Retrato de
rapariga
Está sentada a meu lado, bonita, jovem, um piercing no nariz. Passam as estações de
metro e ela não tira os olhos do reflexo do seu rosto no telemóvel – não se
trata de um espelho, mas da câmara que serve para ensaiar a sua beleza. O
comboio lasca a escuridão das entranhas do Rio, e ela prossegue, agora fazendo
dezenas de selfies – beicinho e olhos
de eyeliner. No resto do vagão, mais
pessoas olham para os seus insetos eletrónicos, mantendo contacto com o mundo exterior,
teclando para prosseguirem sempre presentes, para existirem continuamente
diante de uma audiência que não veem.
Ninguém
quer estar sozinho, o cérebro liberto, um minuto de sossego. A promoção
permanente do eu tornou-se compulsiva. Tudo o que fazemos, pensamos ou
fotografamos é suscetível de nos engrandecer se ampliado no éter do ciberespaço
– uma patética ilusão de eternidade e de autoimportância. Esse egocentrismo e essa
alienação impedem, por exemplo, o entendimento do que deveria ser tão óbvio:
usar o telefone enquanto conduzimos implica o risco da própria morte ou de
matar alguém. No entanto, nem a possibilidade de morrermos impede a burrice de
teclar ao volante.
Lições de um
comediante ruivo
Louis C.K., humorista norte-americano, diz
que as suas filhas pequenas não têm telemóveis porque ele os considera tóxicos,
viciantes, sabotadores da empatia e das relações com os outros – quantas vezes o
nosso interlocutor olha para o aparelho e agita os dedos como pernas de
centopeia em vez de nos prestar atenção?
“Precisamos
da habilidade de estar sozinhos, apenas estar, sem fazer outra coisa ao mesmo
tempo. Foi isso que os telemóveis nos roubaram, porque agora queremos saber o
que se passa a todo o momento.” Numa entrevista, o comediante contou que sentiu-se
melancólico ao ouvir Bruce Springsteen na rádio do carro. Pensou pegar no
telefone, postar o que sentia, enviar uma mensagem, mas concluiu: “Não lhe
pegues, fica triste, deixa que a tristeza venha e te atropele como um camião.”
Parou o carro, chorou muito. “Há beleza e poesia na tristeza. Estava feliz por
me ter sentido triste. Depois do choro há uma felicidade, temos anticorpos para
a tristeza, é uma espécie de trip.”
Hoje,
impedimos a plenitude das emoções humanas porque mitigamos e filtramos tudo com
os telefones, os computadores, a incessante necessidade de uma conexão. “Nunca
nos sentimos completamente tristes ou felizes”, diz Louis C.K., “apenas contentes
com os produtos que temos”.
Os
escravizados
A velocidade da vida não está em sintonia com
a rapidez da internet. Não falo do quotidiano, também acelerado, mas do arco da
existência – a dor, a superação, a perda, as epifanias, a derrota, o
processamento de tudo aquilo que passa por nós e não pode ser medido em likes ou bytes. Talvez o ofício de escritor e editor me tenha ajudado a
entender a discrepância entre a velocidade fragmentada a que funcionam hoje os
nossos cérebros e o movimento de rotação da existência. Um livro, para ser
pensado, escrito e editado, precisa de tempo e paciência. O aceleramento do processo,
sem ponderação, trabalho e amadurecimento, deixa os livros aquém do que
poderiam ser. E é isso que julgo que acontece hoje com as nossas vidas –
ficamos aquém, nem completamente felizes, nem completamente tristes.
` Num
jantar de grupo há sempre o clube do iPhone. Tenho vários amigos que não se
sentam na retrete sem um tablet que
os distraia. Nos pontos de ônibus ou na fila do banco parece que já ninguém
consegue apenas esperar. Os momentos a sós são escassos – falta tempo para
interpretar, ponderar e sentir sem cuidados paliativos.
(Mais de
metade dos livros que leio são digitais. Oiço música no Spotify. Vejo TV na
internet. Sou assinante de e-papers e
tenho um smartphone – mas só ligo a
internet em caso de necessidade, o que é raro, e o aparelho fica muitas vezes
desaparecido sem que lhe preste atenção, porque não me apetece, nem sinto a
obrigação, de estar sempre disponível ou visível. Não estou a par dos temas do
dia no Facebook e nem por isso sinto que esteja em falta ou a perder algo
importante.)
Não sou tão
velho para renunciar a tecnologia nem tão controlador que tenha de decretar os
hábitos dos outros. Mas lamento o alheamento constante e a falta de concentração
por mais de dois minutos, a incapacidade do silêncio, do sossego, da divagação,
de não fazer nada, ou essa ideia de que a vida se desata com a facilidade com
que se atualiza o status na rede social. As benesses da tecnologia são uma
dádiva, mas estão aqui para nos servir e não para nos escravizar. É por isso
uma pena que os smartphones revelem
agora tantos stupid users.
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