terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O calor, crónica publicada no Diário de Notícias





Heat. This is what cities mean to me.

Don Delillo


O primeiro dia do ano no Rio de Janeiro teve uma sensação térmica de 45 graus. Às oito da manhã os termómetros de rua piscavam o número 30 e um mergulho ou um duche – tépido, pois a água, aquecida pela transpiração dos canos, tem a temperatura e a viscosidade do sangue – eram a única forma de abrir um buraco de frescura no manto incendiário que cingiu a cidade. Não é um calor de férias, lúdico, de alívio aos rigores do inverno, mas um calor urbanita e opressor, que emana dos pneus e dos motores e das pessoas, um calor bufado pelos escapes dos ônibus e pelo desespero dos que vão lá dentro; um calor que pinga dos aparelhos sanguessugas de ar condicionado nas fachadas dos prédios; um calor que se instala no esqueleto dos apartamentos e, sem a oposição de uma brisa ou do desafogo da chuva, vai ganhando poder, apertando o cerco, chupando o oxigénio, desacelerando as ventoinhas, cujas pás, incansáveis durante dias, parecem agora fatiar a atmosfera com a indolência de um funcionário que desatou o nó da gravata e decidiu sair mais cedo.
                Com o calor há mais mulheres esbofeteadas e maridos envenenados; puxa-se mais facilmente da faca e da pistola; a espera no trânsito empurra-nos para uma condição bovina, não uma placidez estival e balnear, mas a sensação de que caminhamos nervosa e lentamente para o matadouro. E há o ruminar contínuo dos aparelhos elétricos, geradores, ventoinhas, arcas congeladoras, um exército de máquinas que se alimenta de calor para reduzir o calor. Os computadores sobreaquecem e estafam como cavalos no deserto. Os frigoríficos roncam e estalam a toda a hora num esforço frustrado – a água não gela e a melancia está morna. O calor desprende-se e aninha-se em todas as superfícies, emana da sombra e até da água, refugia-se nas copas das árvores que, chicoteadas inclementemente pelo sol, parecem prestes a pegar fogo. O mormaço ondula sobre a areia, no horizonte, nos contornos dos edifícios, e à noite, aproveitando a ausência da chuva e do vento, ocupa todo o espaço, alimentando-se do fervor elétrico da cidade e aglomerando forças para o dia seguinte. 
                Não há alívio que dure. É preciso uma logística para debelar o calor. Vários duches. Mergulhos apenas ao amanhecer e ao anoitecer porque encontrar um espaço vazio na praia apinhada é como jogar Tetris no nível mais difícil; e porque nem o oceano ou as camadas de creme protetor impedem que a pele crepite e se inflame. Em casa, as ventoinhas estão dispostas estrategicamente após um estudo de circulação do ar e são movidas de divisão consoante as atividades domésticas. Sair à rua entre as onze da manhã e as quatro da tarde implica avaliar a distância dos percursos percorridos a pé e contar com o abrigo temporário das lojas com ar condicionado. As mulheres usam guarda-chuvas como sombrinhas, há mais homens em tronco nu, é sempre preciso dar mais uma chuveirada no cão e respeitar o espaço físico da pessoa com quem vivemos. O calor dos trópicos tem uma conotação positiva e instigadora do romance. Mas este tipo de calor – acachapante, impaciente, revoltoso – impede qualquer tipo de toque que dure mais de alguns segundos. 
                No ensaio Three uses of the knife, o dramaturgo David Mamet escreve: “O estado do tempo é algo impessoal. Percebemos isso, e aproveitamo-nos disso com finalidades dramáticas, isto é, construímos um enredo de forma a encontrar o seu significado para o protagonista, ou seja, nós mesmos.”
O calor, a chuva, o frio, o sol, os dias nublados, têm um influência indelével no nosso comportamento e nos nossos ânimos, da mesma maneira que servem para projetar a nossa narrativa – onde estamos e como vemos o que nos rodeia. Por isso, a simples possibilidade de uma trovoada e de uma chuvada ao fim da tarde é debatida e desejada em conversas de esquina e mesas de boteco como se fosse uma solução para todos os problemas da cidade e da vida.
Este calor fere e enfurece, deixa-nos lassos, na iminência da rendição incondicional. Este calor funde o cérebro e as articulações, aplica-nos a tortura do sono e rouba-nos a fome. Neste enredo, o calor só pode ser o némesis, implacável e omnipresente na resistência física que oferece de cada vez que tento lascar a humidade, sentindo no corpo inteiro o mesmo ardor de quem se submerge numa banheira de água quente. O calor, afinal, é o principal culpado pela incontrolável propensão de estar, por estes dias, muito menos envolvido com a humanidade.



