quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010
Carta
Querida Rosa,
Sei que chego tarde com esta carta e que a nossa correspondência se interrompeu há anos. Sei também que a última vez que estive em sua casa havia bolos e chá e scones. Eu estava a preparar-me para ir para outro país e a Rosa teve a atenção de convidar os seus netos para me falarem da cidade onde eu iria viver. O seu marido Joaquim estava lá, rodeado de móveis antigos e contando histórias sobre o Cardoso Pires e sobre a PIDE. Apesar dessas histórias do passado, a única coisa escura e antiga na sua casa eram mesmo os móveis da sala de jantar - a Rosa e o Joaquim espantavam-me: como podiam duas pessoas nascidas há tantos anos perceber as minhas inquietações existenciais de pós-adolescente, como podiam ouvir tão bem, como podiam perdoar a minha certeza de saber tudo sobre o mundo quando ainda me faltava aprender tanto?
Conheci-a, se bem se lembra, durante a entrega de um prémio de poesia na minha faculdade. Lembro-me que me disse que, ao ler os meus poemas, me imaginara vestido de preto, com barba e uma apetência para a misantropia. Isso, deu-me uma certa felicidade, uma vez que era a prova que os escritores, afinal, podiam usar camisas às riscas e sapatos de vela. Eu era um universitário pateta, produto inacabado da betice obsoleta da Linha, deslumbrado com as possibilidades da poesia: as pessoas gostariam de mim pelo génio da minha escrita e as miúdas da faculdade despiriam a roupa ao ritmo dos meus sonetos. Eu, confesso, queria ser o David Mourão Ferreira, por isso, quando me disse que fora amiga do poeta de "Música de Cama", cansei-a, tenho a certeza, com perguntas que nem uma groupie dos Rolling Stones teria coragem de fazer.
Depois comecei a ir a sua casa, a trocar cartas metidas em envelopes gordos, cheios das minhas primeiras tentativas na prosa. Em sua casa, recebia-me sempre com comida que acabara de cozinhar. Recebia-me tão bem. Sentados nos sofás, durante a tarde inteira, falávamos muito e hoje, se pudesse, falaria menos e escutaria mais. Era um miúdo, sabe, um rapaz que acreditava que a escrita limparia o lixo do mundo e que precisava de ser validado pelas suas palavras, um miúdo a quem fazia falta o seu cuidado na execução do bolo de laranja e a sua paciência para os relatos das minhas desventuras românticas.
Lamento nunca lhe ter dito que agora compreendo tudo muito melhor, que percebo que a Rosa não estava ali apenas para me dizer que eu seria escritor.
Por exemplo, se voltasse a sua casa, dir-lhe-ia que sempre que escrevo o código postal da minha morada, num envelope, me lembro do seu código postal da Calçada dos Barbadinhos. É um exercício de memória, uma vez que os códigos são parecidos. Se falasse agora consigo, em vez de escrever esta carta, diria que nunca percebi as pessoas que diziam que a Rosa é uma mulher muito bonita para a sua idade. É uma mulher bonita, ponto. Sei que se a Rosa tivesse nascido em Itália teria filmado na Cinecittà, tanto na década de 50 como agora. A Rosa é muito bonita. E caso eu estivesse agora com a chávena de chá na mão, escutando as suas ideias para o próximo livro, diria que me fascina o amor que põe em tudo o que faz, que aprendi muito com o aprumo delicado com que escreve e pronuncia todas as palavras, como um músico que toca por intuição, que já não precisa de ler a pauta.
Junto de si nunca me senti ridículo, nem julgado, nem vítima da condescendência dos mais velhos. Podia escrever-lhe agora sobre os livros que li, sobre coisas que quero escrever ou perguntar-lhe qual a história do seu próximo romance. Não, prefiro dizer que, se hoje não sou apenas aquele miúdo formatado num colégio mui católico e masculino, se já não sou tão bruto no tom e rapazola no peito insuflado de certezas, devo-o muito a si.
Consigo, Rosa, aprendi a aceitar mais pacificamente a ternura e percebi o maravilhoso dom da elegância das mulheres. Em sua casa, recebido pelos braços do Joaquim e pela sua paciência graciosa, eu nunca fui um estranho. Hoje, que penso que gostaria de ter filhos em vez de andar a incendiar o próprio corpo pelo planeta, penso também que gostaria que os meus filhos fossem lanchar a sua casa.
Mas também lhe agradeço a irreverência subversiva, como se lançasse cocktail molotovs com luvas Hermès. Sei que foi sempre dona da sua vontade, mesmo num país machista e provinciano, que pouco se importou com a opinião dos outros e que acreditava que uma coisa é a classe e outra é uma sociedade de classes.
Vimo-nos a última vez na feira do livro. E talvez o escritor encontrasse aqui o sentido para toda esta narrativa, para o ponto em que as nossas vidas se cruzaram - afinal, foi por causa dos livros que nos conhecemos. Sim, é verdade. Mas hoje a literatura não me interessa nada. O que tenho para lhe dizer não encontra forma - nenhum poema, nenhum livro, nem sequer esta carta -, o que tenho para lhe dizer chega atrasado. Se morremos para que a vida seja importante, então, sim, faz todo o sentido: a sua vida foi importante para mim. E sei que se entrasse esta tarde em sua casa, não precisava de dizer nada, nem pedir desculpa pelo meu silêncio, nem explicar por onde andei. Sentar-me-ia a comer o bolo de laranja e ficaria calado. Juro-lhe que ficaria calado. Tão calado como ficámos os dois quando descobriu que a minha mãe também se chamou Rosa.
Tenho saudades, um beijo,
Hugo
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7 comentários:
Amei! Bela dedicatória! Bjs
Somos rosas pequeninas que choramos que nem umas madalenas.
Nao temos mais os moveis escuros para nos acompanhar no lanche, nem o Joaquim e muito menos o bolo de laranja. Temos so a Rosa, mae e avo que sempre nos ha-de receber dentro do seu sorriso.
Saudades dela...
Obrigada pela sua carta.
Far-lha-emos chegar, fique certo.
Bi e Mariana
São estas escritas que a tornam Imortal!
Beijos,
RSL
Simplesmente Lindo :-)
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Adorei este post.
Vim aqui ter por acaso, pelo blogue da Vera, e deparei com uma escrita apaixonada pelos livros, como eu.
E com um autor que escreve com a sensibilidade que só alguns conseguem. Emcionante.
Voltarei.
Que bom... É bom ter memórias como essas.
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