terça-feira, 29 de junho de 2010

Dia de jogo na crónica do i


La cogida y la muerte

Gosto de Espanha, das sombras do bairro de Malasaña durante a sesta e do furor dos madrilenos assim que o sol começa a baixar e as mesas se cobrem de copos. Gosto de “tortilla de patata”, de salmorejo e de tabaco Fortuna. Gosto dos pátios de Córdoba, das praias de Tarifa, da sidra asturiana que sobe ao cérebro como uma bala de prata. Gosto da auto-estrada para Sevilha, os seus puticlubes com neons na berma, ondas de calor a estremecer como água na planície, uma mulher a dizer-me: “Uma esplanada às sete da tarde, com este calor? És louco?” Gosto da palavra “Joder”. Gosto do matador José Tomas, porque mostra uma entrega, em cada movimento da muleta, que poucos humanos conseguem pôr naquilo que amam – e porque uma mulher lhe gritou: “Me has arrancado mi corazón y ahora lo tengo en un puño”. Gosto das palavras espanholas de Juan José Millás, inscritas na carne da memória como um bisturi que também cicatriza. Gosto da aldeia de Castela La Mancha onde os velhos me falaram da guerra civil. Gosto das praias pintadas por Sorolla e das mulheres que atacam, seguras, nos seus saltos altos. Gosto muito de Espanha e do poema de Lorca, “La cogida y la muerte”, que diz que “a las cinco de la tarde eran las cinco en punto de la tarde”. Mas, ao contrário do que diz o poema, a criança não aparecerá com um lençol branco – aparecerá um homem português, vestido com a cor do sangue derramado na praça de Lorca. Hoje, às sete e meia em ponto, não serão as hastes do touro a penetrar o coração. O sangue – España, mi amor – estará dentro da tua baliza.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Noite em branco, reportagem publicada na Index, revista do i


Um homem que sai sozinho à noite, com calças brancas, não pode recusar a bondade dos estranhos. É por isso que estou na rua, entre espanhóis que me oferecem bebida, comida e cigarros. Começo a ficar menos consciente da minha roupa de primeira comunhão porque eles, tal como eu e outras quinze mil pessoas, se vestiram de branco para entrar na festa Sensation White, no Pavilhão Atlântico. Samuel Prieto é o líder do grupo de andaluzes. Tem o peito largo, o cabelo com gel, uns óculos escuros pendurados na gola da t-shirt. Quero fazer-lhe perguntas mas Samuel não descansa enquanto não mastigo a tortilha de batatas da sogra. E faz piadas: “A minha sogra é uma grande tortillera” – em castelhano tortillera também quer dizer fufa. Os espanhóis chegaram de Huelva. Têm três geleiras com comida e um bar na carrinha estacionada ao lado do Pavilhão. O rádio toca música electrónica para quem passa, como num arraial – a batida é um coração gigante a pulsar nos tímpanos. Depois de mandar a namorada servir-me uma dose (dupla) de rum, Samuel diz: “Gastámos 200 euros por cabeça, incluindo o bilhete, que custou 65, eu gastei 400 porque paguei a parte da minha namorada.” Não há crise económica em Huelva? “Tenho uma empresa de ar condicionado num sítio onde faz muito calor.” Samuel pergunta se quero outra bebida.

Em Huelva, dizem, não há tanta variedade de gente, nem aparecem Dj’s de primeira linha. “Não há afluência [de pessoas]”, conta Samuel. Olho para a roupa e atitude de uma das miúdas espanholas, com óculos de massa, que podia ser estudante de belas artes em Berlim, e percebo que a globalização é um facto consumado. Huelva pode não ter festões cosmopolitas, mas tem internet. Só o sotaque andaluz, tão sibilado como uma lâmina na pedra do amolador, denuncia as origem dos viajantes. Eles podem ser de Huelva, mas apresentam-se como num vídeo clip. O que procuram? “Pasarlo bién”, respondem. Ou seja, curtir largo. Grato ao meu anfitrião, ofereço-lhe um cigarro. Samuel, o macho alfa generoso, diz: “Obrigado mas não fumo lights”, e saca de um Malboro a sério. Já começou o espectáculo de abertura e a nave mãe chama os seus discípulos. Há filas para entrar.