Barba rija, crónica publicada no Diário de Notícias




É um tema sério, mas talvez os responsáveis pela criação de tendências não tenham compreendido ainda a relevância da barba na história pessoal de cada homem, continuando a inventar novos tipos de macho – depois dos metrossexuais, os lumbersexuals, com barbas fartas e camisas de lenhador –, não entendendo o determinismo selvagem e a inevitabilidade masculina (não uma moda, não um acessório ou um gadget) de ter pelos na cara.
                O primeiro contacto com as pelosidades faciais pode ser traumático. Um buço púbere jamais é celebrado com o mesmo entusiasmo que os pelos púbicos. Enquanto o despertar da vida abaixo do trópico do umbigo é usado como uma medalha ao peito, o aparecimento de uma penugem mansa sobre o lábio superior costuma ser objeto de chacota dos pares e de nojinho por parte das raparigas – quem é que quer beijar um Cantiflas pubescente? Há quem não aguente a pressão e use, antes do tempo certo, a lâmina do pai, ignorando todos os ensinamentos e maldições que garantem que um pelo rapado hoje regressa amanhã com a determinação hirsuta dos lobisomens.
                E há a importância do ritual, as diferentes técnicas passadas de pai para filho, quem esconhoa e quem desliza a lâmina na direção do pelos; a água quente para abrir os poros, o pedacinho de papel higiénico para estancar um corte, a água fria e as chapadas nas bochechas para encerrar o processo. Esta manifestação diária vai mais além da biologia e da higiene pessoal – faz parte do relicário do género masculino, como os livros de detetives que usam chapéu, “O Padrinho” de Coppola, Muahammad Ali no ringue ou a possibilidade de urinar em pé. O ritual é tão importante que resolvi ser oldschool e pus a minha jugular à disposição de um barbeiro, que manobrou uma navalha das antigas – como o meu avô usava – com a precisão de um espadachim e me fez sentir mais Ricky Blane circa 1942 e menos anúncio da Gillette.
O processo diário de fazer a barba oferece-nos ainda um instrumento metafísico: o enfrentamento com o eu, o nosso reflexo no espelho, as olheiras culpadas da ressaca, o vinco de preocupação na testa que nenhum botox desenrugará. Um ritual intímo, no entanto, bastante explorado cinemática e literariamente; uma liturgia que, apesar de repetida tantas vezes, ainda nos faz perguntar “afinal, quem és tu?”   
                Muito se pode saber sobre um homem se tivermos em conta a sua barba. Três dias sem uma lâmina pode ser descuido, mas também pode ser modelo de anúncio de cigarros. Até no “conflito de civilizações” a barba desempenha um papel. No seu livro “Generation Kill”, Evan Wright conta como os marines que invadiram o Iraque, em 2003, estavam proibidos de deixar crescer bigodes (muito menos barbas). Quando, anos antes, os taliban chegaram a Kabul, no Afeganistão, chicoteavam os homens sem barbas e o ministro para a promoção da virtude e prevenção do vício, Mohammed Wali, alertou que os bigodes dessas barbas deviam ser aparados para jamais cobrirem os lábios – sob pena de mais xibatadas.  
                Não importa se o homem é hetero ou gay, casado ou solteiro, novo ou velho, a barba é um elemento fundamental da sua masculinidade. Pode parecer primitivo e limitado, mas é um facto inexorável. Não importa que use echarpes ou que seja pugilista, que faça a barba todos os dias ou que pareça um arrumador de carros, há qualquer coisa de primoridal na relação do homem com a sua barba. Ela é uma sina e um símbolo, um elemento de metamorfose e de renovação. Muitas vezes, ao longo da vida, deixei crescer a barba enquanto escrevia um livro ou porque me sentia em modo de mudança ou porque queria abraçar o meu lado mais jagunço, de Mogli criado por lobos na selva. E qualquer homem vos dirá que o ato de deixar crescer a barba, tal como a decisão de, semanas ou meses depois, voltar a ter a cara limpa, têm um enorme poder de transmutação sobre a psique masculina – por vezes com profundidade, após o fim de uma relação amorosa ou a morte de um familiar; por vezes de forma juvenil e inconsequente, como numas férias com amigos ou como resultado de uma promessa durante um campeonato do mundo de futebol.   
                Tudo isto para fazer um pedido. É que talvez as mulheres ainda não tenham percebido a importância da exclusividade da lâmina que barbeia a cara de um homem, mas, por favor, parem de subtrair-nos as Gillettes a fim de amaciar pernas e virilhas, indiferentes ao facto de que uma lâmina tem para nós a mesma importância que a faca de mato tinha para John Rambo.


segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Duendes de sunga, crónica publicada no Diário de Notícias



Da mesma forma que um brasileiro olhará para o Carnaval dos portugueses com a sensação de que há algo de errado num corso debaixo de chuva, no frio de fevereiro, em que mulatas importadas tiritam sambas enquanto escoltadas por Cabeçudos de Torres Vedras, também um português tem essa impressão de profundo deslocamento num Natal no Rio de Janeiro.
De certa maneira, Vincent Vega, em Pulp Fiction, tinha razão. “A lot of the same shit we got here they got there”, ou seja, também há uma árvore de Natal gigantesca, patrocinada por um banco, uma companhia de seguros ou outro colosso do género, que atrai multidões e entope ainda mais o trânsito caótico e agressivo; os shoppings estão cheios, é difícil apanhar um táxi, há infinitas festas de empresa, filas, multibancos sem dinheiro, um vomitar de anúncios de telemóveis e um frenesi de compras, reuniões familiares e excessos alcoólicos e gastronómicos. Até se come bacalhau, embora o animal fetiche para a consoada seja o chester – uma ave que eu desconhecia e cuja popularidade me intrigou desde o início, mais ainda porque a primeira noite de Natal que passei no Rio, desembarcado havia dias, foi na festa do “Arrasta o chester” – conceito de uma amiga, em que, depois de jantar com as famílias, os seus convidados levam os restos de comida e de bebida para sua casa e, livres dos contragimentos familiares, só desligam a música ao amanhecer.
O chester, vim a descobrir, é uma galinha gigante e desengonçada, resultado de doze anos de seleção artificial de uma empresa brasileira, que queria encontrar um concorrente para o peru de uma marca rival. Hoje, o chester (sobre o qual há um role longo de teorias da conspiração) parece ter ganho a guerra das aves no Brasil. 
E depois há a extravagância da neve artificial com 40 graus, as musiquinhas natalícias (aqui dize-se “natalinas”) tocadas em cavaquinho em estilo samba, dias de praia lotada e mendigos negros com gorros de Papai Noel, catando latas do chão para vender; anões vestidos de super-homem e de super-mulher (a sério) promovendo uma pet-shop com megafones – um desfilar de personagens e cenários que entretêm um português mais habituado ao torpor do Natal lusitano, com mantas nos joelhos, overdose de comida e o coro de Santo Amaro de Oeiras na TV.
Estar longe da família – e das conversas sobre natais antigos e o coelhinho que foi com o Pai Natal e o palhaço, no comboio, ao circo – intensifica a estranheza que, nesta época, aflige o emigrante, porque a saudade e a nostalgia não encaixam no fluxo festivo da cidade. É que não se trata apenas do Natal de família – a que estamos habituados. Por esta altura, começa o verão e as férias grandes das escolas e universidades, faz muito calor e os dias são longos, celebra-se a passagem de ano com dois milhões de pessoas na praia de Copacabana, dispara-se a toda a velocidade dionísica para o Carnaval apoteótico. Enquanto o emigrante fala no Skype com a família, perguntando se está muito frio em Portugal, enquanto o seu bacalhau no forno eleva a temperatura do pequeno apartamento a 50 graus, o carioca está a dar o tiro de partida para mais uma temporada estival de festa, sangue bom e bagunça erótica.
                O verão é sexy, não será preciso invocar estudos para perceber que, na quadra natalícia carioca, aumenta a rotação nos motéis e que, com menos roupa, mais álcool, festas e a impunidade das férias, rola sempre, por estes dias de celebração do nascimento do Menino, uma sacanagem extra. Já em Portugal: a consoada, avós e tios, stress festivo, sonolência, “Sozinho em Casa” na TV, um frio de rachar na viagem da casa de banho para a cama, enfim, vamos assumir que lascívia, libido e luxúria, não são as L words daestação.
                Há muitos anos sonhava escapar da obrigação e da repetição natalícia, fugindo para um país tropical. Concretizei o sonho, e talvez sejam resquícios do perene dilema de António Variações – só estou bem onde não estou – ou então a inevitável atração do eterno retorno, mas hoje, preparando-me para o quinto Natal consecutivo de “Arrasta o chester”, trocava, num abrir e fechar de olhos, os cinco minutos que demoro a chegar de casa à praia, pelas dez horas de voo até ao cheiro das lareiras, dos pinheiros e do frio numa rua antiga que me faz falta.
               


terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come - crónica publicada no Diário de Notícias




O cão
O sono profundo é interrompido pelo ladrar da cadela. Quatro e meia da manhã. Levanto-me, tropeço, e vou ver o que se passa na sala. Digo-lhe que se cale, mas ela insiste, o pelo eriçado, uma rafeira de guarda. Só então me aproximo da janela e vejo um homem do outro lado, tentando entrar. Não recordo o que gritei – entre a obscuridade do sono e a surpresa de um intruso, o cérebro não foi capaz de registar tudo –, mas lembro-me de que eram dois e que desapareceram num ápice, pulando o muro, para o prédio vizinho, com uma destreza de acrobatas chineses.

Durante o dia seguinte senti-me um bicho – não falo apenas da sensação física de sobressalto com que, há milhares de anos, éramos acordados pelos predadores, mas uma viscosidade estranha, o subconsciente a mil, uma inédita insegurança. De dez em dez minutos uma pessoa é assassinada no Brasil, mas talvez porque os ladrões não pareciam armados e fugiram de imediato, não foi um medo físico que me dominou. Fui antes acossado por uma sensação de impotência e violação de algo íntimo, como se o susto, a meio da noite, tivesse as qualidades invasivas de um sonho no qual um carniceiro nos remexe as entranhas. Tal como há certas emoções que apenas experimentamos nos sonhos – fugir de um assassino, cair de um arranha céus, ser esfaqueado, matar alguém –, as emoções que perduraram em mim recuperavam esse temor genético resultante da fragilidade e da desproteção da espécie, algo uterino e primitivamente humano.


O gato
Ela tem três gatos e um está muito doente. Somos amigos há anos, moramos no mesmo prédio, e, quando me disse que teria de sacrificar o gato, achei que deveria poupá-la e ofereci-me para essa missão penosa. Imaginei-me sozinho, transportando a caixa, pensando “e se fosse a minha cadela?”, ponderando se teria de ficar quando fosse aplicada a injeção porque, afinal, aquele gato estivera no meu colo, dera-lhe comida e festas, fora seduzido pela sua elegância negra e pelos tremores do seu ronronar.

Na hora marcada, bati à porta da minha amiga. Apenas por acaso, eu vestia uma camisa preta e assim que perguntaram “Quem é?”, juro que pensei: “É o carrasco”. Tenho, desde o primeiro funeral em que participei, uma estranha maneira de lidar com a morte. O meu humor perde toda a compaixão, sentido de oportunidade e fica obscuro. É uma forma de enfrentar, por exemplo, os nervos e o desconforto de transportar um gato, numa caixa, para que o possam matar.

O calor humano
Os dois acontecimentos aqui relatados passaram-se na mesma semana e é fácil perceber porque se entrelaçaram na minha cabeça e no meu estômago. Tendo em conta mais episódios estranhos e recentes na minha vida, e num lugar espiritual como o Rio, uns diriam que se trata de mau olhado, de uma fase energética ruim, de um mapa astral destrambelhado. Prefiro acreditar no acaso, no calor tropical implacável e na tensão, exagero e descontrolo que tomam o Rio de Janeiro entre dezembro e o fim do Carnaval.

