sexta-feira, 11 de dezembro de 2009
sábado, 5 de dezembro de 2009
O inconformismo como estilo de vida
Hoje estreia o documentário A Primeira Fronteira, na RTP2, às 20h55, sobre três portgueses lá fora, e do qual fui argumentista
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
I won't back down
Há qualquer coisa de Lone Ranger quando se escolhe ser romancista, qualquer coisa de Caine, o Kung Fu, qualquer coisa de Mad Max. É um ofício que exige solidão, isolamento, um ofício feito entre despojos, quase anacrónico, uma tentativa de organizar o caos, de combater o lixo do mundo e de salvar a beleza e a bondade dos humanos.
domingo, 29 de novembro de 2009
Século XXI
sábado, 28 de novembro de 2009
Sobre a lucidez
terça-feira, 24 de novembro de 2009
Projecto espacial português
Nas filas para os autocarros, no momento em que as portas do metro se abrem, nos automóveis com uma única pessoa lá dentro, na marcha pedestre e lenta no centro do passeio, no entupido lado esquerdo das escadas rolantes ou nos carros (des)arrumados a impedir o trânsito, os portugueses têm uma particular ocupação do espaço: primeiro eu, só eu, e os outros que se fodam.
Mudanças
Para que este blog não fique aqui a ganhar mofo enquanto me dedico a escrever um romance que me tem enfeitiçado - e terá por muito mais tempo -, decidi que o Carrinho de Choque passará a ser, provisoriamente, um conjunto de sugestões e frases curtas. Comecemos então com um artigo do Wall Street Journal sobre os hábitos e os problemas do ofício dos romancistas. Isso e um pouco de comédia.
sexta-feira, 6 de novembro de 2009
A gerência informa
Por motivos de escrita maior (espera-se), nos próximos três meses este blog estará tão intermitente como o sono do meu avô durante um filme - "Hã, então mas este não era mau?"; ou: "Já acabou?"; ou: "Devia ter ido para a cama".
Voltarei ocasionalmente, mas não prometo nada. Despeço-me com um conto antigo, de 2005, publicado numa antologia com ilustrações do pintor Pedro Zamith.
É sobretudo quando chove (ou faz calor) que mais me esqueço de ti
Entregaram-me, num envelope castanho, o dia em que o detective M. recebeu no seu escritório uma cliente pela terceira vez. Para ser mais correcto, recebi apenas uma hora e trinta minutos desse dia, em cassetes audio, com o som dos acontecimentos que resultariam na ressureição do detective M. – um ex-artista sem obras expostas, um combatente da ditadura cujo polegar direito fora arrancado pela Polícia Política, um adorador das tarefas domésticas como forma de diversão, e que mais tarde apelidou o dia gravado nas cassetes como “O meu renascimento”.
Confesso que esta não será a transcrição exacta do que ouvi nas fitas magnéticas, não sou jornalista nem fanático da verdade (sou escritor e já fui protagonista de cobranças difíceis). Neste meu relato aparecerão coisas que sabia antes da chegada das cassetes, e outras que pesquisei depois, e ainda outras que são apenas a manifestação das minhas características literárias. Sempre preferi construir os outros (ou destruí-los), escrevendo textos ou embatendo com tacos de madeira nos joelhos daqueles que não queriam pagar as contas. Esta é a minha versão dessa hora e meia numa cassete, quarenta e cinco minutos de cada lado, dois protagonistas naquela sala, e um terceiro, ausente, embora tenha sido o principal impulsionador do que ali se passou.
Lado A
O detective M. fumava muito mas lavava os dentes seis vezes por dia. E ela, que nunca fumou, pediu-lhe um cigarro. Nesse momento, porque se julgava a cometer uma transgressão, aquilo que parecia ser um fio cheio de penas roçou-lhe o interior do estômago, como nas descidas metálicas das montanhas-russas. Ela sentira o mesmo em outras ocasiões – na noite em que uma colega de liceu, que dormia em sua casa, lhe despiu o pijama e lhe provou a boca; ao entrar na casa de banho onde se estrearia a cheirar cocaína (nunca mais o fez); quando roubou uma garrafa de vinho num supermercado porque se esquecera da carteira e não queria aparecer num jantar de amigos sem um presente.
O detective M. levantou-se e acendeu-lhe o cigarro (o isqueiro era um artefacto dos tempos da resistência; ele sempre guardara objectos prosaicos como se administrasse monumentos nacionais). Quando passou por de trás da cliente para lhe mostrar as provas, apercebeu-se, mais uma vez, que esta era uma daquelas mulheres que depositam o próprio aroma (mistura de pele, perfume, produtos de beleza e maquilhagem) em tudo aquilo que tocam. Ele sabia que o cheiro dela ficaria ali, e que daria por si, sozinho no escritório, debruçado sobre uma cadeira, inalando a ausência de uma mulher.
Ela esticou as pernas para a frente, paralelas, juntas, como uma criança exibindo um truque que aprendeu na aula de ginástica, e nas canelas morenas, com o brilho do creme hidrantante, resplandeceu um gume de luz:
Porque não bebemos alguma coisa?
O detective não chegou a retirar da estante a pasta com as fotografias (Provas Número 1 a 14). Olhou para os dedos da mulher: verniz sem falhas, unhas de quem toma vitaminas. Reparou ainda na pele bronzeada, na tonificação dos músculos, no penteado de cabeleireiro. Não havia uma pista (olheiras, uma pausa demasiado longa entre duas frases por causa do cansaço) que indicasse que ela tinha filhos. Não trabalhava e passava muito tempo no sofá. Tinha-se casado imaginando férias com amigos, jantares de gala, quartos para as crianças, a sublimação de todas as revistas de moda, de decoração e das promessas do marido – esse lado redondo e cénico da vida familiar que nunca conseguira reproduzir.
Na carteira da mulher, semi-aberta, o detective podia ver o cartão do ginásio, os anti-depressivos, uma lamela de pílulas – “Talvez ainda mantenha relações sexuais com o marido”, pensou ele, triste, como se escrevesse um relatório com o qual não concordava. Mas o seu desagrado modificou-se ao perceber que o estojo de maquilhagem da mulher estava no topo de todos os outros objectos. Concluiu: “Maquilhou-se para mim antes de entrar no escritório”.
O detective viu então como ela rodou a cabeça para estudar a sala, como se fixou no sofá e, ainda em pé, passou a mão no tecido, avaliando a qualidade das almofadas – um gesto doméstico, de mulher, não de potencial amante. Sentou-se mas não desceu a saia para o joelhos, não se protegeu:
Dorme aqui?
Se tenho muito trabalho.
Quantas mulheres dormiram aqui?
O detective sabia que não tinha respostas originais, que nenhum dos objectos no escritório se assemelhava a uma relíquia. Ele fazia sopa todos os domingos e ia almoçar a casa nos dias de semana, descascava as maçãs com um canivete de bolso, não as mordia. Era o homem na mesa do lado, num restaurante, no qual não reparamos, mesmo que jante sozinho, cortando o bife em pequenas partes antes de mastigar, olhando as migalhas dentro do cesto de pão. Ele era o elemento da antiga resistência que apenas tinha como missão entregar mensagens (“És o mais normal”, diziam-lhe). Mas foi também o que mais suportou a tortura porque sempre acreditou na correcção dos seus actos, fazer bem aos outros, afastar-se daqueles que poluem o mundo, pessoas que magoam e cujas mãos deixam cicatrizes. Quando a mulher com quem se casara saiu de casa, ele deixou-a levar todos os electrodomésticos. E no dia em que percebeu que, se mostrasse as fotografias a um cliente, poderia causar um homicídio e obrigar duas crianças a crescer sem mãe (provável vítima de um crime passional), destruiu as provas – porque mesmo quando mentia, o detective M. queria apenas respeitar a bondade que sempre considerou necessária aos homens.
Ela apanhou o cabelo porque fazia calor. Levantou-se e disse:
Tenho sede, tem alguma coisa com álcool?
E pela primeira vez em muito tempo, olhando as alças do vestido da mulher, o detective percebeu que o seu sangue, as suas entranhas, a agitação das virilhas fariam dele um inevitável executor das acções incorrectas, um protagonista dos actos condenáveis segundo as regras dos homens bons.
Lado B
Não falarei dos sons da segunda parte da história, da possibilidade de terem utilizado o sofá ou a carpete, dos vestígios que o sexo deixa na roupa quando nos voltamos a vestir. Ela tinha estado ali duas vezes, apenas para se preparar, para descobrir alguma ternura nas coisas que ele utilizava todos os dias, para conseguir desejar um homem desconhecido que tinha contratado para provar a infidelidade do marido, o mesmo homem desconhecido que decidira usar para punir a traição conjugal. Ela era uma mulher que não acreditava na facilidade ou na satisfação do sexo com estranhos, por isso teve de conhecer o detective nesses encontros profissionais, perceber a arrumação alfabética dos livros, os retratos que ele desenhara há anos e que ninguém elogiara, a solidão de uma sandes embrulhada em papel de alumínio, numa gaveta semi-aberta, as canções antigas que ele ouvia na rádio, as mãos cuidadas embora pouco acostumadas a mulheres nuas. Naquele dia ela estava pronta para se despir diante de um estranho que começava a parecer-lhe familiar, e talvez por hábito (ou para tornar a punição mais elaborada) gemeu o nome do marido (o meu nome) e disse, no meio da acção das bocas:
Hoje cuidas de mim como nunca cuidaste.
Eu tinha traído a minha mulher algumas vezes e de forma ordinária, rápida, em móteis, no meu carro (com uma estudante universitária, com uma das monitoras do ginásio, com a minha dermatologista), e era demasiado vaidoso e masculino para pensar que ela poderia descobrir estes encontros ou que resolveria fazer o mesmo (com um detective que pintava o cabelo).
Quando recebi as cassetes ela não estava em casa. Enquanto as ouvia experimentei o descontrolo do corpo, perdi o sentido de orientação, caminhei pelo corredor, entrando nas diferentes divisões como se tivesse uma tarefa a cumprir mas não me lembrasse do que era.
Pensei qual teria sido o dia do encontro gravado nas cassetes. Talvez ela tivesse vindo para casa e dormido a sesta. Talvez eu me tenha sentado na cama, como fazia tantas vezes, admirando-a, assustado se por acaso o tempo entre a expiração e a inspiração se alongava. Em nenhuma outra ocasião, a não ser quando ela dormia, eu me sentia culpado por ter estado com outras mulheres.
Por mais que soubesse que ela perdoaria as minhas infidelidades, a minha biologia não me permitia fazer o mesmo. O meu corpo (óptima desculpa, o determinismo biológico) obrigava-me a querer partir objectos, a humilhá-la, a fazê-la sofrer quando percebesse que eu sairia de casa sem sequer a confrontar. Primeiro, agarrei em toda a sua roupa interior e nos lençóis da nossa cama e meti-os em alguidares, despejando-lhes em cima um garrafão de lixívia. Depois, fiz as malas e, quando desci as escadas, ela esperava-me no sofá, não com a sobranceria de quem ganhou uma luta, mas com pena, lamentando as nossas insuficiências, a nossa vulgaridade, a certeza de que éramos representantes das falhas mais convencionais e desinteressantes do seres humanos.
Eu olhei-a sem me mexer, quase sem respirar. Mas, embora quieto, era como se levantasse a mão para lhe bater e, abanando a cabeça, baixasse depois os dedos, desprezando a própria agressão. Entrei no carro (não me lembro de alguma vez ter feito essa viagem) e estacionei em frente do escritório do detective.