Estou no salão vip delux como num céu almofadado, envolto na gaze branca com que o rum duplo embrulhou o meu cérebro. Tudo é branco e vasto e cruzo-me com meninas de calções curtos e asas de anjo prateadas. Têm ancas estranhamente magras e pernas longamente jovens. Pergunto-me sem têm idade legal para estar ali (“Lolita: a ponta da língua fazendo uma viagem de três passos pelo céu da boca, a fim de bater de leve, no terceiro, de encontro aos dentes. Lo. Li. Ta.”) Tem lógica. O tema da festa, “Wicked Wonderland”, mistura sonhos infantis, alusões ao País das Maravilhas, borboletas, fatos teatrais, cintos de ligas e uma ou outra prática de dominação – mais tarde, no palco, bailarinas irão passear outras bailarinas pela trela.
Saio da calma vip (ainda é muito cedo) e enfio-me pelos túneis brancos, piso alcatifa branca, e entro por fim na escuridão momentânea da pista de dança principal. Depois as luzes acendem-se, o som é poderoso, o cenário imperial. O espectáculo está no palco, no centro da pista. Milhares de pessoas de branco dançam viradas para o Dj. Lisa Stutterheim, mulher do criador da festa, tinha razão quando disse: “Não é uma rave, é um cruzamento entre um concerto, o Cirque Du Soleil e um evento de dança.”

Embora com roupa da mesma cor, todos os participantes querem ser diferentes, saciando na pista a necessidade humana e contemporânea que ordena: sintam-se parte de alguma coisa comum mas desenvolvam uma identidade distinta. Esta é a tribo Sensation White: irmãos de branco durante algumas horas, fiéis da música electrónica, seguidores de Dj’s celebridades, hedonistas imediatos, dançarinos furiosos, sedutores à espreita, exibicionistas aperaltados, utilizadores do corpo com claras noções dos benefícios do pecado, cada um sentido-se singular e contrariando as certezas de Tyler Durden: “Não és especial. Não és um floco de neve bonito e único.”

Fuck Tyler Durden – as pessoas na pista não vieram ouvir sermões. Vieram, já se sabe, para curtir. Este é o nosso coliseu romano. Não matamos cristãos nem aplaudimos gladiadores. O espectáculo agora somos nós, o nosso corpo a subir com a música, o culto do eu e dos acessórios de moda: rapazes de t-shirt de alças com lentes de contacto que imitam os olhos dos vampiros, um homem de saias brancas e cabelo de Jesus Christ Super Star, negros com máscaras venezianas brancas, milhares de óculos escuros, a ocasional Monica Selles com roupa de jogar ténis, o rapaz com chapéu de basebol largo na cabeça e atitude de gangster rapper, as duas miúdas que posam uma para a outra, as duas miúdas que se beijam na primeira de várias cenas girl on girl. E para que tudo seja mais especial e memorável, há sempre telemóveis levantados entre a multidão para filmar o palco, os fogos de artifício, a própria multidão aos gritos.

Horas mais tarde, no camarote presidencial, olho para a pista, lá em baixo, e percebo que há tanto de ritual, na forma como milhares de pessoas dançam em redor do altar do Dj, como nos milhões de muçulmanos que todos os anos, vestidos de branco, dão sete voltas a Kaaba, em Meca. André Resende, 30 anos, um dos sócios da Hype, empresa portuguesa responsável por trazer a festa para Lisboa, explica-me o mito fundacional da Sensation White: “O irmão do criador do conceito tinha morrido umas semanas antes da primeira festa. Ele não sabia se cancelava ou não mas decidiu que podia homenagear o irmão se fossem vestidos de branco. É uma forma de recordar o irmão todos os anos.” Essa festa de estreia aconteceu em 2000, em Amesterdão, com 20 mil pessoas no estádio do Ajax. Dez anos mais tarde, a Sensation White acontece também na República Checa, Espanha, Bélgica, Polónia, Alemanha, Chile, Brasil e Russia. André diz que o espectáculo, que dura oito horas, custou cinco milhões de euros a desenvolver. Depois os holandeses vendem-no para diferentes cidades. Duncan Stutterheim, o tal fundador, dono da empresa ID&T, é um dos homens mais ricos da Holanda.

Pergunto quanto custa uma mesa no vip deck, mesmo ao lado do camarote presidencial. André diz: “Três mil e quinhentos euros, para oito pessoas, com direito a oito garrafas.” Quem costuma reservá-las: jogadores de futebol que trazem os amigos de infância, empresas que gostam de mimar os clientes. Durante a noite, há quem compre mais garrafas para as mesas (150 euros) e ofereça 50 euros de gorjeta às empregadas giras. André também me explica, com entusiasmo pelas coisas mecânicas, como funciona a esfera que faz rodar o palco – os amigos alcunharam-no de “Tetris” por estar sempre a organizar geometricamente os objectos em cima da secretária.