Faz agora muito calor, um calor que enlouquece os termómetros nas praças, que empapa uma camisa assim que a colocamos sobre a pele, que impede o sono e enfurece os humanos. Uma cidade adversária. O crime aumenta, há apagões, tudo fica mais caro. Há uma euforia crescente, que explode com os fogos de artifício no último dia do ano. Há uma agressividade nos transportes, uma eletricidade feroz, consumista e hedonista nas ruas – uma hiperbolização de tudo, o exagero de um lugar exagerado. O verão no Rio é como as drogas duras. As primeiras vezes são maravilhosas, mas, com o uso, a relação prazer/dor inverte-se. Nesta cidade é preciso andar sempre com a guarda levantada. E, mesmo assim, somos derrotados sistematicamente. Há qualquer coisa de trágico neste paraíso.

Fosse eu supersticioso e colocaria na porta o amuleto para o mau olhado que me trouxeram da Turquia. Mas prefiro encontrar consolo e paz em saber que, por vezes, mesmo que acompanhados, revisitaremos sempre uma antiquíssima sensação de medo e de finitude – e julgamo-nos inapelavelmente sozinhos contra o mundo. São fases. Tudo passa. Do acaso e da estranheza espreme-se um pouco de sentido e, espera-se, de sabedoria. Escreve-se uma crónica, desamarram-se uns nós. Tudo volta a ser como antes. E o gato, que até estava para morrer, afinal continua vivo.



segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O Papa e o Grande Líder, crónica de sábado, no Diário de Notícias




Nota: esta não é uma crónica sobre futebol ou clubes, que nada me interessam. 