Ele prometeu-me que nunca mais se encontraria com a minha mulher (por integridade de carácter, não por medo), e tentou explicar-me que de todo aquele mal surgira o bem (“O meu renascimento”). Mas eu sabia que era pior pessoa que o detective M., que todo aquele mal me obrigava a espatifar-lhe a cara e a lançar para o chão todos os seus livros organizados por ordem alfabética, bem como (infantilmente) a urinar no sofá e na carpete do escritório.
Passaram-se, para mim, dez livros escritos, mais dois casamentos e quatro filhos (dois de cada mãe), mas por vezes, como neste dia em que choveu muito no final da tarde sem que o calor desaparecesse das ruas, ou quando a minha família passa fins-de-semana fora e os domingos me impedem de escrever, percebo que as minhas mãos têm agora menos mal, que não seguram sequer com força os braços dos meus filhos se por acaso começam uma luta no banco traseiro do carro; percebo que hoje, caso aparecesses, teria alguma coisa para te dizer, que não ficaria quieto na porta da sala, que talvez te confessasse que escrevi todos estes livros para que percebesses que fiz alguma coisa, ou para te mostrar aquilo que perdeste (que eu perdi, que eu perdi), ou para que ao menos me escrevesses uma carta com a tua morada no envelope. É por isso que me quero esquecer de ti, porque se aparecesses lá em baixo, na sala onde os meus filhos acabaram de entrar, chamando-me aos gritos, e onde minha mulher levanta o tabuleiro com restos de comida que deixei no chão, alguma coisa dentro de mim se desmoronaria, porque sou muito mais fraco do que aquilo que os meus livros, e os críticos, e os leitores e os meus filhos (“O pai bate em todos”) dizem de mim
Escuto os passos rápidos mas leves na madeira das escadas, a velocidade dos seus pequenos pulmões, um brinquedo chutado pelo chão. Os meus filhos (que acham que sou estranho porque não tenho chefe e saio pouco de casa) correm, saltam-me para o colo e agarram-me o pescoço. Esperam (é o nosso jogo) que eu lhes morda a barriga. O calor da noite humedeceu a pele das crianças, reforçou-lhes o doce cheiro da pele e molhou-lhes o cabelo nas patilhas e na franja. E é nestes momentos que eu mais tenho de me esquecer de ti, percebes?
sábado, 24 de outubro de 2009
Boys will be boys
Em tempo de pouca produção no blog - outras tarefas ocupam-me o tempo e chicoteiam a minha preguiça - deixo aqui um texto que escrevi para o jornal i, sobre o meu amigo João Tordo, publicado na edição de hoje.
segunda-feira, 19 de outubro de 2009
And ain't that mother fucking sweet.
Este senhor é tão amigo que, depois de me avisar da extraodinária notícia - receber o Prémio Saramago - me diz com delicadeza: "Desculpa estar a dizer-te isto quando estás a sentir-te mal", como se a felicidade pudesse acentuar as patologias dolorosas. Sabes que não, Tordo. Essa felicidade é muito melhor que os comprimidos e os chás que ando a meter no corpo.
Levantei-me de madrugada e lá estava eu, a viajar para Penafiel, a entrar no Museu, a aplaudir o João, um premiado tão humilde, ao lado de Saramago, como os bons da fita que salvam a aldeia e partem a meio da noite sem dizer para onde vão.
Regressei horas mais tarde, com a perna ainda nervosa do João a estremecer no banco de trás, o telefone a apitar mensagens, o seu cansaço cedendo devagar ao embalo da velocidade relatadora da rádio que contava a goleada do Benfica. E depois seguiu-se a orquestração copofónica da noite. E depois ele vai escrever cada vez melhor. E depois estou muito feliz.
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
Brief Enlighment
Thank you M. it's like you saved my life
Quando a saúde nos escapa como um carro na curva não sinalizada, quando a dor física nos faz acreditar na possibilidade de um deus, ainda que para alívio imediato, quando a agonia do corpo nos garante que jamais resistiríamos a uma sessão de tortura, quando uma mão na cabeça é a solução definitiva para o medo, só então desaparece o ultraje com coisas tão idiotas e pequenas como a histeria ronaldiana, o presidente da República ou as pessoas que não tomam duche de manhã. Tudo fica mais essencial, mais limpo, mais no osso. Só o amor subsiste. A dor é um estranho exercício de perspectiva. O problema é que rapidamente nos esquecemos, submergindo de novo na gordura dos dias. Ao menos, que as cicatrizes no avesso da carne patética - e as tuas mãos na minha cabeça - me sirvam de recordação.
quinta-feira, 8 de outubro de 2009
Sobre a parvoíce
Na Praça do Rossio, rapazes e raparigas gritavam ordens, amortalhados em capas negras, bêbedos de poder académico e ébrios de ginjinha – esta segunda condição não reprovo, até porque se me vestisse com um traje da tuna, julgasse que estar inscrito no terceiro ano de engenharia mecânica me conferia o título de veterano e ainda tivesse de passar por épocas de exames, então, também me enfrascaria a meio da tarde.
Os mocinhos e mocinhas de flanela preta berravam, “Tudo a encher”, para caloiros com cara de candidatos ao Ídolos, tão jovens ao ponto de ter borbulhas, tossir com o primeiro cigarro e aceitar que lhes ponham um penico na cabeça.
Foi então que, para agravar a parvoíce, passou um trintão de camisa desnecessariamente desabotoada e cabelo lambido. As suas palavras, embrulhadas num hálito de prato do dia, jarrinho de tinto e abuso verbal de menores, informaram o seu amigo do seguinte: “Vou ali apalpar umas universitárias.”
Olhei para os estudantes e pensei: “Se é para ser parvo ou menos que tenham uma licenciatura, sempre é uma ferramenta de trabalho, já dizia o meu paizinho”.
Chicotada psicológica
quarta-feira, 7 de outubro de 2009
Back to school
Workshop de Escrita de Romance: da primeira à última página
De que falamos quando falamos de “romance”? Será que o primeiro parágrafo tem assim tanta importância? A estas e a muitas outras questões relacionadas com a escrita de um romance vão responder Hugo Gonçalves e João Tordo neste workshop.
Hugo Gonçalves é o autor dos romances O Coração dos Homens (2006) e O Maior Espectáculo do Mundo (2004), tendo escrito e apresentado recentemente, na SIC Radical, uma série de nove documentários intitulada "Portugal Meu Amor". De João Tordo foram publicados, entre 2004 e 2008, os romances O Livro dos Homens Sem Luz, As Três Vidas e Hotel Memória. Tem, também, trabalhos desenvolvidos nas áreas da escrita de argumento, jornalismo e tradução.
Sessões às segundas e quartas, das 19h30 às 22h00. Candidaturas abertas a partir do dia 12 de Outubro. Mais informações através do e-mail formacao@producoesficticias.pt ou pelo número 213 864 554.
terça-feira, 6 de outubro de 2009
domingo, 4 de outubro de 2009
Semana de reflexão
Tinha programado um texto, logo no dia após as eleições, de forma a compilar os momentos mais cómicos e burlescos da noite eleitoral, mas também para organizar mentalmente o meu desagrado com a abstenção e com esse maravilhoso milagre que foi a vitória de todos os partidos.
Por um lado, por exemplo, achava infantil e ridículo ver os apoiantes, nas sedes de candidatura, iniciarem os gritos de campanha, como uma claque de futebol, assim que percebiam que estavam em directo – o fenómeno Emplastro não é exclusivo das pessoas que vão aos estádios de futebol. Basta ligar uma câmara em qualquer lado – numa sede partidária ou na praia Maria Luísa, onde morreram cinco pessoas numa derrocada – e os transeuntes tornam-se em amantes da objectiva, posam como estrelas, transformam-se em candidatos ao Ídolos.
Por outro lado, não reconhecia nos políticos uma postura séria e com tomates, mas sim demagógica e eleitoralista, fácil, de quem está mais preocupado com o que as pessoas pensam do que com aquilo que realmente está a acontecer em Portugal – lembro-me de Maria José Nogueira Pinto a dizer que o PSD não tinha perdido as eleições ou de Jaime Gama a fazer uma absurda comparação, explicando que, comparados com os resultados do partido vencedor na Alemanha, que também foi a votos nesse domingo, os resultados do PS eram muito bons – também podia ter dito que Portugal tem mais horas de sol que a Alemanha ou que, no ano 2000, lhes demos três a zero num jogo do Europeu.
Dois dias depois, falou o Presidente da República e o meu descontentamento passou para as 8 mil rotações. Temos cidadãos que se abstêm, políticos que se comportam como adolescentes à procura de aprovação e Presidentes da República tão desastrosos como um T-Rex numa salinha alcatifada com bibelôs. Nunca, como agora, o aforismo batido, “Temos os políticos que merecemos”, me pareceu replicar tão bem, com a precisão de um calquito, o que se passa em Portugal.
No dia seguinte, ao partilhar tudo isto com um amigo, ele sublinhou o meu “azedume” (sic), dizendo que eu dizia mal de tudo e que tinha de encontrar aquilo que está bem e valorizá-lo. Talvez o meu papel, em busca de algo melhor, seja apenas satirizar o que está mal, afinal, a sátira, a opinião, a desconstrução das coisas adquiridas podem ser excelentes exercícios de terapia para todos nós. Eu quero acreditar que todos os dias, em artigos, no blog, nos livros que escrevi, na forma como trato as pessoas em meu redor, no simples desenrolar das minhas actividades diárias, quero acreditar, dizia, que em tudo isso há um esforço para melhorar a condição humana – não fui ainda voluntário em África nem candidato ao parlamento europeu, mas talvez este seja o meu contributo: ajudar as velhinhas que não conseguem transportar os sacos do Pingo Doce, do Rossio para a Calçada de Santana, fazer metáforas online e entregar um boletim de voto em branco. A verdade é que se me pedissem para fazer um transplante de fígado ou descobrir a cura para o cancro eu não estaria à altura.
Mas, considerando o conselho do meu amigo, faço agora um esforço. Como posso eu ser mais positivo, menos exaltado com as insuficiências do meu país e das pessoas que o habitam, menos furioso com a (quase certa) eleição de Isaltino Morais? Foi então que, por acaso, descobri um historiador presidencial, norte-americano, chamado Richard Norton Smith.
Com Smith, fiquei a saber, por exemplo, que no parlamento inglês não se pode usar a palava “Mentira”, o que levou Winston Churchill a dizer ao seu opositor: “You are guilty of a terminal logical inexactitude.”
Curiosidades à parte, Smith diz que, há 40 anos, na política norte-americana, o público e os políticos definiam sucesso assim: criar boas leis, encontrar pontos em comum com os adversários, dialogar e tentar reduzir as diferenças em vez de explorá-las eleitoralmente.
Hoje, diz Smith, o clima político de Washington recompensa e define o sucesso exactamente pelas razões contrárias. O historiador explica ainda que Obama tem de recuperar a crença das pessoas na actividade política – danificada, ao logo dos anos, pelo assassinato de J.F.K, pelo caso Watergate, pelo caso Irangate e pelas duas administrações W. Bush.
Há 40 anos Portugal ainda era uma ditadura pacóvia, o que nos impede de ter grandes referências. Mas, com 35 anos de democracia, já deveríamos ter maturidade para definir o que é sucesso na política: prédios a pontapé ou educação que crie uma alargada massa crítica? Presidentes da câmara corruptos ou um eficiente e célere sistema de justiça?
A verdade é que seria difícil, tanto para os votantes como para os abstencionistas, pensar que a política poderá produzir algo de heróico ou de decisivo e fundamental para o avanço da condição civilizacional dos portugueses – talvez porque não reconhecemos em nós próprios essa capacidade.
