quinta-feira, 6 de maio de 2010

Crónicas no jornal i


Por fim, o calor

Na terça-feira soubemos que fazia calor porque havia vestidos curtos, cabelos apanhados, nucas despidas e muito mais roupa a secar nos estendais. Sentia-se a levitação do fogo ao cruzar uma passadeira. Três cães no passeio tinham a língua ao lado no focinho, as lojas com ar condicionado eram porto seguro e o grupo de espanhóis no eléctrico transpirava como se estivesse na parte “Sol” de uma praça de touros. Ligaram-me a dizer: “Vou para a praia. E está um gajo a tomar banho no lago do parque.” A cidade estava mais vazia, tão preguiçosa como a hora depois do almoço, lânguida como sexo a meio da tarde. Mas também irriquieta: os miúdos da rua sem t-shirts, desafiantes nas bicicletas. Um rapaz com mais piercings que acne justificou a sua insuficiência tecnológica diante do grupo: “Este é da minha avó, que é que queres pá, não tenho telemóvel.” Outro, de rosário cor de rosa no peito sem pêlos, tinha a namorada pela mão. Nestas noites janta-se com as janelas abertas. Na televisão falavam da greve e das muitas pessoas que foram para a praia. Greve de transportes no primeiro dia de calor? Trinta e um graus e comboios parados? É como anunciar às crianças que é o primeiro dia das férias grandes e que haverá aviões a lançar brinquedos no areal. Quando faz calor a matéria torna-se maior, mais pesada, a música melhora, a noite demora tanto a chegar que ainda se ouvem gaivotas quando os talheres já se escutam nos pratos de jantar. Quando faz calor desta maneira só podem contar connosco para qualquer coisa que implique sentir o calor.

Retrato de Rapariga

Ela era empregada de mesa, loira, e por baixo do avental tinha uma camisola do Pablo Aimar. Duas penas vermelhas como brincos, os ténis confortáveis para suportar tantas horas em pé. Pareceu-me mais bonita assim que os clientes do bar dos artistas, no Coliseu dos Recreios, lhe deram um pouco de descanso. Sentou-se numa das mesas, tirou um cigarro e ficou a fumar, concentrada no jogo como se tivesse esperado o dia inteiro para estar ali. Com o golo do Porto voltou a distribuir copos de cerveja. Depois desapareceu. E o bar passou a ser o homem que fumava cigarros da marca Benfica – ofereceu-me um – e que martelava furiosamente as pernas no chão, nervoso como uma bola saltitona: “Nem olho pá, eu nem olho.” O Benfica empatou, era campeão, por isso ela apareceu a sorrir. Mais bonita ainda. Por pouco tempo. O Porto voltou a marcar, duas vezes, e ela manteve-se de pé, com a gravidade de uma criança amuada, distraída dos pedidos. Se por acaso o jogo parava numa falta aborrecida, ela punha-se a apanhar os copos vazios das mesas, tentando acelerar o fim de um domingo sem glória. Talvez fosse da luz, dos tectos baixos ou do fumo acumulado, mas começou a parecer-me menos bonita, com a pele oleosa e olheiras de quem precisa de uma folga. Despedi-me, a caminho do concerto, dizendo-lhe: “Tens um copo de plástico para a minha imperial?” A última vez que a vi, estava a contar as moedas da caixa registadora. Um amigo reparou na minha caneta a escrever no bloco de notas e disse: “Essa vai ser uma crónica triste.” Tinha toda a razão.

Dear miss Winehouse

Quando me contaram que tinhas sido internada outra vez, imaginei-te com um cachimbo de crack e um copo de gin, envolta numa nuvem cocainómana. Depois soube que tinha sido apenas um tropeção que resultou num corte acima do olho e num problema com as tuas novas mamas de cirurgia plástica. Não te escrevo como amigo (não nos conhecemos), nem como paizinho, aliás, dizes na canção “Rehab” que se o teu pai acha que estás bem não precisas de ser internada. Eu até concordo com o comediante Bill Hicks, que disse: “As drogas já nos deram muitas coisas boas. Se não acreditam, peguem nos vossos cds e queimem-nos, porque as pessoas que fizeram essas grandes músicas, que melhoraram as vossas vidas, estavam bastante drogadas.” Nem sequer estou preocupado que os miúdos se ponham a fumar cocaína por causa de ti – as pessoas não precisam de ídolos para se drogar, drogam-se porque querem. Mas fico aflito sempre que vejo que a droga raptou um ser humano e o substituiu por um farrapo de gente – acredita em mim, morreu-me um tio por causa da heroína. Não te peço que deixes para todo o sempre o copo de Tanqueray e alguma maluqueira tóxica. Mas ouve as palavras de outro comediante, George Carlin, cujo génio sobreviveu aos excessos: “As drogas podem ser maravilhosas, mas à medida que as consumimos, a parte do prazer diminui e aumenta a dor. Passa a ser apenas dor.” O que te quero dizer é: põe-te boa dessas costelas doridas e termina o disco que começaste a gravar. Depois, sim, podes festejar. Estraga-te um bocadinho mas, por favor, não te estragues para sempre.

Gostosa, safada, cantada

Há uns meses, uma amiga brasileira perguntou-me porque não conseguia encontrar uma canção portuguesa com “gajo”, afinal, uma palavra tão usada neste país. Consegui descobrir uma música dos Ena Pá 2000 com “gajo”, mas a pergunta da minha amiga mostrou como dois povos, que falam a mesma língua, enlaçam de forma diferente letra e música. Esta semana, na Casa Fernando Pessoa, vi o documentário brasileiro “Palavra (En)cantada”, e ouvi o guionista, Marcio Debellian, explicar como se viciou em Fernando Pessoa depois de ouvir Maria Bethânia cantar o poeta do bigode tímido. Na tela vi Chico Buarque, Adriana Calcanhotto, Lenine, Caetano Veloso, Tom Zé e tantos outros que conseguiram, com ginga, excelência e usando a música, transportar a história oral para a literatura – uma literatura cantada, sem salamaleques, vénias, comendadores, punhos de renda ou cintos de castidade. Nas músicas brasileiras as pessoas “transam” e chegam a comer-se: “Vamos comer Caetano, degluti-lo, mastigá-lo, vamos lamber a língua”, diz uma canção de Calcanhotto. No documentário, percebe-se como 500 anos de promiscuidade racial e miscigenação linguística resultaram em coisas como a Bossa Nova. Mas o filme é muito mais que um relato histórico que viaja dos trovadores provençais até aos rappers cariocas. Está cheio de palavras gostosas, cantadas, safadas, malandras, incondicionalmente enamoradas – Lenine diz que se lhe parte o coração sempre que ouve os ditongos nasais – “ão” e “ãe” – exclusivos do português. E eu digo: obrigado, Brasil, por me dares tanta fome de língua.

1 comentário:

Isa disse...

Adorei os posts, todos! abraço