Pinto da Costa foi recebido por José Eduardo dos Santos. Uns terão pensado em Lex Luthor e Darth Vader, outros viram o Papa e o Grande Líder. Tanto o presidente do FC Porto como o chefe de Estado angolano têm longos e controversos reinados e uma imagem que oscila entre o salvador e o vilão. Julgo que todos os portugueses poderiam oferecer uma opinião sobre Pinto da Costa – a sua imagem tem pontos comuns seja qual for o lado da barricada: um homem de sucesso, que transformou um clube de bairro numa marca mundial, que ganhou tudo, e capaz de declamar poemas com o fulgor romântico do século XIX. Mas tem também a imagem de um homem cujos métodos levantam suspeitas, que usou metáforas simplistas em escutas, alguém que pratica uma retórica infantil, maniqueísta, incentivadora do ódio (os mouros) com fervor propagandista e esperteza estratégica.
Interessa-me o que essa imagem de Pinto da Costa representa (seja ela correspondente à verdade ou não) no imaginário do país, mas também o que diz sobre nós, porque demasiadas vezes ouvi adeptos de outros clubes dizerem que não se importavam de ter um presidente que agisse fora da lei, prepotente, provinciano e bélico, desde que ganhasse os títulos que o FC Porto conseguiu nos últimos 30 anos.
O futebol é uma reserva onde são permitidos fanatismos, burrice e engano – desde que se marque o penálti a favor da nossa equipa. Suspendem-se os princípios e aceita-se que apoiemos algo desonesto com a desculpa que precisamos de paixões e catarse. Tal como parece normal que a imprensa reproduza, com dramatismo e entusiasmo, as baboseira dos dirigentes, sublinhando sempre, mas sempre, a ironia quando se trata de Pinto da Costa. Talvez, em tempos. Hoje, essa ironia tem as qualidades cómicas e a pertinência dos Malucos do Riso.
Num texto, após a visita a Luanda, Pinto da Costa vitimizava-se, exultava as autoridades africanas e, claro, ironizava: “Sonhei que (em Angola) a imprensa se referia com grande respeito ao FC Porto (...), que altas individualidades se tinham ido despedir da nossa comitiva (...) Mas (...) tudo era passado e aterrara num Portugal democrático em que se detém um primeiro-ministro ao aterrar no seu país.”
Chegado da impoluta e livre Angola, Pinto da Costa deve ter sentido que as suas liberdades ficavam brutamente limitadas ao passar a alfândega de um país onde sempre foi vítima e jamais teve reconhecimento, impunidade ou vénias institucionais.
José Eduardo dos Santos é presidente de Angola desde 1979. Chefes de Estado seus contemporâneos que estão (ou estiveram) no poder durante décadas: Ali Khamenei, Irão; Robert Mugabé, Zimbabwé; Teodoro Mbaso, Guiné Equatorial; Ali Saleh, Iémen.
O progresso e a melhoria de vida de um povo não são apenas as gruas e os arranha-céus que Pinto da Costa elogiou em Luanda, contrapondo a pasmaceira de Portugal, onde não ele lamenta não ver gruas nenhumas. O país africano é gerido como uma oligarquia cleptocrata, em que as oportunidades e a riqueza são distribuídas entre militares, burocratas e a família do presidente. As histórias de ostentação e esbanjamento multiplicam-se há anos. O presidente pode mostrar estradas, pontes e prédios altos, mas 70% da população sobrevive com dois dólares por dia e o país ocupa o 161º lugar (em 176) no índice de perceção de corrupção da Transparência Internacional.
                Em 2010, entrevistei um angolano que, fugido de Angola, dizia ter sido ameaçado de morte. Luís Araújo pertencia à SOS Habitat, que queria impedir a destruição de milhares de casas de gente pobre para se construírem condomínios de luxo. Dizia: “(A elite governamental) serve-se bem da hierarquia e do culto do chefe para preservar o poder. E é com essa gente que se quer construir uma democracia? Isso é querer que um jindungueiro dê laranjas doces.”
Dias depois de Pinto da Costa ter sido tratado em Luanda como acha que não o tratam em Portugal, Laurinda Gouveia, que participava num protesto contra o governo angolano, foi detida, agredida (com as mãos algemadas) e questionada: “Porquê tanto ódio contra o presidente?”
Que não existe liberdade de expressão em Angola não é novidade, mas, no último ano, dois ex jornalistas do i disseram-me que, nesse diário, não se podiam escrever textos que beliscassem os interesses angolanos. A ser verdade, e acredito que seja, é grave. Não estou certo de que os capitães de Abril tivessem feito uma revolução a pensar no futuro da liberdade de expressão em África, mas foi o golpe em Lisboa que despoletou a independência de Angola e, esperava-se, a democracia angolana. Não deixa de ser perversamente cómico que uma empresa de comunicação angolana, proprietária do i, censure um jornal português e nos faça recuar 40 anos.

Consta que o realizador John Ford, quando confrontado com algo inequivocamente errado, tinha apenas um argumento, que lhe saía das entranhas: “Somethings are just wrong.” Foi nessa frase que pensei diante da fotografia do presidente do FC Porto com Eduardo dos Santos e do título: “Angolanos elogiam Pinto da Costa e dizem que é exemplo a seguir.” 

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Portugal por um canudo




1
Sábado de manhã, bem cedo, corri com a minha cadela, pelo calçadão, e depois tomei um sumo de tangerina. O sol da primavera carioca atravessava tudo com um brilho cristalino. Era um dia bonito. Cheguei a casa e abri a página online deste jornal, ficando a conhecer a detenção de José Sócrates e iniciando de imediato, como a maioria dos portugueses (imagino), um período intensivo de consumo de notícias sobre o caso. No entanto, porque vivo a oito mil quilómetros de Portugal, a minha perceção do que se passa é constrita pelo canudo da internet – jornais, telejornais, redes sociais etc. E, desligada a conexão, regresso ao mundo que, de facto, me rodeia: o Rio de Janeiro – seja na sua beleza praiana e solar ou nos seus problemas ancestrais e endémicos, que fazem as chagas de Portugal parecer arranhões. Não é que a detenção de um ex-primeiro-ministro do meu país não seja de primordial importância, ainda mais se tivermos em conta a personalidade em questão e todo o simbolismo do seu legado e da sua prisão, mas, com um oceano pelo meio, e recebendo a informação através da internet, esta semana revelou-me, como já acontecera antes, um país novelesco e cómico, passionalmente palavroso, em que o ciclo de notícias de 24 horas parece desenrolar-se como um reality show.

