Heat. This
is what cities mean to me.
Don Delillo
O primeiro dia do ano no Rio de Janeiro teve
uma sensação térmica de 45 graus. Às oito da manhã os termómetros de rua
piscavam o número 30 e um mergulho ou um duche – tépido, pois a água, aquecida
pela transpiração dos canos, tem a temperatura e a viscosidade do sangue – eram
a única forma de abrir um buraco de frescura no manto incendiário que cingiu a
cidade. Não é um calor de férias, lúdico, de alívio aos rigores do inverno, mas
um calor urbanita e opressor, que emana dos pneus e dos motores e das pessoas,
um calor bufado pelos escapes dos ônibus e pelo desespero dos que vão lá
dentro; um calor que pinga dos aparelhos sanguessugas de ar condicionado nas
fachadas dos prédios; um calor que se instala no esqueleto dos apartamentos e,
sem a oposição de uma brisa ou do desafogo da chuva, vai ganhando poder,
apertando o cerco, chupando o oxigénio, desacelerando as ventoinhas, cujas pás,
incansáveis durante dias, parecem agora fatiar a atmosfera com a indolência de
um funcionário que desatou o nó da gravata e decidiu sair mais cedo.
Com
o calor há mais mulheres esbofeteadas e maridos envenenados; puxa-se mais
facilmente da faca e da pistola; a espera no trânsito empurra-nos para uma
condição bovina, não uma placidez estival e balnear, mas a sensação de que
caminhamos nervosa e lentamente para o matadouro. E há o ruminar contínuo dos
aparelhos elétricos, geradores, ventoinhas, arcas congeladoras, um exército de
máquinas que se alimenta de calor para reduzir o calor. Os computadores
sobreaquecem e estafam como cavalos no deserto. Os frigoríficos roncam e
estalam a toda a hora num esforço frustrado – a água não gela e a melancia está
morna. O calor desprende-se e aninha-se em todas as superfícies, emana da
sombra e até da água, refugia-se nas copas das árvores que, chicoteadas
inclementemente pelo sol, parecem prestes a pegar fogo. O mormaço ondula sobre
a areia, no horizonte, nos contornos dos edifícios, e à noite, aproveitando a
ausência da chuva e do vento, ocupa todo o espaço, alimentando-se do fervor
elétrico da cidade e aglomerando forças para o dia seguinte.
Não
há alívio que dure. É preciso uma logística para debelar o calor. Vários
duches. Mergulhos apenas ao amanhecer e ao anoitecer porque encontrar um espaço
vazio na praia apinhada é como jogar Tetris no nível mais difícil; e porque nem
o oceano ou as camadas de creme protetor impedem que a pele crepite e se
inflame. Em casa, as ventoinhas estão dispostas estrategicamente após um estudo
de circulação do ar e são movidas de divisão consoante as atividades
domésticas. Sair à rua entre as onze da manhã e as quatro da tarde implica
avaliar a distância dos percursos percorridos a pé e contar com o abrigo
temporário das lojas com ar condicionado. As mulheres usam guarda-chuvas como
sombrinhas, há mais homens em tronco nu, é sempre preciso dar mais uma
chuveirada no cão e respeitar o espaço físico da pessoa com quem vivemos. O
calor dos trópicos tem uma conotação positiva e instigadora do romance. Mas
este tipo de calor – acachapante, impaciente, revoltoso – impede qualquer tipo
de toque que dure mais de alguns segundos.
No
ensaio Three uses of the knife, o
dramaturgo David Mamet escreve: “O estado do tempo é algo impessoal. Percebemos
isso, e aproveitamo-nos disso com finalidades dramáticas, isto é, construímos
um enredo de forma a encontrar o seu significado para o protagonista, ou seja,
nós mesmos.”
O calor, a
chuva, o frio, o sol, os dias nublados, têm um influência indelével no nosso
comportamento e nos nossos ânimos, da mesma maneira que servem para projetar a
nossa narrativa – onde estamos e como vemos o que nos rodeia. Por isso, a
simples possibilidade de uma trovoada e de uma chuvada ao fim da tarde é
debatida e desejada em conversas de esquina e mesas de boteco como se fosse uma
solução para todos os problemas da cidade e da vida.
Este calor
fere e enfurece, deixa-nos lassos, na iminência da rendição incondicional. Este
calor funde o cérebro e as articulações, aplica-nos a tortura do sono e
rouba-nos a fome. Neste enredo, o calor só pode ser o némesis, implacável e
omnipresente na resistência física que oferece de cada vez que tento lascar a
humidade, sentindo no corpo inteiro o mesmo ardor de quem se submerge numa banheira
de água quente. O calor, afinal, é o principal culpado pela incontrolável
propensão de estar, por estes dias, muito menos envolvido com a humanidade.