sábado, 28 de fevereiro de 2009

O escritor enquanto faz a devida vénia


Caros leitores,

Mesmo hoje, quando ponderei tirar o passe L, senti que o compromisso de pagar algo a cada 30 dias exigia a dedicação de quem se alista na Legião Estrangeira. Pago as contas depois do prazo. Nunca comprei uma casa. E cada vez tenho menos coisas para transportar a cada mudança. Mas acreditem que tenho tentado ser mais duradouro que o sabor de uma pastilha de Epá.

Também não tenho site meter (ainda que me olhe demasiadas vezes nas montras das ruas - preciso de um corte de cabelo), nem sei em que partes do mundo me lêem, nem se há citações do que escrevo pela internet. Não me lembro de quando comecei a escrever este blog. Não é desprendimento, é preguiça ou (soa melhor assim) é a necessidade de me concentrar em muitas coisas ao mesmo tempo.

E é por isso que também não costumo responder aos comentários dos que aparecem no meu blog. Tenho algum pudor - ao vivo posso ser um desenvergonhado, no blog tenho o mesmo constrangimento de uma adolescente a quem tentam apalpar as mamas pela primeira vez.

Sou insuficiente, caros leitores. Chego-vos tarde e a más horas. Desapareço. Sou o marido bêbedo que sai para ir ver o jogo no café e só volta para almoçar no domingo com uma tatuagem nova.

Mas tenho mesmo de vos agradecer.

Dobro o corpo numa vénia.

Muito obrigado.

Aos bondosamente chanfrados que decidiram ser seguidores deste blog (clara, busy cat, joaninha versus escaravelho, luciana, sónia, carol e num relance), ofereço também um mortal encarpado. Sou o vosso ginasta chinês. A vossa locutora de continuidade. O boneco dos Marretas. O rapaz que mete música na festa. O pirata a balançar na corda. O escritor num filme de acção. O gajo que grita: bar aberto. O miúdo que se diverte muito, mesmo muito, a escrever isto.

Note to self


Não escrever no blog quando se chega a casa às seis horas e quarenta e cinco minutos da manhã.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Feios, porcos e maus (mas estou bem disposto)


Sade: menino. Dante: poeta de paninhos quentes. Hunter S. Thompson: totó. Se qualquer um deles fizesse compras no Pingo Doce do Campo Mártires da Pátria, teria produzido literatura freak show a sério, infernal, sem dentes na gengiva superior e de cabelo oleoso; literatura de rés-do-chão onde vivem avós, pais, e filhos; poemas de unha encravada e frases gritadas, por adolescentes grávidas, no corredor da higiene pessoal: "Ó mor lê ali o coiso que eu não posso por causa da pança".

Pensava eu ao acordar, observando o castelo e a Graça pela janela: Uma manhã de sexta-feira para pôr um pouco de ordem na vida doméstica e retirar os horários de dentro do cranio. Por isso, atravessei o jardim com patos no lago e galos tão imperiais na crista e nas penas do peito como obtusos no movimento incessante de cabeça. E crianças com as mães, e jovens viajantes, sem t-shirt, a brincar com a sua entourage canina, e relva que cheira sempre a relva, e a ideia de que este pode ser um extraordinário dia para a espécie humana.


Depois da bela, veio o monstro. Se comparadas com este supermercado, Sodoma e Gomorra não passam de parques da Disney. Estou bem, é verdade, sobrevivi aos vegetais moles e murchos como uma actriz velha e sem trabalho; enfrentei o rapaz da caixa que tinha pele de metadona; fui empurrado na fila, afastei-me das abóboras gelatinosas; saí para a rua e atravessei de novo o jardim com a relva que agora cheirava mais a campo do que a relva - cheirava a flores amarelas que se mordem e são amargas.

