segunda-feira, 31 de maio de 2010
Crónicas no jornal i
Gente da Minha Terra
Querida Mariza, não cantes mais para mim, não voltes a tirar-me o chão, a fúria, a lucidez quando me preparo para, depois de ler o Manifesto Anti-Dantas, escrever sobre a necessidade de Portugal continuar a ser, tantos anos mais tarde, qualquer coisa de mais asseado. Por favor, não me apareças a cantar sobre a tristeza que trazes, deixando-me cativo de uma nostalgia que não quero, desmontando-me o coração de gesso como quem esmaga um pequeno brinquedo a pilhas. Peço-te que não repitas essa coisa de seres um punho na garganta, um susto na pele, uma rasteira ao meu mau feitio, quando o que mais quero é ser bruto e falar da geração que se deixa representar pela peste de encolher sempre os ombros, desculpando-se como um mestre de obras incompetente: “Isto é Portugal”. Não me segures na mão nem me tapes a boca nem faças de mim um miúdo em soluços, caído e sem luta, no colo de uma língua, de um país, de uma gente a quem tantas vezes quero apedrejar, cuspir e insultar. Pára de cantar sobre a gente da nossa terra, porque não consigo não acreditar em ti – e fico mais pequeno, menos feroz, outra pessoa. Não nos sequestres a razão desta maneira, porque se cantas assim seremos sempre sentimento e não deixaremos jamais de acreditar que a tristeza é bonita e nos aconchega quando tudo pega fogo e o caminho se faz ainda mais desgovernado. Ou então não me oiças, e continua, por favor continua, porque neste exílio dos degredados e dos indiferentes, neste entulho das desvantagens e dos sobejos, só tu nos fazes querer ser ainda gente desta terra.
Morrer de amor
Os amigos dizem que Simon Monjack não tinha ruindade no coração, que era mais como um miúdo com delírios de grandeza, usando as mentiras como se usa um smoking no baile de finalistas – para parecer mais bonito, para que gostassem dele. Tal como o pai, que morreu quando Simon tinha 15 anos, o filho trabalhou no mercado financeiro londrino. Dizia ser grande mecenas de Damien Hirst, embora tenha comprado uma só peça do artista celebridade. Foi perseguido por bancos e expulso de casas. Era um trapaceiro com aspirações artísticas. Casou com a actriz Britanny Murphy e logo os rumores, nos sites de famosos, questionaram o seu amor – queria a fortuna dela para pagar dívidas, queria um visto de residência nos Estados Unidos. Não se largavam, viajam juntos para todo o lado. Há seis meses, Simon encontrou Britanny morta. Disse que tentou manobras de reanimação e, quando percebeu o inevitável, despediu-se com um beijo – Britanny morreu por causa da anemia, do abuso de medicamentos e de um coração fraco. Nos meses seguintes, Simon tentou limpar o seu nome, oscilando entre a energia dos mitómanos e o choro dos danificados: “O meu mundo foi destruído”. Foi filmado em casa, para um site, dizendo: “Chegámos a um ponto, nesta cultura, em que já não importa a diferença entre factos e ficção. O que interessa é aquilo que consegue despertar o interesse do leitor médio”. Foi encontrado sem pulso no mesmo quarto onde Britanny morreu. O seu coração também falhou. Já ninguém morre apenas de amor. É preciso, pelo menos, um pouco de fama maldita.
