segunda-feira, 14 de junho de 2010

crónicas no i



Rumo ao sul


Há anos que não cruzava o país de autocarro, como antes, quando no alcatrão que cicatrizava o Alentejo apertávamos os dedos nos estofos a cada ultrapassagem porque havia sempre alguém que falhava uma curva. Tínhamos a certeza que não havia no mundo viagem mais longa – uma aventura que só terminava na placa “Algarve” quando nos percebíamos perto das corridas de caricas e dos concursos de mortais para a piscina. Mas agora descer o país de autocarro é diferente. Há máquinas de bebidas no cais de partida e revistas que nos entretêm durante as duas horas e pouco (tão pouco) em que deslizamos na auto-estrada. Há ainda a babilónia linguística dos miúdos viajantes e estrangeiros, com phones brancos nas orelhas, que agora atravessam a Europa como quem vai ao pão. Há bancos de couro como num descapotável, televisões que mostram os horóscopos, um WC onde caberia uma família monoparental. E, claro, tenho sempre a mesma sorte em comboios, aviões e autocarros – a brasileira gira passou por mim mas foi a velha com cabelo de fuzileiro que ficou a meu lado: “Desligue aí o ar condicionado que não me dou bem com essa coisa.” Há, no entanto, coisas que não mudam: assim que chegamos ao destino e abandonamos o ambiente controlado da nave espacial, somos abocanhados por esse calor com cheiro de figos, capim, alfarrobas, pinhas e terra vermelha das falésias, esse calor musicado por cigarras e grilos e regadores de relva, esse calor cá de baixo, esse calor algarvio. Então, temos a certeza que somos outra vez tudo aquilo que fomos em todas as férias grandes.

Todos os nomes


No dia 4 de Abril de 1989, não valeu a Maristela Just encontrar-se na residência dos pais, no misericordioso bairro da Piedade, em Jaboatão de Guararapes, segunda cidade do estado tropical de Pernambuco, quando o legítimo marido, José Ramos Lopes Neto, de quem estava separada há dois anos, apareceu com uma arma de fogo para matar toda a família. O atacante, filho do advogado criminalista Gil Teobaldo, trancou-se num quarto com a família, disparando três vezes sobre a mulher e acertando na cabeça da rapaz (com dois anos), no ombro da rapariga (com quatro anos) e algures no cunhado, Ulisses Just, que aparecera em missão de socorro. O homicida foi detido e enviado para a penitenciária Aníbal Bruno, em Tejipió. No julgamento, que aconteceu esta semana e durou 13 horas, testemunharam Natália Just e Zaldo Neto (os filhos sobreviventes), Harlan de Andrade (policial civil), ficando por ouvir Gilson Calábria e Walter de Figueiredo Filho, testemunhas ausentes. Pela morte da mulher, o réu foi condenado, por um júri popular, a 79 anos em regime fechado. José Ramos Lopes Neto, que desapareceu há 20 anos quando lhe foi concedido um habeas corpus, também não marcou presença em tribunal embora, como disse a juíza Inês Maria de Albuquerque, tenha sido feita uma busca ao réu sem que este fosse encontrado em seu endereço. No final, a filha perguntou: “E se ele decidir terminar o que começou [há 21 anos]?” Não há motivos de alarme: José Inaldo Cavalcanti, nomeado pelo Estado para defender José Ramos Lopes Neto, explicou que jamais fora contactado pelo réu.