Mais do que um possível herói, que um homem com espírito de missão e integridade, o político é visto com a mesma desconfiança com que olhamos para os trolhas que nos remodelam a cozinha (“Em menos de uma semana isto está pronto, chefe”); o político é visto com a mesma bonomia com que encaramos os comentadores desportivos e com a mesma complacência com que nos encontramos no espelho, todas as manhãs: se eu falho tantas vezes, ele também pode falhar, que se lixe – este raciocínio, juntamente com electrodomésticos e obra feita, permite que os Isaltinos e os Valentins continuem a ganhar eleições.
Por tudo isto, e tendo em conta a advertência do meu amigo (“larga o azedume”), quero acreditar que, se nós pusermos em prática, todos os dias, na nossa vida de cidadãos sem cargos políticos, os conselhos do senhor Smith – encontrar pontos em comum com os adversários, dialogar, tentar reduzir as diferenças em vez de explorá-las – e lhe juntarmos determinação, seriedade, brio e sentido de comunidade, talvez, daqui a alguns anos, nem que seja por vergonha, os políticos já não serão capazes de olhar para nós e apregoar disparates eleitoralistas; talvez seja vergonhoso para as suas carreiras que não consigam chegar a consensos que favoreçam o país mesmo que não garantam milhões de votos; talvez o serviço público, mesmo sem glória nas urnas, seja mais importante – e defina o que é sucesso – do que milhares de bandeiras em comícios e a presidência de um partido ou um cargo de director geral.
Se nós, os que não se candidatam a nada, conseguirmos, eles também conseguem, certo?
terça-feira, 29 de setembro de 2009
Lista de confusões cavaquianas
O presidente tinha dúvidas sobre a segurança da presidência mas só mandou verificar os sistemas hoje.
O presidente diz que tem sérias dúvidas sobre o que se escreveu nos jornais acerca do seu assessor, mas reagiu a elas, mandando investigar os sistemas de segurança e demitindo o assessor.
O presidente diz que a Presidência é um cargo unipessoal, mas assegura que os seus chefes de casa civil podem falar por ele.
O presidente, incólume e acima da política como gosta de aparecer aos portugueses, diz-se "forçado" (duas vezes sublinhadas com um tom de voz duro) a falar destas coisas, como se não fizesse política quando veta diplomas (com todo o direito) ou faz declarações sobre a governação (com todo o direito).
O que se segue? Um anúncio da PJ, na RTP2, a dizer: "Desapareceu, de seu domicílio, Aníbal Cavaco Silva. À data do seu desaparecimento, vestia pijama, pantufas do Mickey e apresentava sinais de desorientação".
Ingenuidade, confusão mental ou sonsice?
Isto não acaba aqui.
segunda-feira, 28 de setembro de 2009
Telecommunications Rage
sábado, 26 de setembro de 2009
Cold Turkey
Depois de tanta festa eleitoral, novelização da campanha e mexicanização da política, este dia de reflexão parece-me o fim das férias, a escova de dentes sem companhia na bancada da casa de banho, a ressaca da noite de coca. Ligo a televisão, abro os jornais e nada. Sinto-me sozinho e sem brinquedos.
sexta-feira, 25 de setembro de 2009
E o burro sou eu?
É verdade que o Gato Fedorento pôs os políticos a responder num registo menos formal - o que não quer dizer (mesmo) um registo menos programado - e que pôs os portugueses a consumir mais política televisiva - o que não quer dizer (mesmo) que estejam mais politizados ou se tornem cidadãos mais preocupados com o estado da Pólis. Mas é bem melhor que uma parede a mandar pessoas vestidas de supositório prateado para a piscina.
Como uma mãe engenhosa diante do filho sem apetite, o Gato Fedorento envolveu as nabiças do jantar(que são os nosso políticos)numa camada de caramelo.
Mas por ter usado e abusado do Gato Fedorento com promoções e entrevistas de bastidores nos noticiários durante todo o dia, com a constante menção nas análises dos comentadores da casa, com perguntas destas a Jerónimo de Sousa, "Estava nervoso por ser entrevistado pelo Gato?", a Sic não percebeu que era tão susceptível de gozo como os políticos. O Gato escolheu focar-se na acção dos políticos, mas a comunicação social, Sic incluída, é parte da paródia.
E quando usa, nas suas peças de telejornal, imagens editadas e transmitidas pelo Gato, nas quais se confronta aquilo que os políticos dizem agora com aquilo que disseram no passado - técnica apurada no Daily Show de Jon Stewart -, está a reconhecer que foram precisos comediantes para fazer o trabalho dos jornalistas.
O mais estranho é que a Sic o faz com uma certa alegria e orgulho, não percebendo que também é o bobo da corte, parecendo o marido corno que convida para jantar quem lhe pôs o par de chifres na testa.
Boys will be boys
quinta-feira, 24 de setembro de 2009
God complex ou Jesus tinha um trabalho fodido
E lá fui eu, atravessando o jardim com a gratidão de, ao princípio de uma tarde com calor, não estar num escritório entalado entre um menu sandes + bebida + salada de fruta e o brilho de um computador, feliz por estabelecer os meus horários, reparando nos alemães que preparam o Oktoberfest diante da sua embaixada, nos homens de cor de especiarias como jibóias cansadas com turbantes, nos ucranianos gordos, rodeados de patos e galos, no português que, para não manchar a roupa com riscos húmidos de relva, tinha posto um cartão por baixo do seu corpo deitado.
Lá fui eu pensando no que compraria para o almoço quando encontrei uma romena descalça, resplandecendo cansaço e a ferocidade do sol, prostrada no passeio, mesmo ao lado do Pingo Doce. Pensei perguntar-lhe se estava bem, mas segui caminho, desistindo da minha missão ocasional de justiceiro da cidade que discute com homens que mijam na rua e transeuntes que atiram papéis para o chão.
Mas entrei no supermercado e uma senhora velha estava encostada na parede, o seu bigode com esferas de suor, os olhos descaídos de basset hound, as mamas de matrona arfando por oxigénio. Por isso, tive mesmo de perguntar: “A senhora está bem?” E ela disse-me que não tinha tomado o comprimido para a tensão, que não aguentava o punho apertado do calor nas suas veias. Atravessei o supermercado, pedi um copo com água e açúcar na padaria, entreguei-o nas falanges que pareciam raízes de árvore da velha em aflição. Ela bebeu-o de uma só vez como se fosse um praticante do alcoolismo com a esperança de matar o delirium tremens matinal. E depois a surpresa, como se adivinhasse que eu tinha reparado na romena lá fora: “Que vergonha, já não basta a outra na rua. Sou cigana mas não sou da mesma raça, sou cigana mas o meu marido não é”, como se tentasse afastar o seu estado doente da condição mendiga da romena, como se temesse o meu juízo caucasiano. A verdade é que nem tinha percebido que a senhora velha era cigana – nenhuma roupa negra, nenhum lenço apertado entre o cabelo cinzento e o queixo, nem sequer um saco com roupas falsificadas ou qualquer outro lugar comum que definisse a sua tribo.
E enquanto metia fruta nos sacos pensei numa reportagem em que um transsexual no Irão – país com regime homófobo mas que patrocina operações de mudança de sexo – dizia que não gostava de homossexuais. Alguma coisa está mal encaixada no coração das pessoas quando, sendo diferentes da norma, não toleram a diferença dos outros.
Não consegui a mesma irritação diante da cigana em operação de auto-branqueamento racial que experimentei diante do transsexual persa. A cigana era demasiado real, a sua transpiração fria tornava as rugas mais vincadas, o seu pulso tremendo o copo de água estava ali, mesmo ali – o que terá passado por casar com um homem branco? Há quantos anos não fala com a família? Quantas bofetadas terá levado do pai de família ao anunciar a sua ousadia?
A senhora velha pôs-me a mão no ombro:
“O senhor é enfermeiro?”
“Não”.
“Mas preocupa-se com as pessoas.”
E as minhas cordas vocais ocas, um instrumento eléctrico sem amplificador, o meu pulso tremendo também, a urgência de ir entregar um copo de água gelada a uma romena descalça, que recebia o sol na cabeça como se fosse um telhado de zinco.
Mas ela já não estava lá.
sexta-feira, 18 de setembro de 2009
White Noise
Candidatos a deputados que são arguidos e que compram votos dentro do seu partido; pressões do governo a estações de televisão; alegadas escutas ao presidente da república, que, como sempre, se acha melhor que a política, um deus pairando acima dos fumos tóxicos dos partidos, e que por isso não comenta nada, não diz nada, não faz nada; um assessor do presidente (ex-director do Diário de Notícias) que terá dado pistas sobre o caso a um jornalista chegando a sugerir ângulos possíveis para a elaboração do artigo; repórteres que publicam emails de outros repórteres, emails esses que, segundo o director de um jornal, podem ter sido forjados e roubados pelos serviços secretos a pedido do governo.
O que é mentira? O que é verdade? O que é campanha eleitoral suja? O que é defeito de carácter? Mais que um país isto parece um romance do Grisham.
Nunca, como agora, o simbolismo do voto de cor branca fez tanto sentido para mim. Não é sequer um voto de protesto: é o duche de água a ferver depois da violação.
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
Jornalismo para vender aspiradores
Em tempos julgo ter escrito que a revista Sábado está para o jornalismo como o wrestling está para o desporto. Mas hoje, vendo a capa da newsmagazine que tem um fascínio pelas celebridades só comparável a uma adolescente americana, percebi que havia outra comparação possível - a Sábado está para o jornalismo como o Dan Brown está para a literatura.
Esta semana, a capa da revista anuncia: "O poder oculto da maçonaria é o novo livro de Dan Brown - os factos históricos que inspiraram o autor do Código da Vinci".
O melhor atributo de Dan Brown não é a qualidade literária mas a capacidade de usar truques para prender o leitor da mesma maneira que as batatas fritas de pacote têm aquele produto artificial (como se chama?) que nos faz querer mais e mais. Dan Brown pode não ser um excelente escritor, mas é um óptimo vendedor da banha da cobra.
Sempre me espantou que as pessoas acreditassem nas suas revelações históricas como descobertas irrefutáveis e determinantes - claro que Jesus andou a rebolar no feno com Maria Madalena e deixou prole que, ao longo dos séculos, acabou na Europa, no entanto, a ideia nem sequer é original, vários investigadores e escritores já tinham trabalhado nessa narrativa antes de Brown. O que me choca aqui não é a fornicação do filho de deus, mas a forma como tanto o autor, como muitos dos seus leitores, assume essa informação como factual, científica e decisiva para a humanidade, mais ou menos como dizer que Abraão viveu até aos 800 anos ou que Jonas esteve dentro da barriga de uma baleia durante dias ou que depois de rebentar com uma embaixada americana o terrorista receberá um autocarro de virgens no céu.
Num artigo de 2006 do El País, o jornal espanhol desancava o primeiro livro de Dan Brown, "Fortaleza Digital", não por causa da sua qualidade literária mas pelo medíocre trabalho de investigação e desprezo por coisas tão simples como datas. Não se pode querer fazer doutrina com a fornicação de Cristo e apelidar os romances de "históricos" se depois se escreve ficção científica. Dan Brown é a versão em livro daquele estranho produto norte-americano para barrar no pão "I can't believe it's not butter" - um sucedâneo da manteiga, que não é realmente manteiga, mas que diz ser melhor que a manteiga.
É claro que um autor que se tornou num fenómeno de vendas e de leitura na praia e no metro, merece cobertura jornalística quando lança o seu novo livro. Pode até merecer primeira página. Mas a Sábado usa exactamente a mesma estratégia de Brown para se vender e vangloriar. E, na capa, parece oferecer-nos o caminho secreto para o mundo obscuro da maçonaria, as revelações mais inesperadas, aquilo que você nunca soube mas que mudará o curso do universo. A Sábado é a mulher de barba no circo de rua medieval. A Sábado faz cockteasing - a little less conversation a little more action please.