segunda-feira, 24 de maio de 2010
crónicas no jornal i
Viagem no tempo
E, de repente, havia de novo o gelado Fizz de limão e o cheiro dos cromos Panini e a Praia Grande com ondas que apunhalámos durante todo este fim-de-semana, destemidos, eufóricos, como se as aulas tivessem acabado e não houvesse uma agenda de adultos até ao final de Setembro. Logo que o sol começou a descer sobre o mar, fomos outra vez miúdos a quem as consequências do álcool não importam, com o cheiro do marisco nos dedos e a efervescência das imperiais na boca. De noite saímos para a rua, uma camisa fresca que chegará a casa de madrugada, colada ao corpo e com nódoas, as mãos apertando bebidas com gelo, passa-me mais um cigarro, as ruas de Lisboa apinhadas de gente bem disposta que queria sacudir a depressão da crise e estrear a primeira noite sem uma brisa. Sandálias de mulheres bonitas na calçada, tornozelos, pernas, ombros, cinturas maleáveis na pista de dança, pássaros a amanhecer no regresso a casa, poucas horas de sono, dores existenciais curadas com o primeiro mergulho no mar e a certeza que, ao fim da tarde, estaríamos outra vez numa esplanada com manchas de sal nos músculos preguiçosos, diante da final da Liga dos Campeões, numa comunhão que talvez só os crentes religiosos conseguem. E comentários sobre o jogo, minis geladas, peixe grelhado, tudo com o mesmo empenho, a mesma certeza de imortalidade, a mesma fruição com que há anos corríamos para o homem das bolas de berlim, para a prancha mais alta da piscina, para a miúda que, depois de prender o cabelo, nos ofereceu o espanto da sua boca e nos inaugurou nos beijos com língua.
7
Numa noite de chuva no antigo estádio da Luz, junto da linha lateral, vi tudo em câmara lenta. Não foi um golo monumental, um pontapé de bicicleta. Mas lembro-me de tudo. Figo corria para disputar a bola, prestes a sair de campo, com um irlandês. Escorregou na relva molhada, deslizou de joelhos e, quando o adversário estava prestes a ganhar o confronto, Figo levantou-se, deu um toque para o lado, dobrou os rins do irlandês como quem prega uma partida, e saiu a correr. Tinha valido a pena a molha durante mais de hora e meia. Figo é agora um homem de negócios, uma celebridade internacional que toma o pequeno almoço com o primeiro-ministro. Figo, o habitante da sumptuosa cidade de Milão, disse: “Gosto muito de Portugal, dos portugueses, mas há poucas coisas que me interessam [em Portugal]”. E nós, que queríamos que ele fosse sempre o jogador que, depois de marcar um golo contra a Inglaterra, foi buscar a bola dentro da baliza, ficámos magoados ou tristes ou indignados. Nós, os portugueses, tantas vezes duros com o país, não admitimos que o façam diante de estrangeiros, tal como Michael Corleone, que disse ao irmão: “Don’t ever take sides against the family.” Mas não sejamos ingénuos. Figo não é da nossa família nem janta em nossa casa nem é o apaixonado salvador da pátria que esperávamos que fosse com a camisola da selecção. Figo é um empresário e os empresários não emocionam ninguém numa noite de chuva quando a bola estás prestes a sair de campo. Figo, lamento informar, já não é o número sete. É um homem de negócios.
Telenovela
José, homem que chegou longe na vida, era chefe de família e usava bons fatos. Nas suas viagens aprendeu, com um amigo italiano, que o último botão do casaco nunca se aperta. Um dia entrou em casa e declarou que não sabia nada sobre os boatos que o acusavam de querer prejudicar Manuela, uma habitante do prédio, que todas as sextas feiras insultava José. E quando as reuniões do condomínio investigaram a altercação, José afirmou que o queriam prejudicar. No quarto aniversário do seu casamento, antes da cerimónia da renovação dos votos, também garantiu que as contas da família estavam em ordem. Meses depois, com a segunda aliança no dedo, entrou em casa e disse que, afinal, não estavam assim tão bem e que era preciso gastar menos água e tirar os carregadores dos telemóveis das fichas – os bancos que financiavam a família tinham aumentado os juros. Também disse que não iria recorrer aos mealheiros dos filhos. Bastaram poucas semanas para que mudasse de opinião e a sua prole, contrariada, aceitou partir os porquinhos, em nome da família, a partir de Julho. José, homem de princípios fortes, não pediu desculpa. O ambiente em casa era cada vez pior. Mas José assegurou que o dinheiro para as férias não seria tocado. Dias mais tarde, a família foi informada que percebera mal (os palermas) e que era para partir os porquinhos já em Junho, incluindo o que continha o pé de meia para as férias em Quarteira. Um dos filhos perguntou: “Pai, quantos meses tem um semestre?” José respondeu: “Sete, meu filho”. Moral da novela: José tem sempre razão.