2
Os diretos de TV a encher chouriços são ingratos para os jornalistas. A voracidade da informação resulta em redundância – repetem-se as mesmas coisas vezes infinitas – e desemboca numa obsessão com o nada, como o repórter que insistia na palavra “movimentações” e, no meio de tanta tautologia e gaguez, exultou de alívio ao ver um carro aproximando-se da prisão onde, eventualmente, ficaria Sócrates – não ficou. Além da obsessão com as “movimentações” de veículos, há também uma fome de detalhes gastronómicos – as pausas para almoço dos advogados, o cozido à portuguesa com que o ex-primeiro ministro se estreou na cadeia e o menu do restaurante onde almoçava em Paris. Depois, claro, há os maluquinhos da celebridade instantânea, que se colam aos repórteres, e sabotam o seu trabalho, para aparecer na TV. Se é para termos entretenimento informativo non stop, então gostaria que um desses jornalistas tivesse a iniciativa de pedir licença aos telespectadores e, fazendo uma pausa, fosse espetar uma galheta de professor da quarta classe antiga numa dessas figuras (estou sozinho nesta pulsão?).

3
No Portugal visto por um canudo, julgo encontrar um país que quer mais justiça do que vingança (posso estar enganado), ainda que, se alguma coisa se conhece dos homens, seja ingénuo fingir que uma condenação não providenciaria o primário prazer do ajuste de contas – com Sócrates e com todos os podres do regime nos últimos 40 anos. Outros protagonistas da política poderiam certamente estar no lugar de Sócrates, dificilmente outro representaria tão bem o papel do cordeiro de deus que, sacrificado, tira o pecado do mundo. Pode ser lamentável, injusta, exagerada, mas é uma pulsão de purga, previsivelmente humana e explicada por Clemenza a Michael Corleone, em “O Padrinho”: “É provável que as outras famílias se juntem, contra nós. Está tudo bem. Estas coisas têm que acontecer. É uma maneira do nos livrarmos do mau sangue”.  

4
Prefiro, sem hesitar, que um homem inocente custe a seriedade e o prestígio da Justiça do que condenar quem não tem culpa para salvar a cara do sistema. Respeito a presunção de inocência como respeito a liberdade de expressão. Mário Soares, que lutou e se sacrificou para que tivéssemos ambas, escolheu achar que Sócrates é alvo de uma “infâmia”, de um esquema organizado por “malandros”, e, portanto, inocente. Também disse que todo o processo era uma “bandalha”, exercendo o seu direito de liberdade de expressão. É verdade que quem escreve nos jornais, como eu, deverá mostrar um cuidado que não se tem com os amigos, falando sobre o tema, ao ritmo da cerveja. Mas isso não implica que eu tenha de anular o meu pensamento dedutivo, ainda que saiba que ele não substitui nem é mais válido do que o tão mencionado “regular curso da justiça”.

5
Esta semana, usando o tal pensamento dedutivo e um pouco de imaginação, pensei no escritor John Le Carré a ler os jornais e a anotar os primeiros apontamentos para um romance: “Primeiro-ministro, estudante de filosofia em Paris. Amigo de Hugo Chávez. Empresa construtora com negócios na Venezuela (onde trabalha um amigo de infância do primeiro-ministro, com uma conta de X milhões, na Suíça). Farmacêutica com negócios na América do Sul. Um super juiz de cognome Herói dos Tabloides. Epígrafe do livro – frase do protagonista: “A prepotência atraiçoa o prepotente”
              Título provisório: Cicuta.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Dança da solidão - crónica publicada no Diário de Notícias