Estica o braço para os ecrãs gigantes, para o filme que passa entre a mudança de Dj’s: “É a história de uma miúda, meio inocente, que vai abrindo portas até encontrar o caminho. Em cada porta há um tipo de música diferente, no fim está com outra mulher, vestida de cabedal preto” – nunca uma metáfora pareceu tão adequada para o que acontece durante a noite. Saímos de casa engomados, cheirosos, imaculados, acreditando nas surpresas do caminho, abrindo portas, e acabamos corrompidos, com os sapatos sujos, a roupa colada na pele, o corpo gasto. Não nos enganemos, as pessoas saem à noite para se comerem. Não se trata apenas de sexo, não é isso – pode ser o flirt com os empregados de bar, podem ser os sapatos de salto agulha, pode ser a vontade que gostem de nós, pode ser o jogo da caça, pode ser a dança da namorada que activa o desejo numa relação que dura há sete anos. A noite é uma forma de strip-tease: as pessoas ficam mais acesas, mais vulneráveis na carne, menos domesticadas. E não é por acaso que as meninas que vendem senhas de bebidas têm todas a mesma t-shirt com um decote acentuado ou que as bailarinas no palco estão vestidas como se para acompanhar a excentricidade de Lady Gaga, a rebeldia sexual de Madonna ou as ancas maleáveis de Shakira. O sexo vende, cativa e deslumbra. Quem disser o contrário, na Sensation White, é tolo.

Tudo isto parece evidente para Fred, rapaz educado e de boas maneiras, ex-habitante de outros países, conhecedor de festas internacionais, que sabe que a cumplicidade entre homens se constrói, tantas vezes, a falar de mulheres. E no salão vip delux há muitas mulheres bonitas, celebridades da televisão, meninas betas e de solário, agentes provocadoras por uma noite. Fred diz, com discrição: “Olha aquela”. E, no meio de tantos vestidos curtos e saltos altos, entre pernas morenas e tonificadas, na confusão apetecível de penteados e lip gloss, torna-se difícil identificar a escolhida de Fred, que acrescenta: “É aquela, com as orelhinhas de coelho na cabeça”. Quando lhe pergunto o que acha da festa, ele responde: “É elevar a rambóia de Lisboa a outro patamar.” Resolvo acompanhá-lo no caminho para a pista principal. Ele diz a frase de ordem das noites de dança: “Embora lá para o meio”. Quanto mais perto do Dj mais perto do centro do prazer. Depois perdemo-nos um do outro.

Desde segunda-feira que André Resende dorme num hotel para estar mais perto do pavilhão. Tem poucas horas de sono e ainda que confesse que, ao ver-se de branco, no espelho do quarto, tenha pensado, “Olha o Mickael Carreira”, o casaco e os ténis Converse parecem o uniforme de um empresário da noite de Miami. Desloca-se pelo pavilhão numa trotinete, falando com os colaboradores que precisam de ajuda, sendo parado a cada cinco metros por amigas, conhecidos, funcionários, um careca de gigantes olhos azuis, com pele bronzeada e músculos de legionário no deserto, que mais tarde me dirá: “Esta festa devia ser todas as semanas”.

Cruzamos as entranhas do pavilhão, onde o público não tem acesso, passamos por tubos e empilhadoras, até que entramos numa pequena sala onde um homem gordo escuta as comunicações de rádio. Diz que alguém precisa de uma acreditação. André, o solucionador dos problemas, trata disso e explica-me que tencionava simplificar as coisas desde o início: “Só queria três tipos de pulseiras para as diferentes áreas, mas não conseguimos. Há 16 pulseiras e três acreditações.” O rebanho de quinze mil pessoas precisa de ser distribuido e arrumado. É um monstruoso processo de organização.

Mas por que vem esta gente toda para aqui, dançar, vestida de branco?, pergunto. E André responde: “O que a nossa geração quer é pão e sensations”, e solta uma gargalhada, sabendo que aquilo que disse está entre o slogan de refrigerante e a análise sociológica. Por fim, abandona a trotinete e leva-me para o salão vip. Não nos voltaremos a ver.

Tanto na pista principal como nas áreas vip uma coisa é certa: hoje, os portugueses cuidam mais da aparência. Os espectáculos com passadeira vermelha, trasmitidos na televisão, as revistas de moda, as fotografias de famosos, as lojas globais de roupa, serviram para apurar o estilo. Esta é a geração que nasceu em democracia e para quem a liberdade é também uma autorização para usar o corpo como bem entender, sem restrições morais, com voracidade – seja através do sexo, das drogas, do álcool, da dança, da roupa com etiqueta de marca. Não há, nesta festa, a sensação apocalíptica do fim de uma era, como se o império da boa vida estivesse próximo do fim. Duvido que na pista alguém pense que os salários irão mesmo baixar, que o modelo social europeu corre perigo ou que as pensões de reforma e as noites de dança estão em risco. Este tipo de festas já faz parte do estilo de vida, como o Natal, as férias de verão, o décimo terceiro mês. São um direito adquirido. Este não é um lugar para a austeridade, é um escape para o excesso.