quinta-feira, 20 de maio de 2010
crónica no jornal i
Uma coisa de cada vez
Portugal teve sorte, não fosse a urgência em resolver a crise e talvez a sociedade se fracturasse por causa do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Espanha, que aprovou este tipo de união em 2005, esteve, como se sabe, perto de uma guerra civil assim que os homossexuais se começaram a casar, transformando-se numa Sodoma descontrolada. Os gays corromperam os heterossexuais, homens bem casados passaram a frequentar quartos escuros e a família tradicional é hoje tão rara como o lince ibérico. Quando os gays se casam, como está provado cientificamente, o mal abate-se sobre todos nós. Na segunda-feira, o Presidente da República alertou para os perigos desse desmoronamento social, sublinhando que os partidos deviam ter optado pela solução dos países que contemplam uma união civil mas recusam chamar-lhe casamento, por causa das consequências que daí decorrem (não disse quais seriam, na prática, essas consequências). Ou seja, o risco de ruína está na forma como se chamam as coisas. União civil: o país aguenta-se. Casamento: Portugal em queda-livre. O Presidente acha que apenas somos capazes de preocupar-nos com uma coisa de cada vez, como se os portugueses não conseguissem mastigar e caminhar ao mesmo tempo. Se combatemos a crise não podemos concentrar-nos em mais nada, nem casamento gay, nem mundial de futebol, nem mesmo na hipnótica e despesista visita do Papa, durante a qual o Presidente se recusou a comentar a situação económica do país porque estava em Fátima. Nisso, o presidente é como nós, só faz uma coisa de cada vez.
quarta-feira, 19 de maio de 2010
segunda-feira, 17 de maio de 2010
Carta ao meu país, escrita no dia 13 de Maio de 2010
Escuta-me porque hoje não consigo ser irónico. Escuta-me, é sério. Há décadas que andamos nisto, a marcar passo, a assobiar para o lado, somos funcionários do comodismo e cúmplices da trafulhice. Mentem-nos e nós calamos. E um povo de cordeiros terá sempre um governo de lobos. Eu percebo e aceito que temos agora de pagar mais impostos, que os preços vão subir e os salários descer. Mas era preciso chegar até aqui? Era preciso ter a alma, e não apenas o bolso, exangue? Era preciso, durante anos, colaborar com os chico-espertos, os sucateiros, os empreiteiros, os autarcas mafiosos, os ministros desonestos e com reformas milionárias, os banqueiros chupistas e burlões, os traficantes de influências, os empresários que declaram salários mínimos e conduzem Mercedes, os funcionários parasitas e os políticos dissimulados? Era preciso ter um primeiro ministro que nos mente sem pudor? – há menos de um mês disse, no parlamento, que não ia aumentar impostos. Era preciso um governo cobardolas que aproveita a distracção com o Papa – que nos custou milhões de euros e uma tolerância de ponto – para anunciar que estamos entre a espada e a parede? Era preciso um presidente que diz, no santuário de Fátima, “Entendo que não devo fazer qualquer comentário sobre a vida político-económica portuguesa”? Eu sei que temos culpa, que nos comportámos como novos ricos sendo o país pobre, que andámos dormentes. Fomos sempre desinteressados, mansos, totós, egoístas. E hoje estamos de espírito vergado. Temos o que merecemos? Começo, com tristeza e revolta, a acreditar que sim.
