terça-feira, 23 de novembro de 2010

Triologia de crónicas numa semana estranha


Filme noir

Ray Cortese chegou a Lisboa uma semana antes do prazo de execução do contrato. O agente dera-lhe as indicações do serviço. Ficaria num quarto de pensão na Praça da Figueira, levantaria a encomenda numa pastelaria do Martim Moniz, não frequentaria mulheres ou copos de whisky. Ray Cortese: filho de emigrantes portugueses em Newark, duas comissões no Iraque como atirador especial, inclinação para apostar em cavalos errados, amigo de agiotas e strippers latinas. Para pagar as dívidas e a hipoteca da casa dos pais começou a trabalhar com um agente de Long Island. Este era o primeiro trabalho fora de fronteiras e escolheram-no por causa do seu português de segunda geração: "Bom noite, querer saber casa de fados. Ya know, Amália and Marceneiro." Ray crescera a ouvir o pai a cantar a "Casa da Mariquinhas". O agente tinha-lhe dito: "Não uses esse teu chapéu de Boggart, dá muito nas vistas." Em Lisboa, por causa da cimeira, havia mais polícias que mulheres bonitas. Na noite antes do serviço, Ray foi ouvir fados e acabou na cama com Rosa Maria, fadista galdéria e amante de turistas generosos. Quando acordou ela já não estava. E a encomenda com balas e silenciador também não: "Fucking cunt from hell." Mas ela apareceu minutos depois com o pequeno-almoço: "Não faças o que te mandaram fazer." Hoje há um chefe de Estado que deve a vida a uma fadista. O que poderia ter sido um atentado transformou-se num casamento marcado para o dia de Santo António. Ray e Rosa vivem numas águas-furtadas na Pena. Talvez sejam felizes para sempre.

Filme noir II

Amável de Jesus, polícia na cidade de Lisboa, acordou quando os candeeiros públicos ainda iluminavam a rua e apanhou o autocarro. No primeiro dia da cimeira da Nato, vestido com um colete laranja por cima da farda, viu passar o trânsito mas nenhum dignitário internacional. Amável de Jesus: detentor de um coração amarfanhado e abandonado pela fadista Rosa Maria, leitor de jornais desportivos, comedor solitário da sopa do dia numa casa de pasto, cidadão que não conseguia perceber os mercados internacionais, os gastos chupistas do governo da Madeira ou a antecipação da entrega de lucros, por parte de grandes empresas nacionais, a fim de fugirem ao aumento de impostos no próximo ano. No final do turno, Amável regressou ao apartamento sem cortinados ou aquecimento central e meteu uma lasanha congelada no forno. Seria um fim-de-semana sem jogo do Benfica e, com a televisão escangalhada, não podia sequer ver as séries de polícias - em tempos, por causa de um Sherlock Holmes televisivo, Amável sonhou ser detective mas acabou a ver passar carros na estrada com um apito na mão. Nessa noite, metido nos lençóis que pareciam feitos de granito, mandou um sms a Rosa Maria. Ela não respondeu. De manhã não foi trabalhar. Em vez da farda vestiu roupa preta e foi juntar-se a uma manifestação anti-qualquer coisa. Os seus colegas de profissão não o reconheceram. Não houve bastões castigadores nem cocktails molotov nem nada que pudesse compensar o seu anonimato aborrecido. Voltaria a ser polícia. E o dia seguinte seria igual a todos os outros dias.

Filme noir III

Fátima Libério começou a guiar o táxi quando uma embolia cerebral congelou metade do marido, taxista e poeta popular, deixando-o a comer papas diante da televisão a preto-e-branco do quarto. No táxi, Fátima ouvia as notícias na rádio, telefonava para os fóruns, contava muitas vezes como a sua mãe distribuíra cravos na manhã de 25 de Abril de 1974. No primeiro dia da cimeira da NATO, Fátima sentiu uma pontada nos rins, apanhou menos clientes e foi mandada parar por um polícia que, embora se tivesse apresentado como Amável de Jesus, lhe passou uma multa porque um passageiro fumava dentro do táxi. Fátima disse ao polícia: "Não me faças ir para a rua gritar." Fátima: um ventre danificado e sem filhos, lavadora de escadas e vendedora de rissóis para fora durante anos, ia ao cabeleireiro uma vez por mês, fazia umas iscas de prémio gastronómico mas não tinha audiência, o marido não podia mastigar. Nos dias da cimeira o taxímetro trabalhou pouco. O negócio estava mau. E os boletins meteorológicos da contestação anunciavam uma greve geral. Nem metro, nem autocarros, nem comboios. "Mais pessoas a apanhar táxis", dizia a minoria de taxistas-copo-meio-cheio, gente que ainda não sofria de amargura ou hérnias discais. Mas Fátima não quis aproveitar a oportunidade. No dia da greve deu banho ao marido, foi ao cabeleireiro pela segunda vez em 30 dias e deixou o táxi parado. Foi para a rua gritar. Mesmo em crise, há coisas que o dinheiro não compra

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