Nota: esta não é uma crónica sobre futebol ou clubes, que nada me interessam.
Pinto da Costa foi recebido por José Eduardo
dos Santos. Uns terão pensado em Lex Luthor e Darth Vader, outros viram o Papa
e o Grande Líder. Tanto o presidente do FC Porto como o chefe de Estado
angolano têm longos e controversos reinados e uma imagem que oscila entre o
salvador e o vilão. Julgo que todos os portugueses poderiam oferecer uma
opinião sobre Pinto da Costa – a sua imagem tem pontos comuns seja qual for o
lado da barricada: um homem de sucesso, que transformou um clube de bairro numa
marca mundial, que ganhou tudo, e capaz de declamar poemas com o fulgor
romântico do século XIX. Mas tem também a imagem de um homem cujos métodos
levantam suspeitas, que usou metáforas simplistas em escutas, alguém que
pratica uma retórica infantil, maniqueísta, incentivadora do ódio (os mouros)
com fervor propagandista e esperteza estratégica.
Interessa-me
o que essa imagem de Pinto da Costa representa (seja ela correspondente à
verdade ou não) no imaginário do país, mas também o que diz sobre nós, porque
demasiadas vezes ouvi adeptos de outros clubes dizerem que não se importavam de
ter um presidente que agisse fora da lei, prepotente, provinciano e bélico,
desde que ganhasse os títulos que o FC Porto conseguiu nos últimos 30 anos.
O futebol é
uma reserva onde são permitidos fanatismos, burrice e engano – desde que se
marque o penálti a favor da nossa equipa. Suspendem-se os princípios e
aceita-se que apoiemos algo desonesto com a desculpa que precisamos de paixões
e catarse. Tal como parece normal que a imprensa reproduza, com dramatismo e
entusiasmo, as baboseira dos dirigentes, sublinhando sempre, mas sempre, a
ironia quando se trata de Pinto da Costa. Talvez, em tempos. Hoje, essa ironia
tem as qualidades cómicas e a pertinência dos Malucos do Riso.
Num texto,
após a visita a Luanda, Pinto da Costa vitimizava-se, exultava as autoridades
africanas e, claro, ironizava: “Sonhei que (em Angola) a imprensa se referia
com grande respeito ao FC Porto (...), que altas individualidades se tinham ido
despedir da nossa comitiva (...) Mas (...) tudo era passado e aterrara num
Portugal democrático em que se detém um primeiro-ministro ao aterrar no seu
país.”
Chegado da
impoluta e livre Angola, Pinto da Costa deve ter sentido que as suas liberdades
ficavam brutamente limitadas ao passar a alfândega de um país onde sempre foi
vítima e jamais teve reconhecimento, impunidade ou vénias institucionais.
José Eduardo
dos Santos é presidente de Angola desde 1979. Chefes de Estado seus contemporâneos
que estão (ou estiveram) no poder durante décadas: Ali Khamenei, Irão; Robert
Mugabé, Zimbabwé; Teodoro Mbaso, Guiné Equatorial; Ali Saleh, Iémen.
O progresso
e a melhoria de vida de um povo não são apenas as gruas e os arranha-céus que
Pinto da Costa elogiou em Luanda, contrapondo a pasmaceira de Portugal, onde
não ele lamenta não ver gruas nenhumas. O país africano é gerido como uma
oligarquia cleptocrata, em que as oportunidades e a riqueza são distribuídas
entre militares, burocratas e a família do presidente. As histórias de
ostentação e esbanjamento multiplicam-se há anos. O presidente pode mostrar
estradas, pontes e prédios altos, mas 70% da população sobrevive com dois
dólares por dia e o país ocupa o 161º lugar (em
176) no índice de perceção de corrupção da Transparência Internacional.
Em
2010, entrevistei um angolano que, fugido de Angola, dizia ter sido ameaçado de
morte. Luís Araújo pertencia à SOS Habitat, que queria
impedir a destruição de milhares de casas de gente pobre para
se construírem condomínios de luxo. Dizia: “(A elite governamental) serve-se
bem da hierarquia e do culto do chefe para preservar o poder. E é com essa
gente que se quer construir uma democracia? Isso é querer que um jindungueiro
dê laranjas doces.”
Dias depois
de Pinto da Costa ter sido tratado em Luanda como acha que não o tratam em
Portugal, Laurinda Gouveia, que participava num protesto contra o governo
angolano, foi detida, agredida (com as mãos algemadas) e questionada: “Porquê
tanto ódio contra o presidente?”
Que não existe
liberdade de expressão em Angola não é novidade, mas, no último ano, dois ex
jornalistas do i disseram-me que, nesse diário, não se podiam escrever textos
que beliscassem os interesses angolanos. A ser verdade, e acredito que seja, é
grave. Não estou certo de que os capitães de Abril tivessem feito uma revolução
a pensar no futuro da liberdade de expressão em África, mas foi o golpe em
Lisboa que despoletou a independência de Angola e, esperava-se, a democracia
angolana. Não deixa de ser perversamente cómico que uma empresa de comunicação angolana,
proprietária do i, censure um jornal português e nos faça recuar 40 anos.
Consta que o
realizador John Ford, quando confrontado com algo inequivocamente errado, tinha
apenas um argumento, que lhe saía das entranhas: “Somethings are just wrong.” Foi nessa frase que pensei
diante da fotografia do presidente do FC Porto com Eduardo dos Santos e do
título: “Angolanos elogiam Pinto da Costa e dizem que é exemplo a seguir.”
Sem comentários:
Enviar um comentário