quinta-feira, 13 de maio de 2010
Mais crónicas
Papa pop star
Na rotunda do Marquês de Pombal o edifício de um grande banco está coberto com a imagem do Papa. Pelas ruas de Lisboa há cartazes que dizem “Acreditar foi o Pai que me ensinou” ou “Escutar foi o Pai que me ensinou”. Prevê-se que mais de 150 mil pessoas estejam na missa papal no Terreiro do Paço. O Papa, além de líder religioso e chefe de estado, é uma celebridade global, como Cristiano Ronaldo ou Beyoncé. Junta multidões, agita a comunicação social e, tal como acontece com outros famosos, sabemos pequenas coisas sobre os seus gostos – aprecia Fanta de laranja, Prada, música erudita e não gosta de Harry Potter ou Bob Dylan. Se os rappers americanos têm um exército de guarda-costas o Papa tem um exército privado de suíços. Uma biografia do Papa, apresentada pela sic este fim-de-semana, parecia uma versão religiosa do programa “How to live like a rock and roll star”, da VH1. O Papa também é espectáculo. E os que se queixam do dinheiro dos contribuintes gasto neste evento, deviam lembrar-se dos dias de boa disposição durante o Euro 2004, que, tal como a vinda do Papa, pôs os portugueses em modo festivo e esperançoso. Como vivo perto do Terreiro do Paço, terei algumas restrições de mobilidade estes dias, por isso, deixo uma sugestão: que tal rentabilizar o investimento com o Euro 2004 e organizar a missa num dos estádios (quase) abandonados? O Papa, estou seguro, esgotará a bilheteira mais depressa que os Tokio Hotel.
Sobre a felicidade
O trânsito não estava fechado e já milhares de pessoas subiam a Avenida da Liberdade entre carros em andamento, soprando cornetas, levantando bandeiras, sorrindo para desconhecidos como se fossem os familiares que não viam há anos. Niguém ia ser atropelado, os rapazes pendurados na estátua não iam cair, o camião que mugia como um touro na rotunda não ia arrancar uma perna a ninguém. No domingo, pelo menos para os benfiquistas, em Lisboa, Genebra, Cabo Verde ou Newark, nada de mal poderia acontecer, a felicidade era um escudo tão luminoso e eficaz como nos filmes de naves espaciais. No Marquês, havia velhas desdentadas e crianças ainda sem dentes, betos de pullover sobre os ombros e mitras com bonés de basebol. Todos tinham direito a esse estado de felicidade tão raro como inexplicável (imagino que muitas daquelas pessoas não terão sido tão exuberantes ao celebrar o nascimento de um filho). Por mais que tente, não consigo descodificar esta felicidade, e não me vale de nada pensar na psicologia das multidões ou na urgência que temos em ganhar alguma coisa mesmo que seja através do futebol. Limitei-me a sentir a felicidade, que é minha, é dos benfiquistas, que ninguém nos pode tirar. Mas o ministro Teixeira dos Santos foi mais cerebral e percebeu que uma alegria assim torna as pessoas imunes a qualquer infortúnio. O Benfica foi campeão. No dia seguinte, o ministro falou de aumento de impostos. Felizmente, a memória emocional é selectiva. Só um destes factos ficará para a história.
Embasbacanço nacional
O Papa estava em todo o lado: no rosnar dos jactos que sobrevoavam Lisboa ao mesmo tempo que os sinos tocavam e as televisões bolçavam disparates confundido informação com reality show: “Olhem para os olhos dele, são um reflexo do que se passa na alma”, “Está enternecido [com o coro nos Jerónimos]”, “Está embevecido [com o claustro]”. Se o Papa estava fora do alcance das câmaras, entrevistavam-se crianças, senhoras de idade ou punham-se rodapés a dar as últimas notícias: “Fiéis dizem que o Papa parece mais simpático ao vivo do que na televisão”. Quis descobrir se, ao vivo, o embasbacanço nacional com o Papa era semelhante ao que aparecia na televisão. No Terreiro do Paço, a meio da tarde, percebi que a maioria dos presentes eram crianças de escola e reformados. Também vi muitas famílias betas, que se conheciam entre si, cumprindo o protocolo de identificação social quando davam apenas um beijinho. Uma funcionária do peditório tentou pespegar-me um autocolante: “Anda lá, filho.” Uma adolescente olhava para os biquínis de um catálogo da Calzedonia. Lencinhos a um euro, cadeirinhas, merendinhas. O povo é sereno. E lá estavam as milhares de bandeiras oferecidas pelo “Correio da Manhã”, uma prova que a comunicação social sofre mais de papa-histeria que os fiéis. Como sofre o chefe do nosso Estado, que falou da devoção e da fidelidade dos portugueses ao Papa. Se os políticos e os jornalistas, parte importante da massa crítica de uma nação, se comportam como fãs de um participante do Big Brother, pode pedir-se ao povo que seja diferente?
