Da mesma forma que um brasileiro olhará para
o Carnaval dos portugueses com a sensação de que há algo de errado num corso
debaixo de chuva, no frio de fevereiro, em que mulatas importadas tiritam
sambas enquanto escoltadas por Cabeçudos de Torres Vedras, também um português
tem essa impressão de profundo deslocamento num Natal no Rio de Janeiro.
De certa
maneira, Vincent Vega, em Pulp Fiction, tinha razão. “A lot of the same shit we got here they got there”, ou seja, também
há uma árvore de Natal gigantesca, patrocinada por um banco, uma companhia de
seguros ou outro colosso do género, que atrai multidões e entope ainda mais o
trânsito caótico e agressivo; os shoppings
estão cheios, é difícil apanhar um táxi, há infinitas festas de empresa, filas,
multibancos sem dinheiro, um vomitar de anúncios de telemóveis e um frenesi de
compras, reuniões familiares e excessos alcoólicos e gastronómicos. Até se come
bacalhau, embora o animal fetiche para a consoada seja o chester – uma ave que
eu desconhecia e cuja popularidade me intrigou desde o início, mais ainda
porque a primeira noite de Natal que passei no Rio, desembarcado havia dias,
foi na festa do “Arrasta o chester” – conceito de uma amiga, em que, depois de
jantar com as famílias, os seus convidados levam os restos de comida e de
bebida para sua casa e, livres dos contragimentos familiares, só desligam a
música ao amanhecer.
O chester,
vim a descobrir, é uma galinha gigante e desengonçada, resultado de doze anos
de seleção artificial de uma empresa brasileira, que queria encontrar um
concorrente para o peru de uma marca rival. Hoje, o chester (sobre o qual há um
role longo de teorias da conspiração) parece ter ganho a guerra das aves no
Brasil.
E depois há
a extravagância da neve artificial com 40 graus, as musiquinhas natalícias
(aqui dize-se “natalinas”) tocadas em cavaquinho em estilo samba, dias de praia
lotada e mendigos negros com gorros de Papai Noel, catando latas do chão para
vender; anões vestidos de super-homem e de super-mulher (a sério) promovendo
uma pet-shop com megafones – um
desfilar de personagens e cenários que entretêm um português mais habituado ao
torpor do Natal lusitano, com mantas nos joelhos, overdose de comida e o coro de Santo Amaro de Oeiras na TV.
Estar longe
da família – e das conversas sobre natais antigos e o coelhinho que foi com o
Pai Natal e o palhaço, no comboio, ao circo – intensifica a estranheza que,
nesta época, aflige o emigrante, porque a saudade e a nostalgia não encaixam no
fluxo festivo da cidade. É que não se trata apenas do Natal de família – a que
estamos habituados. Por esta altura, começa o verão e as férias grandes das
escolas e universidades, faz muito calor e os dias são longos, celebra-se a
passagem de ano com dois milhões de pessoas na praia de Copacabana, dispara-se
a toda a velocidade dionísica para o Carnaval apoteótico. Enquanto o emigrante
fala no Skype com a família, perguntando se está muito frio em Portugal,
enquanto o seu bacalhau no forno eleva a temperatura do pequeno apartamento a
50 graus, o carioca está a dar o tiro de partida para mais uma temporada
estival de festa, sangue bom e bagunça erótica.
O
verão é sexy, não será preciso
invocar estudos para perceber que, na quadra natalícia carioca, aumenta a
rotação nos motéis e que, com menos roupa, mais álcool, festas e a impunidade
das férias, rola sempre, por estes dias de celebração do nascimento do Menino,
uma sacanagem extra. Já em Portugal: a consoada, avós e tios, stress festivo,
sonolência, “Sozinho em Casa” na TV, um frio de rachar na viagem da casa de
banho para a cama, enfim, vamos assumir que lascívia, libido e luxúria, não são
as L words daestação.
Há
muitos anos sonhava escapar da obrigação e da repetição natalícia, fugindo para
um país tropical. Concretizei o sonho, e talvez sejam resquícios do perene
dilema de António Variações – só estou bem onde não estou – ou então a inevitável
atração do eterno retorno, mas hoje, preparando-me para o quinto Natal
consecutivo de “Arrasta o chester”, trocava, num abrir e fechar de olhos, os
cinco minutos que demoro a chegar de casa à praia, pelas dez horas de voo até ao
cheiro das lareiras, dos pinheiros e do frio numa rua antiga que me faz falta.