sábado, 19 de junho de 2010
O Homem Duplicado
José Saramago, com ofício de escritor, passou na esquina da Spring com a Greenwich, em Nova Iorque, numa tarde de 2002, quando o empregado Hugo Gonçalves, com o restaurante vazio, lia o romance “Money”, de Martin Amis. O rapaz levantou a cabeça sem nenhum motivo que o justificasse e, enquadrado na porta, no outro lado da rua, descobriu o escritor. Hugo saiu e estendeu-lhe a mão. O escritor perguntou o que fazia o rapaz naquela cidade. O que importa mencionar dessa conversa é aquilo que, por pudor e bom senso, o rapaz não disse (que andava a escrever o seu primeiro romance e que podia prová-lo com as notas guardadas atrás do balcão). Quatro anos depois, Hugo Gonçalves, cliente de um restaurante em Madrid, esperava o seu hambuguer e lia uma revista. Mais uma vez, levantou a cabeça sem nenhum motivo que o justificasse, e através da porta encontrou o escritor. Saiu para a rua de mão estendida, arriscando mencionar a coincidência – dois portugueses, duas cidades, dois restaurantes, duas esquinas. Não referiu, claro, e ainda bem, que tinha publicado o tal romance. “Senhor Saramago, eu também escrevo”, foi frase que não se disse naquela esquina. Desses encontros, há um exemplar de “Money” com a assinatura de Saramago e a sensação que o acaso dos eventos em Nova Iorque e Madrid podia ser a premissa de um romance. Não foi, nem será. Ficou por dizer: Senhor Saramago, eu também escrevo, e a si cabe-lhe alguma responsabilidade. Depois de ler um dos seus livros, pensei: “Quero saber como se faz isto tão bem”. Prometo-lhe que continuarei a tentar.
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