Lição de um dia que será, de certeza, extraordinário para a espécie com polegar oponível: ou mudo de supermercado, ou transformo-me num escrito maldito.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

O rapaz do eléctrico


Uma mulher portuguesa a usar a língua como palito hidráulico enquanto explica a uma turista francesa que o Mosteiro dos Jerónimos não é em Cascais; uma africana, com o filho ao colo, e rabo que precisa de um reboque, esmaga-me contra a janela assim que se senta a meu lado; a estudante de design que ainda troca os b's pelos v's mas que já sabe fazer olhinhos e fumar ganzas; japoneses, marroquinos, ucranianos, tantos espanhóis, carteiristas, travestis, e o rio a passar nas janelas. Regressei aos transportes públicos de Lisboa, e até tenho aquele cartão que se carrega com dinheiro. Carris: minha musa, tágide laranja, inspiração maior para que este blog seja tão fértil como a Angelina Jolie.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Quarta Feira de Cinzas ou Self Help Manual


Para a Diana

No final, o coração do coração, aquilo que importa, não está na grandiosidade das conquistas nem na queda livre dos falhanços; não está nos rituais do amor, nos domingos sem outra voz dentro de casa, no anonimato, na fama, na impossibilidade de pagar as contas ou no bónus de produtividade que rebenta as costuras da conta bancária. A hipótese de encontrar a verdade encontra-se na forma como nos portamos em cada uma destas situações. Naquilo que conseguimos ser. Naquilo que realmente somos.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Let's look at the trailer


Uma das razões da velocidade arrastada deste blog: um programa de televisão de nove episódios. Fica aqui um trailer, ainda experimental e sem pós produção audio, do Esplendor de Portugal, a estrear em Março, na Sic Radical.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Estou além



Este blog encontra-se como o seu autor - intermitente, nublado, com dores de crescimento, em transição. E, como o seu autor, crente na teoria da evolução dos seres humanos. It's going to be alright. Em breve voltaremos com muito mais graça.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

London (iv)

Talvez um dia viva aqui. Talvez um dia o meu desassossego se enrole e fique quieto. My hunger for the world and places and people is also my anguish. Um dia talvez perceba que não posso ser tudo nem ir a todo o lado. Esse dia já esteve mais distante. Godspeed, London Town.

London (iii)


Em Londres fala-se da crise, mas fala-se de uma forma diferente - não se trata de fazer queixinhas, de afundar os dedos tão fundo nos bolsos que deixamos de conseguir sacar as mãos e pôr-nos em guarda quando é preciso. E é preciso que seja agora.

O Marks & Spencer anuncia o esforço para diminuir o lixo que produz. Os supermercados Sainsbury's incentivam as pessoas a não usar sacos de plástico. Na rua, cartazes mostram a cara de um rapaz, com nariz de porco, e alertam contra a falta de civismo daqueles que atiram lixo para o chão. Celebra-se por esta altura o Red Nose Day: nas empresas, ou em casa, as pessoas são encorajadas a fazer algo com graça a fim de conseguir dinheiro para a caridade. Há agora, por exemplo, menos autocarros nas ruas (talvez muita gente não tenha percebido, mas temos de recuar nos nossos espalhafatosos exercícios de abundância). O problema não é apenas a crise, mas como reagimos. E aqui reage-se.

Um amigo português, a viver em Londres, contava-me que outro amigo, também português, com morada na Suécia, apanhava boleia para o emprego com um colega que gostava de chegar meia hora antes de tempo. O carro entrava no enorme parque de estacionamento e o sueco insistia em estacionar longe da porta. O português perguntou-lhe um dia a razão pela qual deixava o carro no outro lado do parque quando podia estacioná-lo ao lado da porta. O sueco disse: "Porque eu tenho tempo. Quem chegar atrasado precisa de ficar mais perto da entrada."

Não nos enganemos. Em Londres há sujidade, e miúdas adolescentes a comportarem-se como estivadores e crime e selvajaria. Mas há uma diferença. Tanto em Londres como nesse parque de estacionamento na Suécia há mãos em guarda, fora dos bolsos, porque
o progresso de uma sociedade não se mede apenas pelo tamanho e profundidade dos seus problemas, mas sim pela vontade das pessoas em resolver esses mesmos problemas.

London (ii)

London (i)


This is my last day here. I always felt, when I visited (and I visited so often), that I was part of this strong and fascinating organism. London empowers me but also trashes my heart. Last night I looked out the window and I saw two slim and elegant cranes - so strong and beautiful they could've been imagined by a famous designer. It was sunday, the city was slowly coming to peace, breathing silently, and I could admire the rain against the street lights, and how those quiet and heavy cranes hung over a construction site - I felt that I was that interrupted building: uncomplete, broken, half way to someplace more clear and certain and solid.