terça-feira, 11 de maio de 2010
segunda-feira, 10 de maio de 2010
Crónicas no jornal i
Os outros
Estás tão aborrecido como a sala de espera de um médico de família e aguardas que o mundo lá fora te resgate. Chove, no entanto, sentas-te na esplanada, protegido pelos chapéus, como quem deseja algo extraordinário. Já devias saber que isso nem sempre acontece. Tens sorte porque um mendigo raçudo discute com o empregado e atira-lhe a caixa dos guardanapos (tinham-te avisado que o serviço de mesa era lento). Parou de chover e está uma francesa gira a olhar para ti. O mendigo regressa. Desta vez, um negro que inclina a cabeça para o lado como os polícias duros nos filmes, trata de o pôr na ordem. Temes que este seja o ponto mais alto do dia até porque a francesa queixa-se do frio e abandona a mesa com aquela que, suspeitas, seja a namorada. Os guarda-chuvas abrem-se de novo e observas aqueles que passam: adolescentes em visita de estudo com a ressaca de tantas horas sem messenger, homens que, em vez de sobremesa, pediram whisky no fim do almoço, bichas tão estilizadas como a capa da “Wall Paper”. Ninguém te salva do tédio. Olhas para o lado e uma mulher parece-te mais velha por causa do colar de pérolas. Lês, por cima do seu ombro, na revista que tem no colo, o que disse a namorada de Pinto da Costa: “Amar como eu te amo só uma vez na vida.” Por esta altura, também já devias saber que os outros nem sempre chegam para nos entreter. O músico de rua canta: “I cry my way to be free”. Estás sem paciência para revolucionários ou gente piegas. Levantas-te. Fazes-te à rua. Talvez um dia aceites que a vida não é como a ficção.
À beira de um ataque de nervos
Nós, os portugueses, andamos tensos como um condutor parado no trânsito. E isso nota-se todos os dias. Um ministro fez corninhos no parlamento, o primeiro-ministro disse, a um deputado, “Manso é a tua tia, pá”, outro deputado surripiou dois gravadores de jornalistas como a rapidez de um carteirista da carreira 28. Até Figo, o herói nacional da coxa larga e da finta curta, foi mencionado em investigações criminais. Mesmo sem saber muito bem o que faz uma agência de rating, sentimo-nos inseguros com o que elas acham de nós. Há desemprego, cortes orçamentais, as férias de verão em Monte Gordo estão em risco. O Benfica não há meio de ser campeão e os portugueses começam a parecer-se com a personagem de Michael Douglas em “Um dia de raiva” – só precisam de um pequeno pretexto para gritar com o marido, dar um chega para lá no cão, perder as estribeiras com a rapariga do telemarketing. Falta um mês para a sessão de terapia colectiva que será o mundial de futebol. Estamos de mau humor. Só nos vale, por agora, a festa do Papa. Felizmente, a comunicação social percebeu as nossas necessidades e alimenta-nos com o helicóptero do Papa, os peregrinos bem dispostos a caminho do Papa, as hóstias do Papa, as tapeçarias que irão enfeitar a varanda do Papa. Uma das artesãs dos tapetes explicou como, ao contrário dos políticos, o Santo Padre motiva a pátria e estimula a produtividade: “Tenho orgulho porque estou a trabalhar para o Papa. Procuro fazer o meu melhor.” Nem Aníbal, nem Manuel, nem Fernando. Bento a presidente.
What the fuck?
