segunda-feira, 28 de junho de 2010

Noite em branco, reportagem publicada na Index, revista do i


Um homem que sai sozinho à noite, com calças brancas, não pode recusar a bondade dos estranhos. É por isso que estou na rua, entre espanhóis que me oferecem bebida, comida e cigarros. Começo a ficar menos consciente da minha roupa de primeira comunhão porque eles, tal como eu e outras quinze mil pessoas, se vestiram de branco para entrar na festa Sensation White, no Pavilhão Atlântico. Samuel Prieto é o líder do grupo de andaluzes. Tem o peito largo, o cabelo com gel, uns óculos escuros pendurados na gola da t-shirt. Quero fazer-lhe perguntas mas Samuel não descansa enquanto não mastigo a tortilha de batatas da sogra. E faz piadas: “A minha sogra é uma grande tortillera” – em castelhano tortillera também quer dizer fufa. Os espanhóis chegaram de Huelva. Têm três geleiras com comida e um bar na carrinha estacionada ao lado do Pavilhão. O rádio toca música electrónica para quem passa, como num arraial – a batida é um coração gigante a pulsar nos tímpanos. Depois de mandar a namorada servir-me uma dose (dupla) de rum, Samuel diz: “Gastámos 200 euros por cabeça, incluindo o bilhete, que custou 65, eu gastei 400 porque paguei a parte da minha namorada.” Não há crise económica em Huelva? “Tenho uma empresa de ar condicionado num sítio onde faz muito calor.” Samuel pergunta se quero outra bebida.

Em Huelva, dizem, não há tanta variedade de gente, nem aparecem Dj’s de primeira linha. “Não há afluência [de pessoas]”, conta Samuel. Olho para a roupa e atitude de uma das miúdas espanholas, com óculos de massa, que podia ser estudante de belas artes em Berlim, e percebo que a globalização é um facto consumado. Huelva pode não ter festões cosmopolitas, mas tem internet. Só o sotaque andaluz, tão sibilado como uma lâmina na pedra do amolador, denuncia as origem dos viajantes. Eles podem ser de Huelva, mas apresentam-se como num vídeo clip. O que procuram? “Pasarlo bién”, respondem. Ou seja, curtir largo. Grato ao meu anfitrião, ofereço-lhe um cigarro. Samuel, o macho alfa generoso, diz: “Obrigado mas não fumo lights”, e saca de um Malboro a sério. Já começou o espectáculo de abertura e a nave mãe chama os seus discípulos. Há filas para entrar.

Estou no salão vip delux como num céu almofadado, envolto na gaze branca com que o rum duplo embrulhou o meu cérebro. Tudo é branco e vasto e cruzo-me com meninas de calções curtos e asas de anjo prateadas. Têm ancas estranhamente magras e pernas longamente jovens. Pergunto-me sem têm idade legal para estar ali (“Lolita: a ponta da língua fazendo uma viagem de três passos pelo céu da boca, a fim de bater de leve, no terceiro, de encontro aos dentes. Lo. Li. Ta.”) Tem lógica. O tema da festa, “Wicked Wonderland”, mistura sonhos infantis, alusões ao País das Maravilhas, borboletas, fatos teatrais, cintos de ligas e uma ou outra prática de dominação – mais tarde, no palco, bailarinas irão passear outras bailarinas pela trela.
Saio da calma vip (ainda é muito cedo) e enfio-me pelos túneis brancos, piso alcatifa branca, e entro por fim na escuridão momentânea da pista de dança principal. Depois as luzes acendem-se, o som é poderoso, o cenário imperial. O espectáculo está no palco, no centro da pista. Milhares de pessoas de branco dançam viradas para o Dj. Lisa Stutterheim, mulher do criador da festa, tinha razão quando disse: “Não é uma rave, é um cruzamento entre um concerto, o Cirque Du Soleil e um evento de dança.”

Embora com roupa da mesma cor, todos os participantes querem ser diferentes, saciando na pista a necessidade humana e contemporânea que ordena: sintam-se parte de alguma coisa comum mas desenvolvam uma identidade distinta. Esta é a tribo Sensation White: irmãos de branco durante algumas horas, fiéis da música electrónica, seguidores de Dj’s celebridades, hedonistas imediatos, dançarinos furiosos, sedutores à espreita, exibicionistas aperaltados, utilizadores do corpo com claras noções dos benefícios do pecado, cada um sentido-se singular e contrariando as certezas de Tyler Durden: “Não és especial. Não és um floco de neve bonito e único.”