Onde é que quero chegar? Aqui: é cómico que, numa semana de campanha eleitoral, a menos de duas semanas de eleições legislativas, a revista traga uma história sobre a compra de votos no PSD, que envolve dois candidatos a deputados, e escolha fazer capa com os segredos de Dan Brown.
Não é jornalismo, é venda de aspiradores, num ringue de wrestling, com a oferta de um pacote de I can't believe it's not butter.
quarta-feira, 16 de setembro de 2009
A menina do cabelo amarelo
Nesta memória, uma das primeiras que guardo, havia o calor das férias grandes e estava sentado na mesa dos adultos. Pus-me de pé, em cima da cadeira, pronto para anunciar uma descoberta que mudaria a minha vida. Baixei os calções de banho, apontei para a minha pilinha de pré-primária e anunciei à família o assombroso mecanismo mutante que era o meu corpo: “Está tão grande”.
Não me lembro de ser repreendido – é possível que alguém tenha dito “Veste-te e vai dormir a sesta" –, mas tenho quase a certeza que o meu alegre espanto diante de tamanha descoberta tirou o tapete debaixo dos pés da minha audiência. O meu avô, o único autorizado a inaugurar melões e melancias, como se fosse o xamã da tribo prestes a degolar o cabrito, deve ter mantido a lâmina em suspenso, afinal, eu tinha tirado a pila das cuecas, a meio de uma refeição, e anunciado com orgulho que ela tinha mudado de tamanho. E isso não cabe na cabeça regulamentada de um adulto.
Hoje, não sou praticante do exibicionismo genital durante as refeições, mas lamento já não ter a destreza de me estar a cagar para a lógica certinha das pessoas grandes. Pensei nisto quando vi a menina de cabelo amarelo, sentada na relva, a chamar um cão de “babau”, a apontar para ele e a olhar para a mãe como se dissesse “Acreditas nisto? Não é possível? É um cão. Um cão!”. Nesse momento, a menina de cabelo amarelo tinha feito uma descoberta mais importante que a internet, a penicilina ou o Macdrive.
A menina do cabelo amarelo abraçou o cão pelo pescoço e, assim que ele começou a lamber-lhe a cara e as orelhas, ela cedeu ao ataque de cócegas, dando gargalhadas, de boca aberta e cabeça tombada para trás – nenhum sentido de ridículo, nenhuma preocupação com o protocolo, apenas a resposta intuitiva ao prazer.
Logo de seguida, com a mesma indiferença ao código de conduta com que, há quase 30 anos, eu puxei o elástico dos calções até aos joelhos, a menina de cabelo amarelo começou a lamber o cão. O que fez todo o sentido – mesmo quando ela se virou para a mãe, mostrando a sua mini língua cor de rosa coberta de pêlos de labrador. Se um cão pode lamber uma pessoa porque não pode uma pessoa lamber um cão?
O especialista em criatividade Ken Robinson, conta que um professor perguntou a uma criança de quatro anos o que estava ela a desenhar. A menina respondeu que estava a fazer um retrato de deus. O adulto tentou cortar o barato infantil: “Mas ninguém sabe como é deus.” A menina pô-lo na ordem: “Já vais saber quando eu acabar o desenho”.
O comediante Jon Stewart explicou que o seu filho dança de alegria só porque reconhece alguma coisa na rua – sempre que vê um cão no passeio, tira a xuxa e aponta para o bicho dizendo: “dog”. Stewart também disse que aquilo que assusta os pais é já saber o final da história, ou seja, saber que a vida – que por vezes se parece com a esquina de um móvel pronta para o dedo mais pequeno do pé – acabará por retirar aos nossos filhos a felicidade de lamber um cão ou, tão só, de serem capazes de identificá-lo na rua – dog!
Os adultos sabem como a história acaba – primeiro passamos por essa fase transitória chamada adolescência, em que nos parecemos com moscas a embater contra o vidro até que alguém nos abre a janela e nos encontramos, por fim, na idade adulta. E é então que precisamos de comprimidos, álcool, carros, 300 canais de televisão, sexo com prostitutas, saltos de pára-quedas e filhos a fim de superar o aborrecimento da repetição, a fim de aliviar o peso das coisas que parecem cada vez mais difíceis de solucionar. Os adultos conhecem o final da história e, por isso, junto das crianças, costumam ser tão temerosos dessas esquinas destruidoras de pés, tão protectores, tão inibidores da criatividade – “Isso não é para brincar, não se diz assim, ninguém sabe como é deus.”
No passado domingo, a menina de cabelo amarelo queria ver os patos bebés num jardim de Lisboa, embora os animais estivessem por trás da cerca. Primeiro hesitei. Um adulto responsável respeita os avisos, não invade a propriedade. Mas os patinhos, disse ela, eram amarelos como o seu cabelo. E foi então que lhe peguei ao colo, saltei a cerca e a levei até junto da família de patos flutuantes.
No banco de jardim, um velho cuja boca, por falta de incisivos, teria servido para arrancar caricas, disse logo, apontando para os patos: “Esses já cá não estão amanhã, as gaivotas dão cabo deles”.
Ao contrário do velho, prefiro não me preocupar com o final da história. E é por isso que, desrespeitando todas as regras de bom gosto literário, e repetindo a ousadia do gesto de baixar os calções, me preparo para escrever algo que jamais imaginei escrever:
Xi coração.
Menina do cabelo amarelo, gosto muito quando me dás um xi coração.
terça-feira, 15 de setembro de 2009
O professor
O pequeno ditador teria gostado que este texto começasse com uma frase tão portuguesa como: "Faz-me espécie". E sim, faz-me espécie a deferência académica que alguns de nós ainda demonstram sempre que o mencionam - "O Professor Oliveira Salazar" - como se tivessem sido alunos dele ou admirassem a sua carreira académica em Coimbra. Talvez se possa dizer que um homem que chega a catedrático merece ser designado pelo seu título, especialmente se estivermos em 1926. O que me surpreende é como "professor" é usado para demonstrar respeito, exactamente da mesma maneira que muitos condescendem a ditadura com a habilidade de Salazar para ter as contas em dia, ouro nos cofres e um país fora da II Guerra Mundial - mais ou menos como o pai que arreia nos filhos de cinto mas até põe comida na mesa.
Salazar foi eleito há pouco tempo o maior português de sempre - título curioso para quem acreditava que a pobreza era honradez, para quem detestava elevadores, usou as mesmas botas durante anos e, apesar do império do Minho a Timor, só saiu de Portugal uma vez, para ir a Espanha. A sua grandeza estava na capacidade para fazer os outros pequenos, temerosos e conformados.
Hoje, ao passar por baixo de um viaduto da CRIL, fiquei feliz. Na parede de cimento, estava a prova de que a insolência dos suburbanos é melhor que a reverência ao pequeno ditador. Um qualquer graffiter com conhecimentos de História e queda para a poesia rimada, escreveu esta frase: "Santa Comba Dão é a terra do cabrão".
Reality Check
Para mis preciosos amigos Quique y el señor Ruso, luso-españoles que me han enseñado tanto sobre España y sobre la maravilla de la diversidad
O que é que os espanhóis pensam de nós? Não pensam.
Desde que Manuela Ferreira Leite afirmou que Portugal não é uma província de Espanha e acrescentou que o governo de Zapatero só tem interesse em que o TGV chegue a Lisboa por causa dos fundos da UE, tem-se repetido, uma e outra vez, “De Espanha nem bom vento...”, numa falta de originalidade que se compara com a previsível lista de lugares comuns usada por futebolistas em flash interviews.
Vivi três anos em Espanha, escrevi muito sobre o país e aquelas gentes, e posso dizer que eles não pensam nada de especial sobre nós. Não se trata de arrogância civilizacional. O complexo é nosso. Posso dizer que a desconfiança não é recíproca e que, neste caso, Portugal é como aquela miúda da turma que julga que toda a gente fala mal dela pelas costas.
No tempo que vivi em Espanha nunca me senti constrangido ou diminuído por ser estrangeiro. No entanto, posso dizer que alguns espanhóis que conheço, a viver em Lisboa, se queixaram dessa hostilidade mesquinha dos portugueses para com aqueles que chamamos, comicamente, de “nuestros hermanos” – uma desconfiança que herdámos com a mesma naturalidade com que uma criança aceita ser do Benfica porque o pai lhe disse que era assim.
Uma amiga espanhola, a trabalhar em Lisboa, mas com um carro de matrícula madrilena, - a mesma amiga que se espantou que um país tão endividado como o nosso tenha um parque automóvel topo de gama – ouviu várias vezes, no trânsito, “Vai prá tua terra”. Outra espanhola, recém chegada, perguntou-me porque razão as miúdas da festa onde estávamos, com cintura estreita, licenciatura no ISCEM e endereço em Cascais, não falavam com ela. Um amigo português, quando avisou na empresa lisboeta que se ia mudar para Madrid, recebeu o conselho de um colega: “Cuidado que os espanhóis são filhos da puta”.
Não estou a dizer que eles são menos xenófobos que nós, aliás, inventaram uma palavra para os imigrantes sul americanos - "sudaca" - quase tão ofensiva e humilhante como “nigger” no dicionário dos insultos norte americanos.
Há generalizações de ambos os lados da fronteira. Os nossos clichés dizem que eles são ruidosos e que vêem com as mãos. Os clichés deles dizem que nós vendemos toalhas baratas e que as nossas mulheres têm bigode. Contudo, para nossa sorte e azar dos sul americanos a viver em Espanha, nós até somos europeus e temos boas praias e os espanhóis elogiam o charme de Lisboa e acham-nos romanticamente nostálgicos – por algum motivo Pilar del Rio veio fazer um peça jornalística sobre a Lisboa de “O ano da morte de Ricardo Reis” e acabou casada com um dos nossos exemplares mais talentosos. Eles retribuíram com a Zara e com o Corte Inglés em território lusitano.
O que é que os espanhóis pensam de nós? O mesmo que nós pensamos dos eslovacos. Nada de especialmente profundo ou ofensivo. Em 2009, ver uma candidata a primeiro-ministro perder tempo de antena com medos históricos da era em que as pessoas morriam com uma constipação e os judeus eram assados no pelourinho parece-me tão pertinente como pensar que a masturbação resulta em cegueira e acne facial.
Ps - Ontem vi parte do debate em que falou o líder do extremista PNR. E, quando o ouvi falar dos imigrantes malvados, só me apetecia dizer-lhe que ele, um puro lusitano, tem um olho maior que o outro e que, em certas culturas primitivas, isso é tão ofensivo como ser preto, ou chinês ou ucraniano. É fodido uma pessoa ser julgada por alguma coisa que não depende de si, como a cor da pele, o local de nascimento ou o estrabismo, não é? O presidente do PNR não tem culpa do seu desequilíbrio facial, foi azar genético ter um olho no burro e outro no cigano, mas pensar como pensa, isso já é uma escolha da sua cabeça em delírio ariano
sábado, 12 de setembro de 2009
Os bichos
Depois de ver Paulo Portas e Francisco Louçã nos debates - e depois de saber que certamente terão mais votos que há quatro anos - tenho a certeza que são como tigres: engraçados e divertidos em pequeninos, mas suspeito que depois de crescerem, fariam com o país aquilo que o tigre siberiano fez com o pescoço de Roy, da dulpa de mágicos Siegfried & Roy.
O PCP é um dos dinossauros do filme Jurassic Park - nós sabemos que está extinto, embora o possamos ver no ecrã, uma e outra vez, em repetidas sequelas.
Por sua vez, PS e PSD parecem-me aqueles babuínos anciãos do Jardim Zoológico - aborrecidos de fazer a mesma coisa há tanto tempo, com o rabo coçado, mas que não abdicam de mandar no seu pequeno planeta dos macacos.
