sábado, 20 de novembro de 2010

História de amor, crónica no i



Pilar debruça-se para executar alguma tarefa caseira, o seu corpo entre o computador e José, nunca um obstáculo, o seu corpo dobrado e José dando-lhe uma palmada malandra no rabo, depois o nariz do escritor encostando-se na pele das costas da sua mulher. Ou a voz espanhola de Pilar lendo um livro de Saramago, sobreposta na voz portuguesa de José - é um artifício da montagem do filme "José e Pilar", mas é também a vida real, duas vozes coladas uma na outra, duas línguas entrelaçadas como as mãos que se agarram várias vezes durante a vida e durante um documentário que merece todos os elogios. O tempo aperta e a doença reduz a voz do escritor, ameaçando-o com a morte, com a impossibilidade de escrever mais, de amar ainda mais. Saramago tem muita graça, mesmo muita, como quando, cansado da correria mediática, propõe a história do escritor que mata jornalistas em série. São um casal: Pilar e José discordam um do outro no banco traseiro do carro ou discutem por causa de Hillary e Obama. São um par de namorados: ela apoia-se na porta do quarto de hospital de José, triste e irritada com os jornais que querem escrever um obituário precoce; ele diz: "Se eu tivesse morrido antes de conhecer Pilar teria morrido muito mais velho." Talvez só o amor impeça a morte. Talvez por isso José diga que quer que Pilar o continue. O escritor que vivia desassossegado e escrevia para desassossegar também diz, sozinho e apaixonado, para a câmara: "Pilar, encontramo-nos noutro sítio." E nós acreditamos, nós só podemos acreditar.

1 comentário:

Miss em cena herself disse...

Quando uma crónica nos pôe com lágrimas a escorrer pelo rosto... that means something, right?