Pearl Carter tinha 18 anos quando deu a filha para adopção. Casou-se em segundas núpcias e jamais engravidou. Procurou a filha durante 15 anos. Nunca a encontrou. Phil Bailey que, tal como Pearl, vive no Indiana, nos EUA, perdeu a mãe para um cancro. Começou então a procurar a avó materna. Conseguiu descobrir a sua morada e enviou-lhe uma carta. Depois, uma foto por email. Pearl, a avó surpresa, disse que em vez de encontrar o neto, nessa fotografia, ficou em estado de alerta: “Pensei que era um homem bonito e atraente.” O impulso de Pearl foi validado por uma amiga a quem confessou a atracção. Essa amiga baseou-se num artigo sobre a atracção genética, para explicar a Pearl que familiares que se conhecem já em adultos podem sentir uma incomum apetecência para acabar na cama. Pearl confirmou: “Desde a primeira vez que o vi, sabia que nunca íamos ter uma relação entre avó e neto”. Pela primera vez, em muitos anos, senti-me sexualmente viva”. Encontraram-se, sairam e Phil, agora com 26 anos, manisfestou o mesmo interesse. Estão juntos há quatro anos e contrataram uma barriga de aluguer para ter um filho. Pearl, que tem 74 anos, investiu 54 mil dólares das suas poupanças para pagar a Roxanne Campbell, que carregará um óvulo de uma doadora fecundado por Phil. Pearl disse: “Não me interessa a opinião de ninguém. Estou apaixonada pelo Phil e ele apaixonado por mim. Em breve teremos um filho.” Scott Fitzgerald estava enganado quando disse que não havia segundos actos nas vidas dos americanos.
quinta-feira, 6 de maio de 2010
Crónicas no jornal i
Por fim, o calor
Na terça-feira soubemos que fazia calor porque havia vestidos curtos, cabelos apanhados, nucas despidas e muito mais roupa a secar nos estendais. Sentia-se a levitação do fogo ao cruzar uma passadeira. Três cães no passeio tinham a língua ao lado no focinho, as lojas com ar condicionado eram porto seguro e o grupo de espanhóis no eléctrico transpirava como se estivesse na parte “Sol” de uma praça de touros. Ligaram-me a dizer: “Vou para a praia. E está um gajo a tomar banho no lago do parque.” A cidade estava mais vazia, tão preguiçosa como a hora depois do almoço, lânguida como sexo a meio da tarde. Mas também irriquieta: os miúdos da rua sem t-shirts, desafiantes nas bicicletas. Um rapaz com mais piercings que acne justificou a sua insuficiência tecnológica diante do grupo: “Este é da minha avó, que é que queres pá, não tenho telemóvel.” Outro, de rosário cor de rosa no peito sem pêlos, tinha a namorada pela mão. Nestas noites janta-se com as janelas abertas. Na televisão falavam da greve e das muitas pessoas que foram para a praia. Greve de transportes no primeiro dia de calor? Trinta e um graus e comboios parados? É como anunciar às crianças que é o primeiro dia das férias grandes e que haverá aviões a lançar brinquedos no areal. Quando faz calor a matéria torna-se maior, mais pesada, a música melhora, a noite demora tanto a chegar que ainda se ouvem gaivotas quando os talheres já se escutam nos pratos de jantar. Quando faz calor desta maneira só podem contar connosco para qualquer coisa que implique sentir o calor.
Retrato de Rapariga
Ela era empregada de mesa, loira, e por baixo do avental tinha uma camisola do Pablo Aimar. Duas penas vermelhas como brincos, os ténis confortáveis para suportar tantas horas em pé. Pareceu-me mais bonita assim que os clientes do bar dos artistas, no Coliseu dos Recreios, lhe deram um pouco de descanso. Sentou-se numa das mesas, tirou um cigarro e ficou a fumar, concentrada no jogo como se tivesse esperado o dia inteiro para estar ali. Com o golo do Porto voltou a distribuir copos de cerveja. Depois desapareceu. E o bar passou a ser o homem que fumava cigarros da marca Benfica – ofereceu-me um – e que martelava furiosamente as pernas no chão, nervoso como uma bola saltitona: “Nem olho pá, eu nem olho.” O Benfica empatou, era campeão, por isso ela apareceu a sorrir. Mais bonita ainda. Por pouco tempo. O Porto voltou a marcar, duas vezes, e ela manteve-se de pé, com a gravidade de uma criança amuada, distraída dos pedidos. Se por acaso o jogo parava numa falta aborrecida, ela punha-se a apanhar os copos vazios das mesas, tentando acelerar o fim de um domingo sem glória. Talvez fosse da luz, dos tectos baixos ou do fumo acumulado, mas começou a parecer-me menos bonita, com a pele oleosa e olheiras de quem precisa de uma folga. Despedi-me, a caminho do concerto, dizendo-lhe: “Tens um copo de plástico para a minha imperial?” A última vez que a vi, estava a contar as moedas da caixa registadora. Um amigo reparou na minha caneta a escrever no bloco de notas e disse: “Essa vai ser uma crónica triste.” Tinha toda a razão.
