, Isabel Perón. No ano seguinte,
os Montoneros voltaram a usar o general Aramburu para reclamar o corpo de
Evita. Roubaram o cadáver do ditador e só o devolveram quando Isabel Perón
trouxe Evita de volta a Buenos Aires, em 17 de novembro, dia do militante
peronista.
Em
1976, outra ditadura – responsável pelo desaparecimento de 30 mil pessoas e
cujos abusos incluem, entre muitos outros, raptos de crianças e assaltos à mão
armada – tomou conta da Argentina e os seus dignitários debateram longamente
sobre que destino dar a Evita. Ponderaram lançá-la de um avião para o mar, como
faziam com as suas vítimas, esventrando-lhes a barriga, ainda vivos, para que
fossem rápida e inapelavelmente para o fundo do oceano.
Quando
perguntaram a um assessor de Videla – ditador que, como tantos outros, tinha
cara e bigode de facínora – porque haviam deixado Evita no jazigo da Recoleta,
ele disse: “Talvez porque ela seja a única de quem sempre – mesmo depois de
morta – tivemos medo”.
Hoje,
Evita é estrela de musicais, presença estampada em “recuerdos” e figura de
espetáculos de tango. A sua cara aparece também nas notas de cem pesos – amplamente
falsificadas na Argentina.
Sem comentários:
Enviar um comentário