Já a caminho da saída, encontro um dos espanhóis, de língua alcoolizada, mas ainda capaz de dizer: “Perdi-me dos meus amigos, é impossível achar alguém aqui, estão todos vestidos de branco.” São quatro e meia da manhã, a sobriedade e o cansaço empurram-me para a rua, onde os prédios do Parque das Nações se acumulam como legos mal amanhados, símbolo do mau gosto e da opulência de outros tempos. Não há nenhum prenúncio de austeridade – o que a nossa geração quer é pão e sensations. Vejo uma luz verde, estico o braço no ar, não preciso sequer de gritar a palavra mais importante no fim de uma noite: táxi.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

O verão começa hoje








O VERÃO

Estás no verão,

num fio de repousada água, nos espelhos perdidos sobre

a duna.

Estás em mim,

nas obscuras algas do meu nome e à beira do nome

pensas:

teria sido fogo, teria sido ouro e todavia é pó,

sepultada rosa do desejo, um homem entre as mágoas.

És o esplendor do dia,

os metais incandescentes de cada dia.

Deitas-te no azul onde te contemplo e deitada reconheces

o ardor das maçãs,

as claras noções do pecado.

Ouve a canção dos jovens amantes nas altas colinas dos

meus anos.

Quando me deixas, o sol encerra as suas pérolas, os

rituais que previ.

Uma colmeia explode no sonho, as palmeiras estão em

ti e inclinam-se.

Bebo, na clausura das tuas fontes, uma sede antiquíssima.

Doce e cruel é setembro.

Dolorosamente cego, fechado sobre a tua boca.

José Agostinho Baptista

sábado, 19 de junho de 2010

O Homem Duplicado


José Saramago, com ofício de escritor, passou na esquina da Spring com a Greenwich, em Nova Iorque, numa tarde de 2002, quando o empregado Hugo Gonçalves, com o restaurante vazio, lia o romance “Money”, de Martin Amis. O rapaz levantou a cabeça sem nenhum motivo que o justificasse e, enquadrado na porta, no outro lado da rua, descobriu o escritor. Hugo saiu e estendeu-lhe a mão. O escritor perguntou o que fazia o rapaz naquela cidade. O que importa mencionar dessa conversa é aquilo que, por pudor e bom senso, o rapaz não disse (que andava a escrever o seu primeiro romance e que podia prová-lo com as notas guardadas atrás do balcão). Quatro anos depois, Hugo Gonçalves, cliente de um restaurante em Madrid, esperava o seu hambuguer e lia uma revista. Mais uma vez, levantou a cabeça sem nenhum motivo que o justificasse, e através da porta encontrou o escritor. Saiu para a rua de mão estendida, arriscando mencionar a coincidência – dois portugueses, duas cidades, dois restaurantes, duas esquinas. Não referiu, claro, e ainda bem, que tinha publicado o tal romance. “Senhor Saramago, eu também escrevo”, foi frase que não se disse naquela esquina. Desses encontros, há um exemplar de “Money” com a assinatura de Saramago e a sensação que o acaso dos eventos em Nova Iorque e Madrid podia ser a premissa de um romance. Não foi, nem será. Ficou por dizer: Senhor Saramago, eu também escrevo, e a si cabe-lhe alguma responsabilidade. Depois de ler um dos seus livros, pensei: “Quero saber como se faz isto tão bem”. Prometo-lhe que continuarei a tentar.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Oração do escritor


"Estou comprometido, ou seja, vivo, num mundo que é um desastre. O meu empenho está em não separar o escritor da pessoa que sou. Esforço-me, na medida das minhas possibilidades, em tratar de entender e explicar o mundo».

