segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Duas crónicas de outono


Fado de Outono

Na praça da cidade montam um carrossel e cruzo-me com os miúdos pequenos nalguma visita de estudo, as professoras atentas como sentinelas de uma manada de crias, dois a dois e de mãos dadas, a idade de quem acabou de perder os dentes da frente, uma daquelas tardes sem cor no céu e com o vapor de transpiração infantil nas janelas embaciadas da sala de aula, exactamente como quando na segunda classe a Sónia de olhos azuis e franja de escandinava estragou uma das minhas canetas de feltro molin – logo a vermelha, num estojo de 12. Quando fosse grande como o meu irmão, dizia a minha mãe, receberia um estojo de 48 canetas que parecia um órgão com teclas a tripar LSD. Sónia, se te dei um pontapé na canela foi porque gostava demasiado de ti – quando fazias um desenho a ponta da tua língua equilibrava-te, apertando-se entre os lábios cor de melancia sem sementes. Sónia, se fui mandado para a rua e te deixei a chorar, foi porque desde o primeiro período da Infantil que queria encostar a minha boca nas tuas bochechas cor-de-rosa, tão quentes e pegajosas como a sala de aula naquela tarde, e tu nunca sequer suspeitaste. Sónia, agora que passou tanto tempo, agora que os outros miúdos estão no recreio e nós de castigo, presos na idade adulta, não chores mais porque o rimmel que usas não é à prova de prantos. Sónia, não podia ser mais importante: deixa que a minha boca sinta a tua pele de fim de tarde e prometo-te que um dia vou ter um estojo com 48 canetas de feltro. A vermelha é para ti.


Comer, odiar, amar

O homem mastiga um panado como quem aspira a saliva por um tubo no dentista. O barulho húmido da carne de porco roça nas gengivas. Penso: um porco a comer um porco. Mais tarde, bebe um café coberto por espuma de leite. O seu bigode assemelha-se a natas pegajosas boiando na caneca. No final, palita os dentes, uma actividade que deveria ser tão solitária como espremer pontos negros. Noutro sítio, noutro lugar, ela tinha olhos de praia e a primeira vez que nos sentámos fazia calor. Por vezes, ela deixava a colher descansar sobre a língua, a boca fechada, o gelado derretendo no calor da saliva silenciosa. Ela era tão doce e suave e necessária como um cone de bolacha com morango e limão. Comer junto de outras pessoas pode ser incómodo ou reconfortante, asqueroso ou lascivo, mau para os nervos ou bom para o caminho da paz. Se um dos meus irmãos se punha a molhar o pão com manteiga no café com leite eu odiava-o, sugeria que o dessem ao Homem do Saco. Mas, muitos anos mais tarde, se a filha dela, que também tinha olhos de praia, se punha a comer bolo de chocolate como quem esfrega protector solar na cara, eu tinha um ataque de riso e queria apertá-la contra mim. Diz o senso comum e os manuais de auto-ajuda que só odiamos ou amamos aquilo que realmente nos importa. Comer não é apenas abastecer o corpo. E o estômago, acreditem, pode ser muito mais sensível que o coração. Felizmente, há sempre a esperança que para cada comedor sonoro de suínos panados haja uma miúda de cabelo amarelo com uma máscara de chocolate.

1 comentário:

JNAS disse...

Muito Bom ! Descobri na Antena 3.
Reproduzi aqui :
http://www.ilhas.blogspot.com/
JNAS