Retrato de rapariga

Está sentada a meu lado, bonita, jovem, um piercing no nariz. Passam as estações de metro e ela não tira os olhos do reflexo do seu rosto no telemóvel – não se trata de um espelho, mas da câmara que serve para ensaiar a sua beleza. O comboio lasca a escuridão das entranhas do Rio, e ela prossegue, agora fazendo dezenas de selfies – beicinho e olhos de eyeliner. No resto do vagão, mais pessoas olham para os seus insetos eletrónicos, mantendo contacto com o mundo exterior, teclando para prosseguirem sempre presentes, para existirem continuamente diante de uma audiência que não veem.   
                Ninguém quer estar sozinho, o cérebro liberto, um minuto de sossego. A promoção permanente do eu tornou-se compulsiva. Tudo o que fazemos, pensamos ou fotografamos é suscetível de nos engrandecer se ampliado no éter do ciberespaço – uma patética ilusão de eternidade e de autoimportância. Esse egocentrismo e essa alienação impedem, por exemplo, o entendimento do que deveria ser tão óbvio: usar o telefone enquanto conduzimos implica o risco da própria morte ou de matar alguém. No entanto, nem a possibilidade de morrermos impede a burrice de teclar ao volante.


Lições de um comediante ruivo

Louis C.K., humorista norte-americano, diz que as suas filhas pequenas não têm telemóveis porque ele os considera tóxicos, viciantes, sabotadores da empatia e das relações com os outros – quantas vezes o nosso interlocutor olha para o aparelho e agita os dedos como pernas de centopeia em vez de nos prestar atenção?     
                “Precisamos da habilidade de estar sozinhos, apenas estar, sem fazer outra coisa ao mesmo tempo. Foi isso que os telemóveis nos roubaram, porque agora queremos saber o que se passa a todo o momento.” Numa entrevista, o comediante contou que sentiu-se melancólico ao ouvir Bruce Springsteen na rádio do carro. Pensou pegar no telefone, postar o que sentia, enviar uma mensagem, mas concluiu: “Não lhe pegues, fica triste, deixa que a tristeza venha e te atropele como um camião.” Parou o carro, chorou muito. “Há beleza e poesia na tristeza. Estava feliz por me ter sentido triste. Depois do choro há uma felicidade, temos anticorpos para a tristeza, é uma espécie de trip.”
                Hoje, impedimos a plenitude das emoções humanas porque mitigamos e filtramos tudo com os telefones, os computadores, a incessante necessidade de uma conexão. “Nunca nos sentimos completamente tristes ou felizes”, diz Louis C.K., “apenas contentes com os produtos que temos”.

  
Os escravizados

A velocidade da vida não está em sintonia com a rapidez da internet. Não falo do quotidiano, também acelerado, mas do arco da existência – a dor, a superação, a perda, as epifanias, a derrota, o processamento de tudo aquilo que passa por nós e não pode ser medido em likes ou bytes. Talvez o ofício de escritor e editor me tenha ajudado a entender a discrepância entre a velocidade fragmentada a que funcionam hoje os nossos cérebros e o movimento de rotação da existência. Um livro, para ser pensado, escrito e editado, precisa de tempo e paciência. O aceleramento do processo, sem ponderação, trabalho e amadurecimento, deixa os livros aquém do que poderiam ser. E é isso que julgo que acontece hoje com as nossas vidas – ficamos aquém, nem completamente felizes, nem completamente tristes.
`              Num jantar de grupo há sempre o clube do iPhone. Tenho vários amigos que não se sentam na retrete sem um tablet que os distraia. Nos pontos de ônibus ou na fila do banco parece que já ninguém consegue apenas esperar. Os momentos a sós são escassos – falta tempo para interpretar, ponderar e sentir sem cuidados paliativos.
(Mais de metade dos livros que leio são digitais. Oiço música no Spotify. Vejo TV na internet. Sou assinante de e-papers e tenho um smartphone – mas só ligo a internet em caso de necessidade, o que é raro, e o aparelho fica muitas vezes desaparecido sem que lhe preste atenção, porque não me apetece, nem sinto a obrigação, de estar sempre disponível ou visível. Não estou a par dos temas do dia no Facebook e nem por isso sinto que esteja em falta ou a perder algo importante.)
Não sou tão velho para renunciar a tecnologia nem tão controlador que tenha de decretar os hábitos dos outros. Mas lamento o alheamento constante e a falta de concentração por mais de dois minutos, a incapacidade do silêncio, do sossego, da divagação, de não fazer nada, ou essa ideia de que a vida se desata com a facilidade com que se atualiza o status na rede social. As benesses da tecnologia são uma dádiva, mas estão aqui para nos servir e não para nos escravizar. É por isso uma pena que os smartphones revelem agora tantos stupid users.