segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Duendes de sunga, crónica publicada no Diário de Notícias



Da mesma forma que um brasileiro olhará para o Carnaval dos portugueses com a sensação de que há algo de errado num corso debaixo de chuva, no frio de fevereiro, em que mulatas importadas tiritam sambas enquanto escoltadas por Cabeçudos de Torres Vedras, também um português tem essa impressão de profundo deslocamento num Natal no Rio de Janeiro.
De certa maneira, Vincent Vega, em Pulp Fiction, tinha razão. “A lot of the same shit we got here they got there”, ou seja, também há uma árvore de Natal gigantesca, patrocinada por um banco, uma companhia de seguros ou outro colosso do género, que atrai multidões e entope ainda mais o trânsito caótico e agressivo; os shoppings estão cheios, é difícil apanhar um táxi, há infinitas festas de empresa, filas, multibancos sem dinheiro, um vomitar de anúncios de telemóveis e um frenesi de compras, reuniões familiares e excessos alcoólicos e gastronómicos. Até se come bacalhau, embora o animal fetiche para a consoada seja o chester – uma ave que eu desconhecia e cuja popularidade me intrigou desde o início, mais ainda porque a primeira noite de Natal que passei no Rio, desembarcado havia dias, foi na festa do “Arrasta o chester” – conceito de uma amiga, em que, depois de jantar com as famílias, os seus convidados levam os restos de comida e de bebida para sua casa e, livres dos contragimentos familiares, só desligam a música ao amanhecer.
O chester, vim a descobrir, é uma galinha gigante e desengonçada, resultado de doze anos de seleção artificial de uma empresa brasileira, que queria encontrar um concorrente para o peru de uma marca rival. Hoje, o chester (sobre o qual há um role longo de teorias da conspiração) parece ter ganho a guerra das aves no Brasil. 
E depois há a extravagância da neve artificial com 40 graus, as musiquinhas natalícias (aqui dize-se “natalinas”) tocadas em cavaquinho em estilo samba, dias de praia lotada e mendigos negros com gorros de Papai Noel, catando latas do chão para vender; anões vestidos de super-homem e de super-mulher (a sério) promovendo uma pet-shop com megafones – um desfilar de personagens e cenários que entretêm um português mais habituado ao torpor do Natal lusitano, com mantas nos joelhos, overdose de comida e o coro de Santo Amaro de Oeiras na TV.
Estar longe da família – e das conversas sobre natais antigos e o coelhinho que foi com o Pai Natal e o palhaço, no comboio, ao circo – intensifica a estranheza que, nesta época, aflige o emigrante, porque a saudade e a nostalgia não encaixam no fluxo festivo da cidade. É que não se trata apenas do Natal de família – a que estamos habituados. Por esta altura, começa o verão e as férias grandes das escolas e universidades, faz muito calor e os dias são longos, celebra-se a passagem de ano com dois milhões de pessoas na praia de Copacabana, dispara-se a toda a velocidade dionísica para o Carnaval apoteótico. Enquanto o emigrante fala no Skype com a família, perguntando se está muito frio em Portugal, enquanto o seu bacalhau no forno eleva a temperatura do pequeno apartamento a 50 graus, o carioca está a dar o tiro de partida para mais uma temporada estival de festa, sangue bom e bagunça erótica.
                O verão é sexy, não será preciso invocar estudos para perceber que, na quadra natalícia carioca, aumenta a rotação nos motéis e que, com menos roupa, mais álcool, festas e a impunidade das férias, rola sempre, por estes dias de celebração do nascimento do Menino, uma sacanagem extra. Já em Portugal: a consoada, avós e tios, stress festivo, sonolência, “Sozinho em Casa” na TV, um frio de rachar na viagem da casa de banho para a cama, enfim, vamos assumir que lascívia, libido e luxúria, não são as L words daestação.
                Há muitos anos sonhava escapar da obrigação e da repetição natalícia, fugindo para um país tropical. Concretizei o sonho, e talvez sejam resquícios do perene dilema de António Variações – só estou bem onde não estou – ou então a inevitável atração do eterno retorno, mas hoje, preparando-me para o quinto Natal consecutivo de “Arrasta o chester”, trocava, num abrir e fechar de olhos, os cinco minutos que demoro a chegar de casa à praia, pelas dez horas de voo até ao cheiro das lareiras, dos pinheiros e do frio numa rua antiga que me faz falta.
               


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