Os portugueses? Os portugueses estão entre as ovelhas e os koalas: fofinhos, simpáticos para quem os visita, mas claramente mais interessados nas folinhas da sua árvore do que no resto da floresta em chamas.
quinta-feira, 10 de setembro de 2009
What the fuck?
No dia do jogo da selecção nacional, na Hungria, o jornal 24 horas apresentava na primeira página uma fotografia do ex-seleccionador, Luiz Felipe Scolari, e anunciava que o brasileiro estaria a rezar a nossa senhora do Caravaggio durante a partida. No texto, que encontrei no site da versão do 24 Horas publicada nos Estados Unidos – peço desculpa mas não comprei o jornal em papel –, o jornalista dizia: “Não é só o povo português que está a rezar por uma presença na grande competição, e que não passa apenas por fé ou rezas (...) Luiz Felipe Scolari, treinador do Bunyodkor, também está a pedir pela Selecção Nacional.”
Embora o 24 Horas ache que as orações de um treinador são suscpetíveis de fazer a primeira página de um jornal, ao menos reconhece que não basta a oração para que uma equipa de futebol ganhe um jogo.
Uma primeira página deveria ser o orgulho dos jornalistas. Mas há quem diga, por exemplo, que o Expresso tem tanta credibilidade que pode estar dentro de um saco plástico, escondendo a primeira página. Muitos são aqueles que compram o Expresso, todos os sábados, sem olhar para o que está dentro de um saco patrocinado por um banco ou uma empresa de telecomunicações. Trata-se do conformismo consumista. O Expresso não é apenas um jornal, é um status quo tão válido na esplanada, durante o pequeno almoço com a família, como os óculos Wayfarer, o carro alemão estacionado no parque ou as férias na Turquia.
No entanto, um jornal não é um carro desportivo. Um jornal é um produto volátil, cuja qualidade e o que tem para oferecer variam todos os dias. O leitores do Expresso deveriam ficar orgulhosos de um jornal que faz valer a sua primeira página em vez de acreditarem que o alegado valor sólido do Expresso (que bom passear o saco pelo pontão do Estoril) permite que o jornal venha empacotado.
Muitos jornais, revistas e televisões usam agora armadilhas e estratégias enganosas para nos prenderem a atenção. Os noticiários agoniam os espectadores com tantas promoções durante o programa: “Não perca, na décima parte deste jornal conheça a desgraça de um agricultor transmontano e das suas abóboras gigantes.” Muitas vezes aquilo que vem na primeira página ou nas promoções dos noticiários nem sequer é bem aquilo que realmente têm para oferecer.
Os jornais e as revistas precisam de vender, claro que sim. Não acredito no modelo romântico do jornalista e da sua cruzada, o jornalista que passa fome e não aprecia a invenção do duche quente. Mas hoje, jornais e televisões comportam-se como empresas produtoras de iogurtes, esquecendo-se que têm uma responsabilidade social. Em muitas redacções não se pensa no que está a acontecer no país e de que forma se pode pegar na realidade e transmiti-la ao público. Pensa-se assim: “O que é que as pessoas gostam?” Está-se a fazer ficção em vez de jornalismo.
Como um director de produto de lacticínios, muitos editores e directores pensam em açucarar a realidade para os leitores com pepitas de chocolate, pedaços de morango, cereais estaladiços, ou seja, com celebridades, especulações e aquilo que Philip Roth descreveu assim: “The triumph of trivialization over tragedy, a global outbreak of sentimentality. From Sidney to Jerusalem to Times Square the recirculating of clichés occurs at super sonic speed. Watching this hyped up production of staged pandemonium I have a sense that the moneyed world is eagerly entering the prosperous dark ages.”
As redacções deveriam ser lugares criativos, de múltiplas opiniões e frequentados por gente inconformista e curiosa. Em vez disso, são muitas vezes linhas de montagem, nas quais os jornalistas, desmotivados e mal pagos, executam apenas as orientações dos directores e as estratégias comerciais impostas pelas administrações. Os jornalistas deveriam ser a primeira linha de massa crítica de um país, no entanto, têm muitas vezes contribuído para a estupidificação dos portugueses, para o encolher de ombros perante o atraso civilizacional e para a glorificação do rumor, da mediocridade e do populismo. Em vez de ser massa crítica são o espelho da preguiça mental do país: sejam as fotos das férias dos portugueses para encher o Jornal da Noite da Sic, sejam os esconderijos dos famosos na capa da Sábado.
O jornal 24 Horas, com Scolari e a santinha na primeira página, é o paroxismo dessa glorificação – embora não seja o único. Mistura a religião com o futebol e com uma celebridade porque acha que os portugueses gostam do bolo. É uma fórmula tão instantânea como o pudim em pó a fim de chegar ao coraçãozinho dos leitores. Uma farsa tão perfeita como a invenção dos alimentos light.
Mas será que o jornalista do 24 Horas acredita mesmo que Portugal estará a rezar à hora do jogo? Os portugueses são mais supersticiosos que religiosos – estão-se nas tintas para as regras do Senhor, não aparecem muito na missa, a menos que seja para casamentos e baptizados, gostam dos feriados religiosos, do folclore gastronómico, do bolo rei, do borrego na Páscoa e daquilo que a religião representa: o conforto de acreditar que há alguém que, no final, tem um plano para nós, o sentimento de pertença, a noção de ordem e disciplina, e esse medinho existencial que leva as pessoas a dizer “Pelo sim pelo não, mais vale acreditar em alguma coisa e fazer parte do rebanho”.
Usar a religião (superstição) dos portugueses e embrulhá-la com futebol para vender jornais é o mesmo que ter uma banquinha, no santuário de Fátima, para vender nossas senhoras em miniatura e camisolas falsificadas do Cristiano Ronaldo.
Mas mesmo que eu esteja errado e seja importante para os portugueses saber que Scolari vai rezar, peço ao 24 Horas que, pelo menos, não fabrique notícias (como se criasse gomas de goiaba para adicionar ao iogurte). É que apesar da fotografia na capa e do título revelador, o jornal nem sequer falou com Scolari.
Querem saber como o 24 Horas descobriu a sua notícia exclusiva? Telefonando para um padre brasileiro que é amigo do treinador. Conta o jornalista: “(...) Lá longe, nos confins do Uzbequistão, Luiz Felipe Scolari, treinador do Bunyodkor, também está a pedir pela Selecção Nacional. Quem o garante é o seu mentor espiritual, o padre Pedro Cunha, igualmente brasileiro, que trabalha na Igreja de Nossa Senhora das Graças, cidade de Passos, Minas Gerais. ‘Tenho a certeza de que Luiz Felipe Scolari está a rezar à Nossa Senhora do Caravaggio por Portugal e de que está a torcer pela vossa selecção’.”
Se o 24 Horas quiser mais notícias exclusivas, basta falar com o senhor do talho da minha rua, que tem a certeza que Sócrates é ladrão, que o Calado era gay, que os McCann mataram a filha e que a Manuela Moura Guedes é um andróide.
É que ao contrário do que diz a TVI – “Televisão feita por si” -, o jornalismo não pode ser apenas um espelho daquilo que os editores acham que os portugueses querem nem pode ser feito pelo senhor do talho. Isso é sacudir a água do capote, é esquivar-se a responsabilidades, é ser o tal sábio que se contenta com o espectáculo do mundo, mesmo que o espectáculo seja tão pobre.
quarta-feira, 9 de setembro de 2009
Man on fire
Podia estar aqui horas e, desesperadamente, começar com a frase feita: Hoje, não dá para mais que isto. Podia continuar com o processo de procrastinação das últimas semanas que, apesar de confortável, tem em mim resultados tristes: o que está a dar na televisão?, deixa cá espreitar o Facebook, mais um episódio de Mad Men, ainda não li o jornal.
Mas temos de começar por algum lado.
1
No fim da estação regressa o previsível desconforto de saber que alguma coisa tem de mudar. Na praia e nas tardes sem nada, há tempo para reflexões e promessas. Não é a primeira vez nem sequer a derradeira. Percebo agora que me custa levar as coisas até ao fim. Há umas semanas deram-me o aviso: “Não tens muito jogo de cintura quando és contrariado. Para ti, as contrariedades são ofensas”. E antes que isto se torne num consultório psquiátrico, eu assumo: “Tens razão”.
2
Vejo um político, presidente de câmara, num programa sobre futebol. O político foi meu professor de Princípios Gerais do Direito e tinha o hábito de ridiculizar os estudantes – fazia perguntas para a turma, incentivava a coragem de uma resposta e depois descontruia o aluno diante de uma audiência com medo, demasiado ingénua para se sentir enojada com a crueldade académica.
No programa sobre futebol, o político anuncia, com a superioridade de quem domina aquilo que nós nunca perceberíamos, que o mês de setembro é vital para o país – parece que, em poucas semanas, teremos duas eleições e momentos decisivos na temporada futebolística. O Porto joga com o Braga, depois com o Chelsea e logo a seguir com o Sporting. A selecção, com o apuramento para o mundial em risco, entra em campo dias antes das legislativas. Os próximos jogos do Benfica, diz o político, são o tira-teimas de Jorge Jesus.
Esta é a viscosa promiscuidade entre um desporto e a arte de melhorar as coisas. Esta é uma tremenda confusão que nos faz mal.
3
Em minha casa a música não era importante. Ouvia-se rádio no carro e, para que percebam o mau gosto, o primeiro episódio da minha adolescência amorosa tinha o acompanhamento musical dos Berlin – “Take my breath away”.
Os Beatles, por exemplo, nunca me entusiasmaram. Se no dia do juízo final a humanidade se dividisse entre os que escolheriam Elvis ou os Beatles, eu estaria na fila com a malta da brilhantina, dos comprimidos e das pernas I’m all shook up.
Mais recentemente, ouvi dois amigos e as suas repetidas conversas sobre os Beatles. Algumas vezes, fui eu quem incentivou o debate. Primeiro, porque aquilo me parecia cómico, depois porque queria saber mais sobre essa capacidade revolucionária de quatro suburbanos de Liverpool.
Comecei a ouvir Beatles, a ler coisas sobre a banda, a ver documentários como aquele que explica o processo criativo do álbum Sgt Pepper. Posso dizer que, intelectualmente, estou fascinado. E que, diante de deus no fim dos tempos, talvez mudasse agora para a outra fila.
Mas não é a primeira vez que processo uma coisa intelectualmente e só depois me atrevo a sentir. Não se trata de sobranceria. Trata-se de uma peça que falta. Não é um super poder. É uma insuficiência. Eu sou um atrasado emocional.
Mas os Beatles permitiram-me mais uma revelação – os Beatles e, claro está, esse exercício de estilo que tento que seja a minha vida.
Eu percebo os Beatles, ou seja, aos 33 anos, o meu cérebro treinado para fazer algumas coisas, consegue perceber os mecanismos do poder criativo dos Beatles; consegue perceber as suas intenções bem como aquilo que foi criado apenas porque sim, por fruto do acaso ou do subconsciente dos músicos, aquilo que apareceu sem intenções revolucionárias.
O mesmo se passa com filmes, livros e mesmo com as relações humanas. Eu percebo. Eu percebo muita coisa. Mas só recentemente me dei conta que o facto de perceber não significa que possa fazer igual – seja como pai de família, namorado ou guionista de um filme. Quando vejo “O Padrinho” ou um episódio de Six Feet Under ou leio o último romance de Junot Diaz, percebo o que eles estão a fazer e essa percepção leva-me a acreditar que, por compreender onde querem chegar, detenho a mesma capacidade de criação – e de trabalho. Hoje, posso assumir que há uma diferença entre ter a capacidade de perceber uma obra de arte e a capacidade de criar uma obra de arte.
4
“You’re an idiot but your mother dresses you fine. Now smile, douche,” in Californication.