Fuck Tyler Durden – as pessoas na pista não vieram ouvir sermões. Vieram, já se sabe, para curtir. Este é o nosso coliseu romano. Não matamos cristãos nem aplaudimos gladiadores. O espectáculo agora somos nós, o nosso corpo a subir com a música, o culto do eu e dos acessórios de moda: rapazes de t-shirt de alças com lentes de contacto que imitam os olhos dos vampiros, um homem de saias brancas e cabelo de Jesus Christ Super Star, negros com máscaras venezianas brancas, milhares de óculos escuros, a ocasional Monica Selles com roupa de jogar ténis, o rapaz com chapéu de basebol largo na cabeça e atitude de gangster rapper, as duas miúdas que posam uma para a outra, as duas miúdas que se beijam na primeira de várias cenas girl on girl. E para que tudo seja mais especial e memorável, há sempre telemóveis levantados entre a multidão para filmar o palco, os fogos de artifício, a própria multidão aos gritos.

Horas mais tarde, no camarote presidencial, olho para a pista, lá em baixo, e percebo que há tanto de ritual, na forma como milhares de pessoas dançam em redor do altar do Dj, como nos milhões de muçulmanos que todos os anos, vestidos de branco, dão sete voltas a Kaaba, em Meca. André Resende, 30 anos, um dos sócios da Hype, empresa portuguesa responsável por trazer a festa para Lisboa, explica-me o mito fundacional da Sensation White: “O irmão do criador do conceito tinha morrido umas semanas antes da primeira festa. Ele não sabia se cancelava ou não mas decidiu que podia homenagear o irmão se fossem vestidos de branco. É uma forma de recordar o irmão todos os anos.” Essa festa de estreia aconteceu em 2000, em Amesterdão, com 20 mil pessoas no estádio do Ajax. Dez anos mais tarde, a Sensation White acontece também na República Checa, Espanha, Bélgica, Polónia, Alemanha, Chile, Brasil e Russia. André diz que o espectáculo, que dura oito horas, custou cinco milhões de euros a desenvolver. Depois os holandeses vendem-no para diferentes cidades. Duncan Stutterheim, o tal fundador, dono da empresa ID&T, é um dos homens mais ricos da Holanda.

Pergunto quanto custa uma mesa no vip deck, mesmo ao lado do camarote presidencial. André diz: “Três mil e quinhentos euros, para oito pessoas, com direito a oito garrafas.” Quem costuma reservá-las: jogadores de futebol que trazem os amigos de infância, empresas que gostam de mimar os clientes. Durante a noite, há quem compre mais garrafas para as mesas (150 euros) e ofereça 50 euros de gorjeta às empregadas giras. André também me explica, com entusiasmo pelas coisas mecânicas, como funciona a esfera que faz rodar o palco – os amigos alcunharam-no de “Tetris” por estar sempre a organizar geometricamente os objectos em cima da secretária.

Estica o braço para os ecrãs gigantes, para o filme que passa entre a mudança de Dj’s: “É a história de uma miúda, meio inocente, que vai abrindo portas até encontrar o caminho. Em cada porta há um tipo de música diferente, no fim está com outra mulher, vestida de cabedal preto” – nunca uma metáfora pareceu tão adequada para o que acontece durante a noite. Saímos de casa engomados, cheirosos, imaculados, acreditando nas surpresas do caminho, abrindo portas, e acabamos corrompidos, com os sapatos sujos, a roupa colada na pele, o corpo gasto. Não nos enganemos, as pessoas saem à noite para se comerem. Não se trata apenas de sexo, não é isso – pode ser o flirt com os empregados de bar, podem ser os sapatos de salto agulha, pode ser a vontade que gostem de nós, pode ser o jogo da caça, pode ser a dança da namorada que activa o desejo numa relação que dura há sete anos. A noite é uma forma de strip-tease: as pessoas ficam mais acesas, mais vulneráveis na carne, menos domesticadas. E não é por acaso que as meninas que vendem senhas de bebidas têm todas a mesma t-shirt com um decote acentuado ou que as bailarinas no palco estão vestidas como se para acompanhar a excentricidade de Lady Gaga, a rebeldia sexual de Madonna ou as ancas maleáveis de Shakira. O sexo vende, cativa e deslumbra. Quem disser o contrário, na Sensation White, é tolo.

