sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O cadáver de Evita

(Crónica de sábado passado, no Diário de Notícias. Para ler as crónicas no dia em que saem, é só assinar a versão digital - 9 euros ao mês.)





O cemitério da Recoleta, em Buenos Aires – com os seus jazigos megalómanos e suficiente estatuária para atafulhar um museu –, é um legado da grandiosidade e da fortuna de outros tempos. Uma cidade dos mortos, com as moradas egrégias de clãs que podiam protagonizar romances históricos de vários tomos. O luxo do mármore italiano e a decadência das cúpulas. Os monumentos aos heróis da nação e os vitrais despedaçados. E, para quem visita, há ainda o bónus de um assombroso sentimento de viagem no tempo e de pequenez existencial.
Mas o presente impõe-se ao passado, mais atual do que nunca, e a cultura das celebridades e da documentação constante da vida é expressa diligentemente pelos turistas diante do mausoléu de Eva Perón. Agitados como se num concerto de Madonna, engatilham telefones e tablets, e fotografam o jazigo, encostando o próprio rosto a uma Evita de pedra, incrustada na parede.
O espectro peronista e a sua herança nos últimos 70 anos da história da Argentina não caberiam numa crónica. Mas, porque me faz espécie que se confunda um cemitério com a Disneylândia ou um treino da seleção, e porque ainda acredito que viajar serve mais para aprender do que para atualizar o Facebook a cada cinco minutos, não pude deixar de sentir uma revolta com os mirones da selfie, bem como uma solenidade estranha, mas desejável, ao pensar na proximidade do cadáver de Eva Perón – a mesma que senti ao ver a mudança da guarda no túmulo do libertador das Américas, José San Martín. Não tanto porque me tremam os joelhos diante de celebridades – póstumas ou vivas –, mas porque aquele corpo embalsamado faz parte da novelesca, e profundamente dolorosa, história da Argentina.
                Evita morreu em 1953, o seu corpo foi embalsamado por um mestre espanhol e guardado no edifício da Confederación General de Trabajadores. Mas a ditadura – poeticamente designada “Revolución Libertadora” (1955-58) –, que colocaria Juan Perón no exílio, quis impedir o culto ao maior símbolo do peronismo – Evita – e um grupo liderado por Carlos Moori Koening, chefe dos serviços de inteligência, sequestrou o corpo numa carrinha de flores. Embora o presidente Aramburu tivesse pedido um enterro cristão, o corpo foi guardado na casa de um amigo de Moori Koening, o major Arandía. Certa noite, Arandía viu uma silhueta e julgou ser um comando de peronistas em busca do cadáver. Descarregou a pistola, matando a sua mulher grávida.
Moori Koening tentou então levar Evita para casa. Não o deixaram. Segundo a filha: “O meu pai queria trazê-la, mas a minha mãe ficou ciumenta.” Moori Koening manteve Evita, enfiada numa caixa, no seu escritório, durante quase um ano, até que as histórias de deboche com o cadáver começaram a circular e o general Aramburu afastou Moori Koening e ordenou o “Operativo Translado”, que secretamente levou Evita para um cemitério de Milão.
                Durante 14 anos ninguém soube onde estava o cadáver, até que, em 1970, os Montoneros – grupo radical peronista – sequestrou o ex-presidente Aramburu, obrigando-o a confessar onde se encontrava Evita. Julgado sumariamente pelos captores, Aramburu foi executado com três tiros.
                O governo argentino, sob pressão popular e dos Montoneros, entregou o corpo de Evita ao marido, exilado em Espanha. Em 1973, Perón regressou à Argentina e ganhou as eleições presidenciais, mas, ao fim de um ano, morreu de ataque cardíaco e foi substituído pela terceira mulher, Isabel Perón. No ano seguinte, os Montoneros voltaram a usar o general Aramburu para reclamar o corpo de Evita. Roubaram o cadáver do ditador e só o devolveram quando Isabel Perón trouxe Evita de volta a Buenos Aires, em 17 de novembro, dia do militante peronista.
                Em 1976, outra ditadura – responsável pelo desaparecimento de 30 mil pessoas e cujos abusos incluem, entre muitos outros, raptos de crianças e assaltos à mão armada – tomou conta da Argentina e os seus dignitários debateram longamente sobre que destino dar a Evita. Ponderaram lançá-la de um avião para o mar, como faziam com as suas vítimas, esventrando-lhes a barriga, ainda vivos, para que fossem rápida e inapelavelmente para o fundo do oceano.
Quando perguntaram a um assessor de Videla – ditador que, como tantos outros, tinha cara e bigode de facínora – porque haviam deixado Evita no jazigo da Recoleta, ele disse: “Talvez porque ela seja a única de quem sempre – mesmo depois de morta – tivemos medo”.
                Hoje, Evita é estrela de musicais, presença estampada em “recuerdos” e figura de espetáculos de tango. A sua cara aparece também nas notas de cem pesos – amplamente falsificadas na Argentina.


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