This morning I look out another window. I am in a different part of town. Still I feel the courage to look out and watch this city: tall buildings with strange shapes, one airplane flying away, disappearing behind the clouds (like I will soon). I remember now what I once heard: "I am not yet the man I want to be, but I'm not the man I was yesterday". Talvez isso me sirva de atenuante para os danos colaterais que vou deixando pelo caminho. I am so sorry that my heart shrinks and then spreads dangerously like shrapnel. I am sorry I fall short. I am sorry. I stand up, I pack my things, I roll up the collar of my overcoat, I face the rain. I feel raw. This is life.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

No man is an island


Não vi sequer a cara dos interlocutores. Sei que a janela da Sic Notícias estava aberta no ecrã do computador, e que duas pessoas falavam. Não fui sequer a tempo de encontrar as expressões faciais a fim de encaixá-las nas palavras. O repórter perguntou:

"Valeu a pena ser sério?"

E antes da resposta um silêncio, uma pausa que acentuava a dificuldade de assumir o desgosto, a desilusão e a impotência.

"Não, não valeu a pena ser sério".

E depois a reportagem acabou. Não fui a tempo de ver a cara do homem cujas cordas vocais tinham desistido, mas percebi o doloroso baixar de braços de alguém que, fazendo o bem, acabou mal.

E então alguma coisa se encolheu dentro de mim, como se a derrota de um desconhecido fosse também a minha. Isso ou o medo de um dia ter de dizer: "Não, não valeu a pena ser sério."

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

O Russo, o Comediante e os Drogados


O senhor Russo nasceu na Galiza, cresceu em Portugal e trabalhou em Barcelona antes de alugar a sua casa de quarenta metros quadrados no boémio e artístico bairro de Malasaña, em Madrid. É uma criatura ibérica que não gosta de grandes causas nacionais ou bandeiras ao vento. O Russo, que ganhou esta alcunha durante a adolescência – talvez pelos olhos azuis e o cabelo loiro –, passou a ser tratado por “senhor” entre alguns dos seus amigos pela mesma razão que a sua pequena casa ficou conhecida como a “Colmeia”: porque esse amigos respeitam as suas escolhas de vida e atribuem ao senhor Russo uma condição de pensador e homem livre. O senhor Russo, que trabalha como recepcionista num hotel, no horário da noite, tem amigos designers, músicos, jornalistas, consultores. Lia Nietzsche durante a adolescência (o que não agradou aos padres do seu colégio), colecciona filmes e comics, mandou-me um email, após a vitória de Barak Obama, em que confessava ter-se comovido com o discurso de ambos os candidatos na noite das eleições norte-americanas. O senhor Russo já visitou Amesterdão 13 vezes e fuma o equivalente a um maço de ganzas por dia.

Um dos seus amigos, um produtor peruano chamado Alexei Lock, comparou-o aos botânicos europeus que, no século 18, se aventuraram pela América do Sul a fim de encontrar e classificar novas espécies. O senhor Russo é curioso e interessado. Põe um empenho académico em tudo o que o fascina. Gosta de futebol, de Playstation, de documentários, de filmes de terror, de música, e está a aprender francês (há já alguns anos, disse-me). Filho da classe média alta, tem a clarividência para afirmar: “Desde muito cedo percebi que tinha mais do que aquilo que precisava para viver.” Não sendo franciscano, o senhor Russo não se apresenta como um entusiasta dos objectos, das casas ou dos carros. Reconhece que não tem a motivação suficiente para participar em manifestações, mas preocupa-se, debate, e investiga. Não vai salvar o mundo sozinho, é certo, mas também não anda a fazer-lhe mal. De uma forma que a maioria considera talvez pouco comum, o senhor Russo é livre.

Em tempos, o comediante Bill Hicks criticou a imprensa por nunca mostrar casos de consumo de drogas que apresentem bons resultados, preferindo focar-se sempre nas desgraças. Hicks disse: “As drogas fizeram coisas boas por nós. Se não acreditam, agarrem em todas as cassetes, álbuns e cds, e queimem-nos, porque os músicos que fizeram essas grandes canções, que melhoraram as vossas vidas ao longo dos anos, estavam real fucking high”. O senhor Russo, claro, é um simpatizante da doutrina Hicksiana.