Tudo isto parece evidente para Fred, rapaz educado e de boas maneiras, ex-habitante de outros países, conhecedor de festas internacionais, que sabe que a cumplicidade entre homens se constrói, tantas vezes, a falar de mulheres. E no salão vip delux há muitas mulheres bonitas, celebridades da televisão, meninas betas e de solário, agentes provocadoras por uma noite. Fred diz, com discrição: “Olha aquela”. E, no meio de tantos vestidos curtos e saltos altos, entre pernas morenas e tonificadas, na confusão apetecível de penteados e lip gloss, torna-se difícil identificar a escolhida de Fred, que acrescenta: “É aquela, com as orelhinhas de coelho na cabeça”. Quando lhe pergunto o que acha da festa, ele responde: “É elevar a rambóia de Lisboa a outro patamar.” Resolvo acompanhá-lo no caminho para a pista principal. Ele diz a frase de ordem das noites de dança: “Embora lá para o meio”. Quanto mais perto do Dj mais perto do centro do prazer. Depois perdemo-nos um do outro.

Desde segunda-feira que André Resende dorme num hotel para estar mais perto do pavilhão. Tem poucas horas de sono e ainda que confesse que, ao ver-se de branco, no espelho do quarto, tenha pensado, “Olha o Mickael Carreira”, o casaco e os ténis Converse parecem o uniforme de um empresário da noite de Miami. Desloca-se pelo pavilhão numa trotinete, falando com os colaboradores que precisam de ajuda, sendo parado a cada cinco metros por amigas, conhecidos, funcionários, um careca de gigantes olhos azuis, com pele bronzeada e músculos de legionário no deserto, que mais tarde me dirá: “Esta festa devia ser todas as semanas”.

Cruzamos as entranhas do pavilhão, onde o público não tem acesso, passamos por tubos e empilhadoras, até que entramos numa pequena sala onde um homem gordo escuta as comunicações de rádio. Diz que alguém precisa de uma acreditação. André, o solucionador dos problemas, trata disso e explica-me que tencionava simplificar as coisas desde o início: “Só queria três tipos de pulseiras para as diferentes áreas, mas não conseguimos. Há 16 pulseiras e três acreditações.” O rebanho de quinze mil pessoas precisa de ser distribuido e arrumado. É um monstruoso processo de organização.

Mas por que vem esta gente toda para aqui, dançar, vestida de branco?, pergunto. E André responde: “O que a nossa geração quer é pão e sensations”, e solta uma gargalhada, sabendo que aquilo que disse está entre o slogan de refrigerante e a análise sociológica. Por fim, abandona a trotinete e leva-me para o salão vip. Não nos voltaremos a ver.

Tanto na pista principal como nas áreas vip uma coisa é certa: hoje, os portugueses cuidam mais da aparência. Os espectáculos com passadeira vermelha, trasmitidos na televisão, as revistas de moda, as fotografias de famosos, as lojas globais de roupa, serviram para apurar o estilo. Esta é a geração que nasceu em democracia e para quem a liberdade é também uma autorização para usar o corpo como bem entender, sem restrições morais, com voracidade – seja através do sexo, das drogas, do álcool, da dança, da roupa com etiqueta de marca. Não há, nesta festa, a sensação apocalíptica do fim de uma era, como se o império da boa vida estivesse próximo do fim. Duvido que na pista alguém pense que os salários irão mesmo baixar, que o modelo social europeu corre perigo ou que as pensões de reforma e as noites de dança estão em risco. Este tipo de festas já faz parte do estilo de vida, como o Natal, as férias de verão, o décimo terceiro mês. São um direito adquirido. Este não é um lugar para a austeridade, é um escape para o excesso.

Já a caminho da saída, encontro um dos espanhóis, de língua alcoolizada, mas ainda capaz de dizer: “Perdi-me dos meus amigos, é impossível achar alguém aqui, estão todos vestidos de branco.” São quatro e meia da manhã, a sobriedade e o cansaço empurram-me para a rua, onde os prédios do Parque das Nações se acumulam como legos mal amanhados, símbolo do mau gosto e da opulência de outros tempos. Não há nenhum prenúncio de austeridade – o que a nossa geração quer é pão e sensations. Vejo uma luz verde, estico o braço no ar, não preciso sequer de gritar a palavra mais importante no fim de uma noite: táxi.

1 comentário:

Mónica disse...

quase tinha vontade ir. saciaste-a