5
Este verão, na praia, estive no topo de uma rocha de oito metros. No alto de outra rocha, estavam os pós adolescentes que me desafiaram a escalar a falésia (eles estavam na rocha mais alta, com dez metros). Fiquei parado alguns minutos. O desejo de alguma coisa diferente, a pulsão pelo risco, ainda permanecem alojados na minha imaturidade. Mas o medo físico serve de paizinho. Os miúdos saltaram. Com 20 anos são inquebráveis. Nada de mal lhes poderá acontecer. Os miúdos saltaram e eu ainda estava ali.
Depois saltei.
6
Chegas a minha casa quando as temperaturas aconselham actividades dentro de lugares com ar condicionado e a luz incendeia a praça, encadeando turistas sem óculos escuros, atacando os ombros das meninas que procuram a sombra e que correm para um almoço de sushi.
Ficas emoldurada na ombreira da porta: o vestido, a curva do pescoço, os óculos de aviador, a expectativa de saberes se, assim que a porta se fecha, almoçamos primeiro ou se de imediato estarás na cama, com as janelas abertas para a cidade e uma veia do pescoço cada vez mais grossa, os olhos fechados, a marca de duas mãos na parede branca por cima da cama.
Entras no duche, pegas na minha toalha, estás na sala, nua, e recolhes a roupa, reduzes o volume da música e fazes tudo com a lucidez harmoniosa de uma solista de violino – és tão precisa, tão delicada, tão determinante para que, durante esse breve tempo que demora um almoço num dia de semana, eu saiba que alguma coisa de extraordinário está mesmo para acontencer.
7
Não acreditas em bloqueios literários mas sabes que és preguiçoso.
Não sejas palerma.
Vês, em menos de uma hora escreveste isto tudo. Melhor assim? Não fiques quieto, porque o mundo não acontece apenas nas possibilidades determinadas pela tua cabeça. Mostra-te. Faz pela vida. Não é assim tão complicado, a sério. E agora desliga isto e sai para a rua.
sábado, 8 de agosto de 2009
segunda-feira, 27 de julho de 2009
segunda-feira, 20 de julho de 2009
Pela estrada fora
(texto publicado na NS, no verão de 2007)
Prostitutas importadas, adoradores de Franco, marroquinos em automóveis sobrelotados, camionistas ingleses, aldeias fantasma, a herança de Dom Quixote, estações de serviço, turistas em tronco nu. De Madrid a Sevilha, numa das estradas mais percorridas do país. Uma road trip, no epicentro do calor, a essa Espanha mais profunda e insane
Para a Mari
Quando a superfície das ruas de Madrid brilha e parece desfazer-se, e o calor se entranha nos bancos dos carros, no avesso da roupa, no ruído das máquinas de ar condicionado que se prendem nas fachadas dos edifícios, então, as tardes da cidade passam a ser bairros de silêncio, e há a certeza de que uma ventoinha num pequeno apartamento jamais solucionará o desespero dos corpos. Quando todos se escapam para a costa, os que têm de ficar sentem-se sozinhos, e acreditam (mesmo) que alguma coisa se estraga, que a temperatura danifica a sanidade mental, desmanchando gravatas, arregaçando vestidos, e aumentando (ainda mais) a pulsão sexual; os que ficam, falam disso entre si, e estão seguros de que a interioridade de Madrid – no centro da península, tão seca, a 600 metros de altitude – transforma pessoas em bichos encurralados, em devoradores de bebidas alcoólicas com gelo, em seres incapazes de encontrar uma saída nesta cidade, um sítio onde possam, por fim, respirar.
Na sombra de uma varanda no bairro de Chueca, uma inglesa, a viver em Madrid, propõe uma fuga da demência. Fazer uma road trip, como nos livros, como nos filmes. Sair daqui. Só isso. E dias depois, com mapas, guias, e telefonemas a conhecedores da geografia e das personagens de Espanha, um carro abandona Madrid, nessa estrada, a A4, que liga a capital a Sevilha, e que tanto espanhóis cruzaram durante as suas vidas, a caminho do sul.
Os primeiros quilómetros são os danos colaterais do progresso da oitava economia do mundo: polígonos industriais, parques de diversões, centros comerciais, e o primeiro touro Osborne da paisagem – há 90 em toda a Espanha –, entalado entre uma bomba de gasolina Repsol e um armazém de cerâmica. Entramos na região de Castilla La Mancha. O cenário começa a coincidir com a literatura de Cervantes e os filmes promocionais da região. Há pequenos tornados que erguem pó no horizonte, intensificando a desolação de um território que torna os humanos mais duros, mais loucos ou mais engenhosos. Foi aqui que Dom Quixote, engrandecido pelos romances de cavalaria, se passou para a equipa dos dementes. Foi aqui que cresceu Pedro Almodóvar, nessa estrutura social de mulheres viúvas ou com maridos emigrantes, retratada em Volver – filme que mostrou ao resto do mundo (em Espanha, é claro, já se sabia) como a persistência do vento de La Mancha é uma causa de loucura.
Em Tembleque, a paragem inicial, encontramos o primeiro marco informativo de um tema que nos acompanhará durante a viagem – a ideia de duas Espanhas divididas numa guerra civil (1936-1939) que ainda não foi digerida; o conflito entre uma Espanha franquista, que não se apagou por completo, e o desenvolvimento do país europeu que mais estrangeiros recebeu no último ano. Nessa cruz de pedra, diante da igreja de Tembleque, que faz homenagem aos franquistas que morreram na guerra (“Caidos por Dios y por España”), alguém cobriu os símbolos do antigo regime com tinta preta e escreveu: “Viva la República”.
O primeiro lugar mencionado por Dom Quixote chama-se Puerto Lápice, e surge-nos como uma rua comprida com casas de um lado e de outro, e sem habitantes no exterior. Seguindo a tradição manchega, todas as portas (abertas) estão tapadas por panos de diferentes cores e padrões. Desse modo, permite-se que as correntes de ar enfraqueçam o calor e protege-se, ao mesmo tempo, a intimidade das casas. Há Quixotes de metal por todo o lado.
Os senhores Molina, Tomás e Buitrago, todos com mais de 70 anos, passam as tardes numa praça: “Comentamos as turistas que descem dos autocarros”. Não são velhos que se queixam, homens que, apenas por serem velhos, acreditam que no seu tempo tudo era melhor. Tomás conta que nos anos após a guerra civil houve muita fome: “Em 1940 era miséria, miséria mesmo”. Molina saiu de Puerto Lápice com 11 anos, para trabalhar em Madrid como ajudante de pedreiro. São, ainda que reformados, representantes da nova Espanha, motivados pelo progresso económico e mental que o país conseguiu nos últimos 30 anos. “Estamos muito bem, tenho uma boa reforma, este país evoluiu muito, e este sítio também, esta manhã estiveram aqui sete autocarros só de uma vez ”.
O único movimento nas ruas de Puerto de Lápice acontece quando os turistas estrangeiros saem de um autocarro directamente para La Venta, lugar visitado por Dom Quixote. O edifício providencia artesanato e tortilhas. Sobre este pueblo, Cervantes escreveu: “Seguiram o caminho de Puerto Lápice, porque ali, dizia Dom Quixote, não era possível deixar de encontrar muitas e diversas aventuras, por ser lugar muito passageiro”. Nunca nada de extraordinário terá acontecido em Puerto Lápice. Por isso mesmo se torna importante parar. E não fazer nada.
Dentro de um moinho, Rufo tornou-se o guardião da identidade gastronómica de Castilla La Mancha. Tem os ombros largos, barba, e dimensão do corpo reflecte as suas convicções (políticas e gastronómicas). “Há muito engano”, diz, enquanto serve uma salsicha que foi banhada em sidra. Tem uma pulseira com bandeiras espanholas. “Come-se muita porcaria de pacote, estamos na cultura da pizza e do sofá, mas tudo isto se pagará um dia”. Rufo, que trabalhou na indústria dos transportes (“Viajei muito, vi muita coisa”), passou um dia por um moinho destruído, na berma da A4, e informou a mulher de que iria pôr em prática as suas ideias: comida autêntica de La Mancha, atendimento familiar. “Leio o pensamento dos clientes quando ainda vêm no carro. Sempre que me levanto lembro-me do trabalho com o público e de como isso é bonito”.
Rufo gere o moinho, que também é uma loja de produtos gastronómicos, com a mulher e o filho. Os clientes conhecem-no, pedem-lhe sugestões – o gaspacho com perdiz escabechada, os queijos curados, os prato cozinhados no formo de lenha. Rufo tem galinhas, pavões e canários em redor do seu moinho. Não quer autocarros de turistas, acusa as directivas europeias que o proíbem de servir caça, e critica a “Espanha da comida ordinária, o país que consome mais cocaína (per capita) em todo o mundo, que deixa que o catalão se imponha nas escolas da Catalunha”. Os clientes escutam-no e concordam. Ele continua: “O que fazem os miúdos na rua às seis da manhã? Eu trabalho para viver e vivo para trabalhar. Sabe quem manda neste país? É a maçonaria”.
O moinho de Rufo é uma sala de debate, os clientes entram e, alinhados na mesma plataforma política, falam de como os atentados de 11 de Março tiveram a participação da ETA. “Os espanhóis estão enganados, a ETA é uma empresa, um negócio de muitos milhões”. Entra mais um cliente, que espera uma sugestão de Rufo, e este suspende a contundência das suas ideias políticas, deposita o prato no balcão, acrescenta: “Com um pouco de amor”.
Espanha lidera no número de prostitutas na União Europeia. Na A4, entre Madrid e Sevilha, há cerca de 50 puticlubs, como aqui se lhes chama. Edifícios que se vêm da estrada, com nomes como S’candalo ou American Show, reluzindo neóns durante a noite. Tínhamos um contacto, N., dono de Salas de Fiestas – eufemismo escrito na parte de fora dos edifícios do sector, que parece querer transformar uma casa de putas num baile da paróquia. N. foi descrito como "Una pieza", ou seja, um malandro que cruza as noites entre meninas e estupefacientes, com quem falámos por telefone mas que nunca apareceu. “Não te preocupes porque estás com uma amiga, comigo entram em todo o lado”. Mas sem a influência de N., e mesmo sabendo que parar a meio da auto-estrada, com uma inglesa de olhos azuis e um decote (temperaturas de 35 graus), não seria a opção mais sensata, tentámos ser clientes do El Lido. Um senhor pequeno, que podia ser o arrumador de carros do estabelecimento, olha-me e, espantado com a nossa tolice, atira: “Isto é uma sala de festas, não é um café, não pode entrar com ela, os outros homens vão apalpar-lhe o cu”.
Mas é preciso entrar. Alex, a inglesa, fica no carro. Lá dentro: um cartaz informa da abertura da piscina; ecrãs passam telediscos, máquinas fornecem lençóis como se dispensassem chocolates. Os quartos estão no andar de cima. Há três clientes a meio da tarde, homens grisalhos, com barriga, que escorregam as mãos pelas meninas. Uma morena, com minissaia, espartilho vermelho, aproxima-se. Publicita os seus serviços através da ondulação das ancas e da proximidade da respiração. Angelica tem expressões de adolescente (19 anos), chegou do Paraguai, e trabalha como prostituta há quatro meses. Durante o seu turno, das cinco da tarde às três da manhã, aborrece-se muito. “Estes homens são uns chatos”.