Há um aforismo moderno que garante que anda meio mundo a comer o outro meio, mas que ninguém sabe de nada. O mesmo se pode dizer das drogas: o criativo que entra na reunião depois de aspirar dois gramas de coca na noite anterior a fim de fechar a campanha; a tia de botas Gucci e solário no inverno, que comeu meia lamela de Xanax antes de levar os filhos à escola; o estudante de engenharia que anda em ácido há três dias, mesmo durante o turno de trabalho na loja de fotocópias; o jornalista a speed, o dirigente de futebol a whisky velho, o político a anti-depressivos, a menina da caixa do supermercado a fumar chinesas. Porque nem todos os que consomem droga têm os braços com picotado ou andam a roubar casas. As pessoas, muitas pessoas, drogam-se. E entre essas pessoas há aqueles que pisam o risco e aqueles que passam para o outro lado do espelho. Há os Steve Jobs, os Elvis, os senhores Russos, os carouchos.

Steve Jobs, fundador da Apple e inventor do Ipod, queimou muito charro durante a vida, lavava pouco o cabelo comprido, e tripava em ácido na Índia. Não se deu mal.

Elvis escandalizava o pudor americano assim que desengonçava as pernas, rockandrolou, e depois drogou-se como um leitão esfomeado num lamaçal de bolotas. Desgraçadamente, Elvis rebentou. Começou bem, acabou mal.

O senhor Russo não irá descobrir a cura para o cancro, mas os seus serões de cinema e discussão na Colmeia, nessa atmosfera de fumo caramelizado, estimulam a criatividade e não danificam ninguém.

O caroucho, esse, está quase sempre condenado: nenhum sucesso, nenhum equilíbrio, nenhuma normalidade.

Hicks dizia que Deus não se pode ter enganado ao criar algo que tantos homens condenam (falava da marijuana). Ou seja, os homens sim estão enganados. Isto serve para dizer que a droga não é boa nem é má, é apenas um instrumento nas mãos capazes ou incapazes dos seres humanos, e por isso pode transformar-se numa música dos Rolling Stones ou pode transformar-se no meu tio heroinómano que, antes de chegar aos 40, espatifou a família inteira e a própria vida sem que houvesse qualquer possibilidade de arranjo.

Por mais sofrimento que a droga cause, não posso dizer que é absolutamente má. E mesmo que acredite que algumas drogas podem, como diz Hicks, ser almofadas que aceleram o nosso desenvolvimento, não posso dizer que é absolutamente boa.

Há muito mais gente a drogar-se do que imaginamos, de biólogas doutoradas, em modo mdma numa tenda do Boom Festival, aos colegas de escritório que, a meio da noite, se apertam nalguma casa de banho enquanto enrolam uma nota de cinco euros. Muitos dos dos nossos amigos, dos nossos conhecidos, das pessoas que admiramos, que saltariam de um carro para ajudar as vítimas de um acidente, que nos fazem rir, que cuidam bem dos filhos e que pagam impostos, drogam-se ou já se drogaram. Mas admitir isso é admitir que as drogas podem estar associadas a algo bom e, na nossa lógica de prazer e culpa, o que é bom jamais pode ser mau ao ponto de arruinar a dignidade humana.

O tema das drogas suscita ainda muito cautela, murmurinhos de Igreja, e assobios para o lado. Mas se tanta gente se droga, porque não se fala disso? Não é a ignorância o principal inimigo do esclarecimento? É melhor ter o gorila na sala, silencioso, a um canto, e fingir que não há gorila algum? O livro “The Painted Veil”, de Somerset Maugham, é em si mesmo uma metáfora: Que fazer? Ficar sentado comodamente, contemplando a beleza do véu, ou procurar o que está por trás dele (muito possivelmente com custos e perdas) em busca da verdade que, por norma, é mais recompensadora que a ignorância?

No final, fica-me ainda a coloquialidade da frase que desengatilhou este artigo: “As pessoas drogam-se bué”. Eu queria perceber melhor essa verdade, a tal que está por trás do véu.

Sim, as drogas matam, e destroem, e arruinam ferozmente a beleza humana. Todos aqueles que as utilizam podem falhar na curva. Ninguém está a salvo da queda. Mas também posso fazer minhas as palavras de Bill Hicks: “You never see positive drug stories in the news, do you? That’s weird since most experiences I’ve had on drugs… were real fucking positive”

E essa (com algumas excepções) é a minha verdade.