No fio da navalha


Fomos criados com supermodelos na imaginação erótica e conhecemos a intimidade das actrizes perfeitas no ecrã do computador. Para manter sustentável este mundo de fantasia, acreditamos na globalização da cirurgia plástica para as mulheres. Contudo, este galopante processo de uniformização da beleza feminina, com milhões de aderentes em todo o mundo, e que tanto se inspira nas modelos da “Vogue” como na actriz recauchutada da novela da Globo, está em declínio na Europa e nos Estados Unidos, país líder em número de plásticas. Em Espanha, por exemplo, as cirurgias estéticas caíram 30% por causa da crise, com destaque para as raparigas entre os 18 e os 22 anos, que recebiam correcções a bisturi como presente de aniversário. Eu sou suspeito porque ainda ontem me senti arrebatado diante de uma paragem de autocarro com a Gisele Bündchen deliciosamente passada a ferro por photoshop. E confesso que já me espantei, como um pateta durante um truque de cartas, ao encontrar implantes num decote arriscado. Mas custa-me aceitar que tantas mulheres se mutilem para serem apenas mais uma cópia, que não percebam que a homogenia não dá assim tanta ponta e que nem sempre é o maior par de mamas que faz suspirar a sala. Mesmo com a crise a ajudar, sei que será muito difícil passar esta mensagem. No Iraque muçulmano, agora com menos atentados e uma economia em crescimento, as plásticas aumentaram 50%. Os americanos, triunfadores mundiais do silicone, bem avisaram que não saíam dali enquanto não consolidassem a democracia e os valores ocidentais.

NY me mata

Bill Clegg tem cara de menino loiro bem comportado, de rapaz que chegou a Nova Iorque, do interior dos Estados Unidos, acreditando que jantar comida chinesa era uma actividade glamorosa. Mas, rapidamente, a inocência foi substituída pelo sucesso enquanto agente literário e por uma invulgar sensibilidade como leitor. Bill ajudava, como ninguém, os escritores a editar os manuscritos. Com 31 anos, sofisticado, bem pago, culto, influente, abriu a sua própria agência e levou consigo alguns dos autores mais consagrados – os mesmos que, no início de 2005, não conseguiam contactá-lo, porque Bill estava desaparecido há semanas. Os rumores espalhavam-se, em surdina, por parecerem tão escabrosos e tristes. Bill conta agora tudo no seu livro, “Portrait of an Addict as a Young Man”, uma memória desse tempo em que ficou agarrado ao crack, ao sexo com desconhecidos, e em que gastou quase 70 mil dólares a fumar cocaína em hóteis de luxo na companhia de prostitutos – “Quero o esquecimento desfocado dos corpos em colisão durante o sexo”, diz no seu livro. Tudo acabou com um frasco de comprimidos para dormir, menos 20 quilos no corpo, e o colapso de uma existência, uma empresa, uma relação amorosa de oito anos. Bill entrou numa clínica, voltou a cair – vendeu uma fotografia de 20 mil dólares – mas há cinco anos que não consome. Foi contratado para uma das melhores agências literárias da cidade. Os seus antigos escritores foram com ele. Recebeu um adiantamento de 350 mil dólares pelas suas memórias. Nova Iorque mata. Mas também ressuscita.

Gorilas em Fiji

Os jornais diziam que o exército de Israel atacara, em águas internacionais, barcos que transportavam ajuda humanitária para Gaza. Morreram entre dez e 19 pessoas. O meu cérebro reagiu, lembrando-se de uma frase, no livro “The pugilist at rest”, do americano Thom Jones. Tive de procurar o livro, depois o parágrafo no qual o narrador afirma que a consciência dos gorilas é uma consciência do aqui e do agora, sem necessidade de guerra ou tortura, e que não é assim tão difícil aos seres humanos alcançarem esse estado – basta beber cinco martinis dentro de uma banheira de água quente. Por fim, encontrei a frase que procurava: “Leiam os jornais e percebem o que digo. O comportamento humano, 98% das vezes, é abominável.” Fui ler os jornais, como manda o narrador: “Acusado de engravidar filha surda”, “Bebé sofre queimaduras solares por desleixo dos pais”, “Mais de 145 mortos num atentado em Bengala”, “Acusado de espancar enteado de quatro anos é agredido por colegas de cela”, “Noivas criança escapam a casamento mas não a chicotadas”, “BP admite que o petróleo pode jorrar durante meses”, “Ditador Mugabe paga um milhão para ver o Brasil jogar”. Esta é uma pequena amostra da minha busca. Não devia surpreender-me, o narrador tinha avisado: “Os gorilas são felizes. Não precisam de ténis New Balance ou um Jaguar. Não há um gorila que tenha o desejo de violar ou assassinar.” Há dias em que, por mais fé que tenha na raça humana, só me apetece imitar o narrador: “Há uma série de ilhas desertas em Fiji. Eu e os meus cães vamos dar uma de Robinson Crusoe.”

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