Uma carrinha transporta as funcionárias da cidade para o estabelecimento no meio do pó. Angelica diz que a tratam bem e que antes do fim do ano regressará ao Paraguai. O seu conhecimento de Espanha reduz-se a esse percurso diário, entre puticlub e o pueblo onde vive. Pode cobrar entre 50 e 150 euros por encontro, e conta que a maioria das suas colegas são russas e romenas – as mesmas que se sentam num banco corrido, com a postura entediada de adolescentes no recreio. Angelica não fala de máfias, de mulheres obrigadas a estar ali. Pode não ser uma delas. Mas com frequência, em Espanha, são apanhadas redes de tráfico de mulheres. Sobre esse tema, o homem que nos pôs em contacto com N., disse: “Bem, os donos desses sítios vêem as mulheres como propriedade deles, e por isso pensam que podem dar-lhes uns correctivos”. Mais tarde, quando Alex tentava tirar fotos de um destes estabelecimentos, durante a noite, três homens correram atrás do nosso carro. Preferimos acelerar e não saber o que pretendiam.
As saídas ao longo da A4 são acessos a lugares inesperados, fora do mapa, fora da lógica. Juan, dono do restaurante casa Pepe, tem o seu estabelecimento na fronteira de Castilla La Mancha com Andaluzia, na serra de Despeñaperros. Na saída do quilómetro 243, Juan criou um restaurante franquista que celebra o ditador e ridiculariza a Espanha democrática. Por todo o lado se encontram fotografias de Franco, bóinas militares, e a bandeira da ditadura. Há imagens do antigo presidente socialista, Felipe González, com cara de macaco; montagens de Zapatero e políticos catalães, e mesmo José María Aznar, aparece, aos olhos criativos de Juan, como comunista.
Rodeado de clientes que lhe pedem autógrafos, Juan tem o discurso preparado: “Este país, que um dia se chamou Espanha, é hoje um conjunto de tribos”. Diz que tem a bandeira franquista em 90 por cento dos produtos que comercializa, desde latas de azeite, a isqueiros ou toalhas de praia. “Tentei comprar uma estátua de Franco, que havia em Madrid, e não me deixaram. Quis comprar o barco do generalíssimo, e também não me deixaram. Estão a ver este? (aponta para uma cabeça de touro na parede). É o Zapatero”.
Fixado nos decotes dos seus interlocutores femininos, Juan mexe o bigode nervoso em cima do lábio: “Antes era o homem que mandava, a mulher sabia cozinhar, hoje não sabe fazer nada. Sim, as pessoas querem liberdade, mas agora as mulheres confundem liberdade com libertinagem”. Juan casou cinco vezes, resta saber se, como escreveu David Mourão Ferreira sobre si mesmo: “Todas por amor, talvez isso sirva de atenuante.”
Na parede há uma lista de medidas do governo socialista, como sejam a lei antitabaco ou a carta de condução por pontos (que nos primeiros meses desceu a sinistralidade em 30 por cento). Essa lista fecha com uma referência à legalização do casamento entre homossexuais: “Estes socialistas só governam a pensar em como te enrabar, que foi para isso que legalizaram tal coisa”.
Com a hegemonia do seu discurso, Juan secundariza a comida do restaurante. Gosta de ser contrário. Gosta da atenção. “Viram-me na televisão, na semana passada?”. O espectáculo de Juan, perdido no tempo, podia até ser inofensivo. Mas tudo se agrava quando se percebe como os clientes acham graça aos seus comentários, ou se riem quando Juan, diante da bandeira franquista, estica o braço e faz a saudação romana. Os clientes gostam das ideias de Juan, embora nunca o admitam no escritório. Não estão ali apenas pelo presunto. Terá sido essa cumplicidade rançosa, entre Juan e os seus clientes, que levou um crítico gastronómico a escrever que saiu do restaurante com o estômago desarranjado.
De novo na estrada, a inglesa partilha o mal estar físico do crítico gastronómico. Diz que em Inglaterra há radicais, racistas, espancadores de negros, gente extremista que assusta. Mas não existe, como em Espanha, uma memória tão presente – na cultura, na educação, nos hábitos, no vocabulário – de um regime que tanto danificou um país, que assassinou e torturou milhares de pessoas, e que, ainda assim, continua a ser celebrado, mesmo que seja numa espécie de túnel de tempo, na estrada entre Madrid e Sevilha.
O sol entra em percurso descendente, os mosquitos suicidam-se contra o pára-brisas, os lagares de azeite empestam a paisagem. Paramos em Villa del Río. E se ainda não tivessemos compreendido a importância do calor na definição das rotinas, uma senhora ajudou-nos: “Uma esplanada? São sete da tarde, meus filhos, ninguém está numa esplanada tão cedo”.
Paramos outra vez. Primeiro na estação de serviço de Guarromán, onde os autocarros que fazem o percurso entre Madrid e Sevilha mudam de motorista. Os passageiros abastecem-se de comida. Dentro da zona de fumadores, como num aquário, três homens de cabelo branco destacam-se. São camionistas britânicos, que percorrem o caminho do norte de Inglaterra ao sul de Espanha há mais de 30 anos. Têm barrigas e dedos amarelos. Estão gastos. E surpreendem pela sua eloquência e capacidade de observação. São camionistas que percebem de sarcasmo: “Em Espanha não se guia, faz-se pontaria”.
Pouco quilómetros depois, as placas que indicam uma zona de descanso aparecem em árabe. Há um milhão de imigrantes muçulmanos em Espanha, 450 mesquitas legais, 200 sem licença. Na estação de serviço Jaima Park (saída 283), a hospitalidade de Maki para com os dois únicos não muçulmanos na sala, contrasta com a ideia de um possível conflito de civilizações. Maki nasceu em Tânger e tem saudades do mar. Mas ali, no centro da Andaluzia, faz mais dinheiro. É um dos 850 mil marroquinos que trabalha em Espanha, a maioria na hotelaria, agricultura ou construção. Serve-nos chá de menta. Fala dos três milhões de marroquinos que, a viver na Europa, cruzam Espanha durante os meses de verão, para passarem férias no seu país. “Já podem comer a sua comida na estrada, antes traziam de casa e comiam debaixo de sol”. Os carros, lá fora, têm caixas no tejadilho, panos a tapar as janelas. Os marroquinos são conhecidos por, pelo menos na estrada, serem viajantes com excesso de bagagem, e de passageiros.
Em Jaima Park, há avisos em francês e árabe, que anunciam comida Halal, ou seja, que respeita a lei islâmica. Não se encontra uma bebida alcoólica. Cinco minutos e três quilómetros antes, tínhamos estado com camionistas ingleses, bebedores de álcool (quando não conduzem), diante de um cartaz que anunciava: “Tipologia do presunto”.
Na chegada a Sevilha, depois de 12 horas na estrada, os termómetros mostravam temperaturas mais altas que Madrid, e insanidade de alguns detalhes durante o percurso não nos permitiu escapar ao perigo da demência. Mas quando nos pomos em movimento ganhamos perspectiva, fazemos perguntas, exercitamos a habilidade para viver. A A4 pode ser vista como um freak show, o retrato sociólgico de um país, ou mesmo uma comédia de costumes. O autor Pío Baroja, escreveu: “O nacionalismo cura-se viajando”. E o comodismo também. No final, não se tratou de uma fuga ao calor, mas de uma solução para a facilidade de estar sempre no mesmo lugar.
Prostitutas importadas, adoradores de Franco, marroquinos em automóveis sobrelotados, camionistas ingleses, aldeias fantasma, a herança de Dom Quixote, estações de serviço, turistas em tronco nu. De Madrid a Sevilha, numa das estradas mais percorridas do país. Uma road trip, no epicentro do calor, a essa Espanha mais profunda e insane
Para a Mari
Quando a superfície das ruas de Madrid brilha e parece desfazer-se, e o calor se entranha nos bancos dos carros, no avesso da roupa, no ruído das máquinas de ar condicionado que se prendem nas fachadas dos edifícios, então, as tardes da cidade passam a ser bairros de silêncio, e há a certeza de que uma ventoinha num pequeno apartamento jamais solucionará o desespero dos corpos. Quando todos se escapam para a costa, os que têm de ficar sentem-se sozinhos, e acreditam (mesmo) que alguma coisa se estraga, que a temperatura danifica a sanidade mental, desmanchando gravatas, arregaçando vestidos, e aumentando (ainda mais) a pulsão sexual; os que ficam, falam disso entre si, e estão seguros de que a interioridade de Madrid – no centro da península, tão seca, a 600 metros de altitude – transforma pessoas em bichos encurralados, em devoradores de bebidas alcoólicas com gelo, em seres incapazes de encontrar uma saída nesta cidade, um sítio onde possam, por fim, respirar.
Na sombra de uma varanda no bairro de Chueca, uma inglesa, a viver em Madrid, propõe uma fuga da demência. Fazer uma road trip, como nos livros, como nos filmes. Sair daqui. Só isso. E dias depois, com mapas, guias, e telefonemas a conhecedores da geografia e das personagens de Espanha, um carro abandona Madrid, nessa estrada, a A4, que liga a capital a Sevilha, e que tanto espanhóis cruzaram durante as suas vidas, a caminho do sul.
Os primeiros quilómetros são os danos colaterais do progresso da oitava economia do mundo: polígonos industriais, parques de diversões, centros comerciais, e o primeiro touro Osborne da paisagem – há 90 em toda a Espanha –, entalado entre uma bomba de gasolina Repsol e um armazém de cerâmica. Entramos na região de Castilla La Mancha. O cenário começa a coincidir com a literatura de Cervantes e os filmes promocionais da região. Há pequenos tornados que erguem pó no horizonte, intensificando a desolação de um território que torna os humanos mais duros, mais loucos ou mais engenhosos. Foi aqui que Dom Quixote, engrandecido pelos romances de cavalaria, se passou para a equipa dos dementes. Foi aqui que cresceu Pedro Almodóvar, nessa estrutura social de mulheres viúvas ou com maridos emigrantes, retratada em Volver – filme que mostrou ao resto do mundo (em Espanha, é claro, já se sabia) como a persistência do vento de La Mancha é uma causa de loucura.
Em Tembleque, a paragem inicial, encontramos o primeiro marco informativo de um tema que nos acompanhará durante a viagem – a ideia de duas Espanhas divididas numa guerra civil (1936-1939) que ainda não foi digerida; o conflito entre uma Espanha franquista, que não se apagou por completo, e o desenvolvimento do país europeu que mais estrangeiros recebeu no último ano. Nessa cruz de pedra, diante da igreja de Tembleque, que faz homenagem aos franquistas que morreram na guerra (“Caidos por Dios y por España”), alguém cobriu os símbolos do antigo regime com tinta preta e escreveu: “Viva la República”.
O primeiro lugar mencionado por Dom Quixote chama-se Puerto Lápice, e surge-nos como uma rua comprida com casas de um lado e de outro, e sem habitantes no exterior. Seguindo a tradição manchega, todas as portas (abertas) estão tapadas por panos de diferentes cores e padrões. Desse modo, permite-se que as correntes de ar enfraqueçam o calor e protege-se, ao mesmo tempo, a intimidade das casas. Há Quixotes de metal por todo o lado.
Os senhores Molina, Tomás e Buitrago, todos com mais de 70 anos, passam as tardes numa praça: “Comentamos as turistas que descem dos autocarros”. Não são velhos que se queixam, homens que, apenas por serem velhos, acreditam que no seu tempo tudo era melhor. Tomás conta que nos anos após a guerra civil houve muita fome: “Em 1940 era miséria, miséria mesmo”. Molina saiu de Puerto Lápice com 11 anos, para trabalhar em Madrid como ajudante de pedreiro. São, ainda que reformados, representantes da nova Espanha, motivados pelo progresso económico e mental que o país conseguiu nos últimos 30 anos. “Estamos muito bem, tenho uma boa reforma, este país evoluiu muito, e este sítio também, esta manhã estiveram aqui sete autocarros só de uma vez ”.
