segunda-feira, 24 de maio de 2010

crónicas no jornal i


Viagem no tempo

E, de repente, havia de novo o gelado Fizz de limão e o cheiro dos cromos Panini e a Praia Grande com ondas que apunhalámos durante todo este fim-de-semana, destemidos, eufóricos, como se as aulas tivessem acabado e não houvesse uma agenda de adultos até ao final de Setembro. Logo que o sol começou a descer sobre o mar, fomos outra vez miúdos a quem as consequências do álcool não importam, com o cheiro do marisco nos dedos e a efervescência das imperiais na boca. De noite saímos para a rua, uma camisa fresca que chegará a casa de madrugada, colada ao corpo e com nódoas, as mãos apertando bebidas com gelo, passa-me mais um cigarro, as ruas de Lisboa apinhadas de gente bem disposta que queria sacudir a depressão da crise e estrear a primeira noite sem uma brisa. Sandálias de mulheres bonitas na calçada, tornozelos, pernas, ombros, cinturas maleáveis na pista de dança, pássaros a amanhecer no regresso a casa, poucas horas de sono, dores existenciais curadas com o primeiro mergulho no mar e a certeza que, ao fim da tarde, estaríamos outra vez numa esplanada com manchas de sal nos músculos preguiçosos, diante da final da Liga dos Campeões, numa comunhão que talvez só os crentes religiosos conseguem. E comentários sobre o jogo, minis geladas, peixe grelhado, tudo com o mesmo empenho, a mesma certeza de imortalidade, a mesma fruição com que há anos corríamos para o homem das bolas de berlim, para a prancha mais alta da piscina, para a miúda que, depois de prender o cabelo, nos ofereceu o espanto da sua boca e nos inaugurou nos beijos com língua.

7

Numa noite de chuva no antigo estádio da Luz, junto da linha lateral, vi tudo em câmara lenta. Não foi um golo monumental, um pontapé de bicicleta. Mas lembro-me de tudo. Figo corria para disputar a bola, prestes a sair de campo, com um irlandês. Escorregou na relva molhada, deslizou de joelhos e, quando o adversário estava prestes a ganhar o confronto, Figo levantou-se, deu um toque para o lado, dobrou os rins do irlandês como quem prega uma partida, e saiu a correr. Tinha valido a pena a molha durante mais de hora e meia. Figo é agora um homem de negócios, uma celebridade internacional que toma o pequeno almoço com o primeiro-ministro. Figo, o habitante da sumptuosa cidade de Milão, disse: “Gosto muito de Portugal, dos portugueses, mas há poucas coisas que me interessam [em Portugal]”. E nós, que queríamos que ele fosse sempre o jogador que, depois de marcar um golo contra a Inglaterra, foi buscar a bola dentro da baliza, ficámos magoados ou tristes ou indignados. Nós, os portugueses, tantas vezes duros com o país, não admitimos que o façam diante de estrangeiros, tal como Michael Corleone, que disse ao irmão: “Don’t ever take sides against the family.” Mas não sejamos ingénuos. Figo não é da nossa família nem janta em nossa casa nem é o apaixonado salvador da pátria que esperávamos que fosse com a camisola da selecção. Figo é um empresário e os empresários não emocionam ninguém numa noite de chuva quando a bola estás prestes a sair de campo. Figo, lamento informar, já não é o número sete. É um homem de negócios.

Telenovela

José, homem que chegou longe na vida, era chefe de família e usava bons fatos. Nas suas viagens aprendeu, com um amigo italiano, que o último botão do casaco nunca se aperta. Um dia entrou em casa e declarou que não sabia nada sobre os boatos que o acusavam de querer prejudicar Manuela, uma habitante do prédio, que todas as sextas feiras insultava José. E quando as reuniões do condomínio investigaram a altercação, José afirmou que o queriam prejudicar. No quarto aniversário do seu casamento, antes da cerimónia da renovação dos votos, também garantiu que as contas da família estavam em ordem. Meses depois, com a segunda aliança no dedo, entrou em casa e disse que, afinal, não estavam assim tão bem e que era preciso gastar menos água e tirar os carregadores dos telemóveis das fichas – os bancos que financiavam a família tinham aumentado os juros. Também disse que não iria recorrer aos mealheiros dos filhos. Bastaram poucas semanas para que mudasse de opinião e a sua prole, contrariada, aceitou partir os porquinhos, em nome da família, a partir de Julho. José, homem de princípios fortes, não pediu desculpa. O ambiente em casa era cada vez pior. Mas José assegurou que o dinheiro para as férias não seria tocado. Dias mais tarde, a família foi informada que percebera mal (os palermas) e que era para partir os porquinhos já em Junho, incluindo o que continha o pé de meia para as férias em Quarteira. Um dos filhos perguntou: “Pai, quantos meses tem um semestre?” José respondeu: “Sete, meu filho”. Moral da novela: José tem sempre razão.

2 comentários:

Carlota Pires Dacosta disse...

Descobri hoje este blog e gostei do que li. Parabens.
:)
Carlota

Miss em cena herself disse...

Hoje só quero falar de coisas boas. Felizes. Daquelas que dispõem bem. Como os exemplos do primeiro post. Esses é que ainda me/nos fazem crer que podemos/somos (sou) feliz com coisas simples. Que as amarguras da realidade económica não esgotem esses momentos. Nem os desabafos fastidiosos de (anti)heróis.