segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

O Russo, o Comediante e os Drogados


O senhor Russo nasceu na Galiza, cresceu em Portugal e trabalhou em Barcelona antes de alugar a sua casa de quarenta metros quadrados no boémio e artístico bairro de Malasaña, em Madrid. É uma criatura ibérica que não gosta de grandes causas nacionais ou bandeiras ao vento. O Russo, que ganhou esta alcunha durante a adolescência – talvez pelos olhos azuis e o cabelo loiro –, passou a ser tratado por “senhor” entre alguns dos seus amigos pela mesma razão que a sua pequena casa ficou conhecida como a “Colmeia”: porque esse amigos respeitam as suas escolhas de vida e atribuem ao senhor Russo uma condição de pensador e homem livre. O senhor Russo, que trabalha como recepcionista num hotel, no horário da noite, tem amigos designers, músicos, jornalistas, consultores. Lia Nietzsche durante a adolescência (o que não agradou aos padres do seu colégio), colecciona filmes e comics, mandou-me um email, após a vitória de Barak Obama, em que confessava ter-se comovido com o discurso de ambos os candidatos na noite das eleições norte-americanas. O senhor Russo já visitou Amesterdão 13 vezes e fuma o equivalente a um maço de ganzas por dia.

Um dos seus amigos, um produtor peruano chamado Alexei Lock, comparou-o aos botânicos europeus que, no século 18, se aventuraram pela América do Sul a fim de encontrar e classificar novas espécies. O senhor Russo é curioso e interessado. Põe um empenho académico em tudo o que o fascina. Gosta de futebol, de Playstation, de documentários, de filmes de terror, de música, e está a aprender francês (há já alguns anos, disse-me). Filho da classe média alta, tem a clarividência para afirmar: “Desde muito cedo percebi que tinha mais do que aquilo que precisava para viver.” Não sendo franciscano, o senhor Russo não se apresenta como um entusiasta dos objectos, das casas ou dos carros. Reconhece que não tem a motivação suficiente para participar em manifestações, mas preocupa-se, debate, e investiga. Não vai salvar o mundo sozinho, é certo, mas também não anda a fazer-lhe mal. De uma forma que a maioria considera talvez pouco comum, o senhor Russo é livre.

Em tempos, o comediante Bill Hicks criticou a imprensa por nunca mostrar casos de consumo de drogas que apresentem bons resultados, preferindo focar-se sempre nas desgraças. Hicks disse: “As drogas fizeram coisas boas por nós. Se não acreditam, agarrem em todas as cassetes, álbuns e cds, e queimem-nos, porque os músicos que fizeram essas grandes canções, que melhoraram as vossas vidas ao longo dos anos, estavam real fucking high”. O senhor Russo, claro, é um simpatizante da doutrina Hicksiana.

Há um aforismo moderno que garante que anda meio mundo a comer o outro meio, mas que ninguém sabe de nada. O mesmo se pode dizer das drogas: o criativo que entra na reunião depois de aspirar dois gramas de coca na noite anterior a fim de fechar a campanha; a tia de botas Gucci e solário no inverno, que comeu meia lamela de Xanax antes de levar os filhos à escola; o estudante de engenharia que anda em ácido há três dias, mesmo durante o turno de trabalho na loja de fotocópias; o jornalista a speed, o dirigente de futebol a whisky velho, o político a anti-depressivos, a menina da caixa do supermercado a fumar chinesas. Porque nem todos os que consomem droga têm os braços com picotado ou andam a roubar casas. As pessoas, muitas pessoas, drogam-se. E entre essas pessoas há aqueles que pisam o risco e aqueles que passam para o outro lado do espelho. Há os Steve Jobs, os Elvis, os senhores Russos, os carouchos.

Steve Jobs, fundador da Apple e inventor do Ipod, queimou muito charro durante a vida, lavava pouco o cabelo comprido, e tripava em ácido na Índia. Não se deu mal.

Elvis escandalizava o pudor americano assim que desengonçava as pernas, rockandrolou, e depois drogou-se como um leitão esfomeado num lamaçal de bolotas. Desgraçadamente, Elvis rebentou. Começou bem, acabou mal.

O senhor Russo não irá descobrir a cura para o cancro, mas os seus serões de cinema e discussão na Colmeia, nessa atmosfera de fumo caramelizado, estimulam a criatividade e não danificam ninguém.

O caroucho, esse, está quase sempre condenado: nenhum sucesso, nenhum equilíbrio, nenhuma normalidade.

Hicks dizia que Deus não se pode ter enganado ao criar algo que tantos homens condenam (falava da marijuana). Ou seja, os homens sim estão enganados. Isto serve para dizer que a droga não é boa nem é má, é apenas um instrumento nas mãos capazes ou incapazes dos seres humanos, e por isso pode transformar-se numa música dos Rolling Stones ou pode transformar-se no meu tio heroinómano que, antes de chegar aos 40, espatifou a família inteira e a própria vida sem que houvesse qualquer possibilidade de arranjo.

Por mais sofrimento que a droga cause, não posso dizer que é absolutamente má. E mesmo que acredite que algumas drogas podem, como diz Hicks, ser almofadas que aceleram o nosso desenvolvimento, não posso dizer que é absolutamente boa.

Há muito mais gente a drogar-se do que imaginamos, de biólogas doutoradas, em modo mdma numa tenda do Boom Festival, aos colegas de escritório que, a meio da noite, se apertam nalguma casa de banho enquanto enrolam uma nota de cinco euros. Muitos dos dos nossos amigos, dos nossos conhecidos, das pessoas que admiramos, que saltariam de um carro para ajudar as vítimas de um acidente, que nos fazem rir, que cuidam bem dos filhos e que pagam impostos, drogam-se ou já se drogaram. Mas admitir isso é admitir que as drogas podem estar associadas a algo bom e, na nossa lógica de prazer e culpa, o que é bom jamais pode ser mau ao ponto de arruinar a dignidade humana.

O tema das drogas suscita ainda muito cautela, murmurinhos de Igreja, e assobios para o lado. Mas se tanta gente se droga, porque não se fala disso? Não é a ignorância o principal inimigo do esclarecimento? É melhor ter o gorila na sala, silencioso, a um canto, e fingir que não há gorila algum? O livro “The Painted Veil”, de Somerset Maugham, é em si mesmo uma metáfora: Que fazer? Ficar sentado comodamente, contemplando a beleza do véu, ou procurar o que está por trás dele (muito possivelmente com custos e perdas) em busca da verdade que, por norma, é mais recompensadora que a ignorância?

No final, fica-me ainda a coloquialidade da frase que desengatilhou este artigo: “As pessoas drogam-se bué”. Eu queria perceber melhor essa verdade, a tal que está por trás do véu.

Sim, as drogas matam, e destroem, e arruinam ferozmente a beleza humana. Todos aqueles que as utilizam podem falhar na curva. Ninguém está a salvo da queda. Mas também posso fazer minhas as palavras de Bill Hicks: “You never see positive drug stories in the news, do you? That’s weird since most experiences I’ve had on drugs… were real fucking positive”

E essa (com algumas excepções) é a minha verdade.

1 comentário:

Marta disse...

E mais importante que lermos sobre as nossas verdades (que essas conhecemos bem) é lermos sobre as verdades dos outros. Que podem ser tão ou mais verdadeiras que as nossas. Tirem-se as vendas dos olhos! Bom texto ;)