Dear miss Winehouse
Quando me contaram que tinhas sido internada outra vez, imaginei-te com um cachimbo de crack e um copo de gin, envolta numa nuvem cocainómana. Depois soube que tinha sido apenas um tropeção que resultou num corte acima do olho e num problema com as tuas novas mamas de cirurgia plástica. Não te escrevo como amigo (não nos conhecemos), nem como paizinho, aliás, dizes na canção “Rehab” que se o teu pai acha que estás bem não precisas de ser internada. Eu até concordo com o comediante Bill Hicks, que disse: “As drogas já nos deram muitas coisas boas. Se não acreditam, peguem nos vossos cds e queimem-nos, porque as pessoas que fizeram essas grandes músicas, que melhoraram as vossas vidas, estavam bastante drogadas.” Nem sequer estou preocupado que os miúdos se ponham a fumar cocaína por causa de ti – as pessoas não precisam de ídolos para se drogar, drogam-se porque querem. Mas fico aflito sempre que vejo que a droga raptou um ser humano e o substituiu por um farrapo de gente – acredita em mim, morreu-me um tio por causa da heroína. Não te peço que deixes para todo o sempre o copo de Tanqueray e alguma maluqueira tóxica. Mas ouve as palavras de outro comediante, George Carlin, cujo génio sobreviveu aos excessos: “As drogas podem ser maravilhosas, mas à medida que as consumimos, a parte do prazer diminui e aumenta a dor. Passa a ser apenas dor.” O que te quero dizer é: põe-te boa dessas costelas doridas e termina o disco que começaste a gravar. Depois, sim, podes festejar. Estraga-te um bocadinho mas, por favor, não te estragues para sempre.
Gostosa, safada, cantada
Há uns meses, uma amiga brasileira perguntou-me porque não conseguia encontrar uma canção portuguesa com “gajo”, afinal, uma palavra tão usada neste país. Consegui descobrir uma música dos Ena Pá 2000 com “gajo”, mas a pergunta da minha amiga mostrou como dois povos, que falam a mesma língua, enlaçam de forma diferente letra e música. Esta semana, na Casa Fernando Pessoa, vi o documentário brasileiro “Palavra (En)cantada”, e ouvi o guionista, Marcio Debellian, explicar como se viciou em Fernando Pessoa depois de ouvir Maria Bethânia cantar o poeta do bigode tímido. Na tela vi Chico Buarque, Adriana Calcanhotto, Lenine, Caetano Veloso, Tom Zé e tantos outros que conseguiram, com ginga, excelência e usando a música, transportar a história oral para a literatura – uma literatura cantada, sem salamaleques, vénias, comendadores, punhos de renda ou cintos de castidade. Nas músicas brasileiras as pessoas “transam” e chegam a comer-se: “Vamos comer Caetano, degluti-lo, mastigá-lo, vamos lamber a língua”, diz uma canção de Calcanhotto. No documentário, percebe-se como 500 anos de promiscuidade racial e miscigenação linguística resultaram em coisas como a Bossa Nova. Mas o filme é muito mais que um relato histórico que viaja dos trovadores provençais até aos rappers cariocas. Está cheio de palavras gostosas, cantadas, safadas, malandras, incondicionalmente enamoradas – Lenine diz que se lhe parte o coração sempre que ouve os ditongos nasais – “ão” e “ãe” – exclusivos do português. E eu digo: obrigado, Brasil, por me dares tanta fome de língua.
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