O único movimento nas ruas de Puerto de Lápice acontece quando os turistas estrangeiros saem de um autocarro directamente para La Venta, lugar visitado por Dom Quixote. O edifício providencia artesanato e tortilhas. Sobre este pueblo, Cervantes escreveu: “Seguiram o caminho de Puerto Lápice, porque ali, dizia Dom Quixote, não era possível deixar de encontrar muitas e diversas aventuras, por ser lugar muito passageiro”. Nunca nada de extraordinário terá acontecido em Puerto Lápice. Por isso mesmo se torna importante parar. E não fazer nada.
Dentro de um moinho, Rufo tornou-se o guardião da identidade gastronómica de Castilla La Mancha. Tem os ombros largos, barba, e dimensão do corpo reflecte as suas convicções (políticas e gastronómicas). “Há muito engano”, diz, enquanto serve uma salsicha que foi banhada em sidra. Tem uma pulseira com bandeiras espanholas. “Come-se muita porcaria de pacote, estamos na cultura da pizza e do sofá, mas tudo isto se pagará um dia”. Rufo, que trabalhou na indústria dos transportes (“Viajei muito, vi muita coisa”), passou um dia por um moinho destruído, na berma da A4, e informou a mulher de que iria pôr em prática as suas ideias: comida autêntica de La Mancha, atendimento familiar. “Leio o pensamento dos clientes quando ainda vêm no carro. Sempre que me levanto lembro-me do trabalho com o público e de como isso é bonito”.
Rufo gere o moinho, que também é uma loja de produtos gastronómicos, com a mulher e o filho. Os clientes conhecem-no, pedem-lhe sugestões – o gaspacho com perdiz escabechada, os queijos curados, os prato cozinhados no formo de lenha. Rufo tem galinhas, pavões e canários em redor do seu moinho. Não quer autocarros de turistas, acusa as directivas europeias que o proíbem de servir caça, e critica a “Espanha da comida ordinária, o país que consome mais cocaína (per capita) em todo o mundo, que deixa que o catalão se imponha nas escolas da Catalunha”. Os clientes escutam-no e concordam. Ele continua: “O que fazem os miúdos na rua às seis da manhã? Eu trabalho para viver e vivo para trabalhar. Sabe quem manda neste país? É a maçonaria”.
O moinho de Rufo é uma sala de debate, os clientes entram e, alinhados na mesma plataforma política, falam de como os atentados de 11 de Março tiveram a participação da ETA. “Os espanhóis estão enganados, a ETA é uma empresa, um negócio de muitos milhões”. Entra mais um cliente, que espera uma sugestão de Rufo, e este suspende a contundência das suas ideias políticas, deposita o prato no balcão, acrescenta: “Com um pouco de amor”.
Espanha lidera no número de prostitutas na União Europeia. Na A4, entre Madrid e Sevilha, há cerca de 50 puticlubs, como aqui se lhes chama. Edifícios que se vêm da estrada, com nomes como S’candalo ou American Show, reluzindo neóns durante a noite. Tínhamos um contacto, N., dono de Salas de Fiestas – eufemismo escrito na parte de fora dos edifícios do sector, que parece querer transformar uma casa de putas num baile da paróquia. N. foi descrito como "Una pieza", ou seja, um malandro que cruza as noites entre meninas e estupefacientes, com quem falámos por telefone mas que nunca apareceu. “Não te preocupes porque estás com uma amiga, comigo entram em todo o lado”. Mas sem a influência de N., e mesmo sabendo que parar a meio da auto-estrada, com uma inglesa de olhos azuis e um decote (temperaturas de 35 graus), não seria a opção mais sensata, tentámos ser clientes do El Lido. Um senhor pequeno, que podia ser o arrumador de carros do estabelecimento, olha-me e, espantado com a nossa tolice, atira: “Isto é uma sala de festas, não é um café, não pode entrar com ela, os outros homens vão apalpar-lhe o cu”.
Mas é preciso entrar. Alex, a inglesa, fica no carro. Lá dentro: um cartaz informa da abertura da piscina; ecrãs passam telediscos, máquinas fornecem lençóis como se dispensassem chocolates. Os quartos estão no andar de cima. Há três clientes a meio da tarde, homens grisalhos, com barriga, que escorregam as mãos pelas meninas. Uma morena, com minissaia, espartilho vermelho, aproxima-se. Publicita os seus serviços através da ondulação das ancas e da proximidade da respiração. Angelica tem expressões de adolescente (19 anos), chegou do Paraguai, e trabalha como prostituta há quatro meses. Durante o seu turno, das cinco da tarde às três da manhã, aborrece-se muito. “Estes homens são uns chatos”.
Uma carrinha transporta as funcionárias da cidade para o estabelecimento no meio do pó. Angelica diz que a tratam bem e que antes do fim do ano regressará ao Paraguai. O seu conhecimento de Espanha reduz-se a esse percurso diário, entre puticlub e o pueblo onde vive. Pode cobrar entre 50 e 150 euros por encontro, e conta que a maioria das suas colegas são russas e romenas – as mesmas que se sentam num banco corrido, com a postura entediada de adolescentes no recreio. Angelica não fala de máfias, de mulheres obrigadas a estar ali. Pode não ser uma delas. Mas com frequência, em Espanha, são apanhadas redes de tráfico de mulheres. Sobre esse tema, o homem que nos pôs em contacto com N., disse: “Bem, os donos desses sítios vêem as mulheres como propriedade deles, e por isso pensam que podem dar-lhes uns correctivos”. Mais tarde, quando Alex tentava tirar fotos de um destes estabelecimentos, durante a noite, três homens correram atrás do nosso carro. Preferimos acelerar e não saber o que pretendiam.
As saídas ao longo da A4 são acessos a lugares inesperados, fora do mapa, fora da lógica. Juan, dono do restaurante casa Pepe, tem o seu estabelecimento na fronteira de Castilla La Mancha com Andaluzia, na serra de Despeñaperros. Na saída do quilómetro 243, Juan criou um restaurante franquista que celebra o ditador e ridiculariza a Espanha democrática. Por todo o lado se encontram fotografias de Franco, bóinas militares, e a bandeira da ditadura. Há imagens do antigo presidente socialista, Felipe González, com cara de macaco; montagens de Zapatero e políticos catalães, e mesmo José María Aznar, aparece, aos olhos criativos de Juan, como comunista.
Rodeado de clientes que lhe pedem autógrafos, Juan tem o discurso preparado: “Este país, que um dia se chamou Espanha, é hoje um conjunto de tribos”. Diz que tem a bandeira franquista em 90 por cento dos produtos que comercializa, desde latas de azeite, a isqueiros ou toalhas de praia. “Tentei comprar uma estátua de Franco, que havia em Madrid, e não me deixaram. Quis comprar o barco do generalíssimo, e também não me deixaram. Estão a ver este? (aponta para uma cabeça de touro na parede). É o Zapatero”.
Fixado nos decotes dos seus interlocutores femininos, Juan mexe o bigode nervoso em cima do lábio: “Antes era o homem que mandava, a mulher sabia cozinhar, hoje não sabe fazer nada. Sim, as pessoas querem liberdade, mas agora as mulheres confundem liberdade com libertinagem”. Juan casou cinco vezes, resta saber se, como escreveu David Mourão Ferreira sobre si mesmo: “Todas por amor, talvez isso sirva de atenuante.”
Na parede há uma lista de medidas do governo socialista, como sejam a lei antitabaco ou a carta de condução por pontos (que nos primeiros meses desceu a sinistralidade em 30 por cento). Essa lista fecha com uma referência à legalização do casamento entre homossexuais: “Estes socialistas só governam a pensar em como te enrabar, que foi para isso que legalizaram tal coisa”.
Com a hegemonia do seu discurso, Juan secundariza a comida do restaurante. Gosta de ser contrário. Gosta da atenção. “Viram-me na televisão, na semana passada?”. O espectáculo de Juan, perdido no tempo, podia até ser inofensivo. Mas tudo se agrava quando se percebe como os clientes acham graça aos seus comentários, ou se riem quando Juan, diante da bandeira franquista, estica o braço e faz a saudação romana. Os clientes gostam das ideias de Juan, embora nunca o admitam no escritório. Não estão ali apenas pelo presunto. Terá sido essa cumplicidade rançosa, entre Juan e os seus clientes, que levou um crítico gastronómico a escrever que saiu do restaurante com o estômago desarranjado.
De novo na estrada, a inglesa partilha o mal estar físico do crítico gastronómico. Diz que em Inglaterra há radicais, racistas, espancadores de negros, gente extremista que assusta. Mas não existe, como em Espanha, uma memória tão presente – na cultura, na educação, nos hábitos, no vocabulário – de um regime que tanto danificou um país, que assassinou e torturou milhares de pessoas, e que, ainda assim, continua a ser celebrado, mesmo que seja numa espécie de túnel de tempo, na estrada entre Madrid e Sevilha.
O sol entra em percurso descendente, os mosquitos suicidam-se contra o pára-brisas, os lagares de azeite empestam a paisagem. Paramos em Villa del Río. E se ainda não tivessemos compreendido a importância do calor na definição das rotinas, uma senhora ajudou-nos: “Uma esplanada? São sete da tarde, meus filhos, ninguém está numa esplanada tão cedo”.
Paramos outra vez. Primeiro na estação de serviço de Guarromán, onde os autocarros que fazem o percurso entre Madrid e Sevilha mudam de motorista. Os passageiros abastecem-se de comida. Dentro da zona de fumadores, como num aquário, três homens de cabelo branco destacam-se. São camionistas britânicos, que percorrem o caminho do norte de Inglaterra ao sul de Espanha há mais de 30 anos. Têm barrigas e dedos amarelos. Estão gastos. E surpreendem pela sua eloquência e capacidade de observação. São camionistas que percebem de sarcasmo: “Em Espanha não se guia, faz-se pontaria”.
Pouco quilómetros depois, as placas que indicam uma zona de descanso aparecem em árabe. Há um milhão de imigrantes muçulmanos em Espanha, 450 mesquitas legais, 200 sem licença. Na estação de serviço Jaima Park (saída 283), a hospitalidade de Maki para com os dois únicos não muçulmanos na sala, contrasta com a ideia de um possível conflito de civilizações. Maki nasceu em Tânger e tem saudades do mar. Mas ali, no centro da Andaluzia, faz mais dinheiro. É um dos 850 mil marroquinos que trabalha em Espanha, a maioria na hotelaria, agricultura ou construção. Serve-nos chá de menta. Fala dos três milhões de marroquinos que, a viver na Europa, cruzam Espanha durante os meses de verão, para passarem férias no seu país. “Já podem comer a sua comida na estrada, antes traziam de casa e comiam debaixo de sol”. Os carros, lá fora, têm caixas no tejadilho, panos a tapar as janelas. Os marroquinos são conhecidos por, pelo menos na estrada, serem viajantes com excesso de bagagem, e de passageiros.
Em Jaima Park, há avisos em francês e árabe, que anunciam comida Halal, ou seja, que respeita a lei islâmica. Não se encontra uma bebida alcoólica. Cinco minutos e três quilómetros antes, tínhamos estado com camionistas ingleses, bebedores de álcool (quando não conduzem), diante de um cartaz que anunciava: “Tipologia do presunto”.
Na chegada a Sevilha, depois de 12 horas na estrada, os termómetros mostravam temperaturas mais altas que Madrid, e insanidade de alguns detalhes durante o percurso não nos permitiu escapar ao perigo da demência. Mas quando nos pomos em movimento ganhamos perspectiva, fazemos perguntas, exercitamos a habilidade para viver. A A4 pode ser vista como um freak show, o retrato sociólgico de um país, ou mesmo uma comédia de costumes. O autor Pío Baroja, escreveu: “O nacionalismo cura-se viajando”. E o comodismo também. No final, não se tratou de uma fuga ao calor, mas de uma solução para a facilidade de estar sempre no mesmo lugar.
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