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Sábado de manhã, bem cedo, corri com a minha
cadela, pelo calçadão, e depois tomei um sumo de tangerina. O sol da primavera
carioca atravessava tudo com um brilho cristalino. Era um dia bonito. Cheguei a
casa e abri a página online deste jornal, ficando a conhecer a detenção de José
Sócrates e iniciando de imediato, como a maioria dos portugueses (imagino), um
período intensivo de consumo de notícias sobre o caso. No entanto, porque vivo
a oito mil quilómetros de Portugal, a minha perceção do que se passa é
constrita pelo canudo da internet – jornais, telejornais, redes sociais etc. E,
desligada a conexão, regresso ao mundo que, de facto, me rodeia: o Rio de
Janeiro – seja na sua beleza praiana e solar ou nos seus problemas ancestrais e
endémicos, que fazem as chagas de Portugal parecer arranhões. Não é que a
detenção de um ex-primeiro-ministro do meu país não seja de primordial
importância, ainda mais se tivermos em conta a personalidade em questão e todo
o simbolismo do seu legado e da sua prisão, mas, com um oceano pelo meio, e
recebendo a informação através da internet, esta semana revelou-me, como já
acontecera antes, um país novelesco e cómico, passionalmente palavroso, em que
o ciclo de notícias de 24 horas parece desenrolar-se como um reality show.
2
Os diretos de TV a encher chouriços são
ingratos para os jornalistas. A voracidade da informação resulta em redundância
– repetem-se as mesmas coisas vezes infinitas – e desemboca numa obsessão com o
nada, como o repórter que insistia na palavra “movimentações” e, no meio de
tanta tautologia e gaguez, exultou de alívio ao ver um carro aproximando-se da
prisão onde, eventualmente, ficaria Sócrates – não ficou. Além da obsessão com
as “movimentações” de veículos, há também uma fome de detalhes gastronómicos –
as pausas para almoço dos advogados, o cozido à portuguesa com que o ex-primeiro
ministro se estreou na cadeia e o menu do restaurante onde almoçava em Paris.
Depois, claro, há os maluquinhos da celebridade instantânea, que se colam aos
repórteres, e sabotam o seu trabalho, para aparecer na TV. Se é para termos entretenimento
informativo non stop, então gostaria
que um desses jornalistas tivesse a iniciativa de pedir licença aos
telespectadores e, fazendo uma pausa, fosse espetar uma galheta de professor da
quarta classe antiga numa dessas figuras (estou sozinho nesta pulsão?).
3
No Portugal visto por um canudo, julgo
encontrar um país que quer mais justiça do que vingança (posso estar enganado),
ainda que, se alguma coisa se conhece dos homens, seja ingénuo fingir que uma
condenação não providenciaria o primário prazer do ajuste de contas – com
Sócrates e com todos os podres do regime nos últimos 40 anos. Outros
protagonistas da política poderiam certamente estar no lugar de Sócrates,
dificilmente outro representaria tão bem o papel do cordeiro de deus que,
sacrificado, tira o pecado do mundo. Pode ser lamentável, injusta, exagerada,
mas é uma pulsão de purga, previsivelmente humana e explicada por Clemenza a
Michael Corleone, em “O Padrinho”: “É provável que as outras famílias se
juntem, contra nós. Está tudo bem. Estas coisas têm que acontecer. É uma
maneira do nos livrarmos do mau sangue”.
4
Prefiro, sem hesitar, que um homem inocente
custe a seriedade e o prestígio da Justiça do que condenar quem não tem culpa
para salvar a cara do sistema. Respeito a presunção de inocência como respeito
a liberdade de expressão. Mário Soares, que lutou e se sacrificou para que
tivéssemos ambas, escolheu achar que Sócrates é alvo de uma “infâmia”, de um
esquema organizado por “malandros”, e, portanto, inocente. Também disse que
todo o processo era uma “bandalha”, exercendo o seu direito de liberdade de
expressão. É verdade que quem escreve nos jornais, como eu, deverá mostrar um
cuidado que não se tem com os amigos, falando sobre o tema, ao ritmo da
cerveja. Mas isso não implica que eu tenha de anular o meu pensamento dedutivo,
ainda que saiba que ele não substitui nem é mais válido do que o tão mencionado
“regular curso da justiça”.
5
Esta semana, usando o tal pensamento dedutivo
e um pouco de imaginação, pensei no escritor John Le Carré a ler os jornais e a
anotar os primeiros apontamentos para um romance: “Primeiro-ministro, estudante
de filosofia em Paris. Amigo de Hugo Chávez. Empresa construtora com negócios
na Venezuela (onde trabalha um amigo de infância do primeiro-ministro, com uma
conta de X milhões, na Suíça). Farmacêutica com negócios na América do Sul. Um
super juiz de cognome Herói dos Tabloides. Epígrafe do livro – frase do
protagonista: “A prepotência atraiçoa o prepotente”
Título provisório: Cicuta.
Título provisório: Cicuta.
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