José Saramago.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

crónicas no i



Rumo ao sul


Há anos que não cruzava o país de autocarro, como antes, quando no alcatrão que cicatrizava o Alentejo apertávamos os dedos nos estofos a cada ultrapassagem porque havia sempre alguém que falhava uma curva. Tínhamos a certeza que não havia no mundo viagem mais longa – uma aventura que só terminava na placa “Algarve” quando nos percebíamos perto das corridas de caricas e dos concursos de mortais para a piscina. Mas agora descer o país de autocarro é diferente. Há máquinas de bebidas no cais de partida e revistas que nos entretêm durante as duas horas e pouco (tão pouco) em que deslizamos na auto-estrada. Há ainda a babilónia linguística dos miúdos viajantes e estrangeiros, com phones brancos nas orelhas, que agora atravessam a Europa como quem vai ao pão. Há bancos de couro como num descapotável, televisões que mostram os horóscopos, um WC onde caberia uma família monoparental. E, claro, tenho sempre a mesma sorte em comboios, aviões e autocarros – a brasileira gira passou por mim mas foi a velha com cabelo de fuzileiro que ficou a meu lado: “Desligue aí o ar condicionado que não me dou bem com essa coisa.” Há, no entanto, coisas que não mudam: assim que chegamos ao destino e abandonamos o ambiente controlado da nave espacial, somos abocanhados por esse calor com cheiro de figos, capim, alfarrobas, pinhas e terra vermelha das falésias, esse calor musicado por cigarras e grilos e regadores de relva, esse calor cá de baixo, esse calor algarvio. Então, temos a certeza que somos outra vez tudo aquilo que fomos em todas as férias grandes.

Todos os nomes


No dia 4 de Abril de 1989, não valeu a Maristela Just encontrar-se na residência dos pais, no misericordioso bairro da Piedade, em Jaboatão de Guararapes, segunda cidade do estado tropical de Pernambuco, quando o legítimo marido, José Ramos Lopes Neto, de quem estava separada há dois anos, apareceu com uma arma de fogo para matar toda a família. O atacante, filho do advogado criminalista Gil Teobaldo, trancou-se num quarto com a família, disparando três vezes sobre a mulher e acertando na cabeça da rapaz (com dois anos), no ombro da rapariga (com quatro anos) e algures no cunhado, Ulisses Just, que aparecera em missão de socorro. O homicida foi detido e enviado para a penitenciária Aníbal Bruno, em Tejipió. No julgamento, que aconteceu esta semana e durou 13 horas, testemunharam Natália Just e Zaldo Neto (os filhos sobreviventes), Harlan de Andrade (policial civil), ficando por ouvir Gilson Calábria e Walter de Figueiredo Filho, testemunhas ausentes. Pela morte da mulher, o réu foi condenado, por um júri popular, a 79 anos em regime fechado. José Ramos Lopes Neto, que desapareceu há 20 anos quando lhe foi concedido um habeas corpus, também não marcou presença em tribunal embora, como disse a juíza Inês Maria de Albuquerque, tenha sido feita uma busca ao réu sem que este fosse encontrado em seu endereço. No final, a filha perguntou: “E se ele decidir terminar o que começou [há 21 anos]?” Não há motivos de alarme: José Inaldo Cavalcanti, nomeado pelo Estado para defender José Ramos Lopes Neto, explicou que jamais fora contactado pelo réu.

No fio da navalha


Fomos criados com supermodelos na imaginação erótica e conhecemos a intimidade das actrizes perfeitas no ecrã do computador. Para manter sustentável este mundo de fantasia, acreditamos na globalização da cirurgia plástica para as mulheres. Contudo, este galopante processo de uniformização da beleza feminina, com milhões de aderentes em todo o mundo, e que tanto se inspira nas modelos da “Vogue” como na actriz recauchutada da novela da Globo, está em declínio na Europa e nos Estados Unidos, país líder em número de plásticas. Em Espanha, por exemplo, as cirurgias estéticas caíram 30% por causa da crise, com destaque para as raparigas entre os 18 e os 22 anos, que recebiam correcções a bisturi como presente de aniversário. Eu sou suspeito porque ainda ontem me senti arrebatado diante de uma paragem de autocarro com a Gisele Bündchen deliciosamente passada a ferro por photoshop. E confesso que já me espantei, como um pateta durante um truque de cartas, ao encontrar implantes num decote arriscado. Mas custa-me aceitar que tantas mulheres se mutilem para serem apenas mais uma cópia, que não percebam que a homogenia não dá assim tanta ponta e que nem sempre é o maior par de mamas que faz suspirar a sala. Mesmo com a crise a ajudar, sei que será muito difícil passar esta mensagem. No Iraque muçulmano, agora com menos atentados e uma economia em crescimento, as plásticas aumentaram 50%. Os americanos, triunfadores mundiais do silicone, bem avisaram que não saíam dali enquanto não consolidassem a democracia e os valores ocidentais.

NY me mata

Bill Clegg tem cara de menino loiro bem comportado, de rapaz que chegou a Nova Iorque, do interior dos Estados Unidos, acreditando que jantar comida chinesa era uma actividade glamorosa. Mas, rapidamente, a inocência foi substituída pelo sucesso enquanto agente literário e por uma invulgar sensibilidade como leitor. Bill ajudava, como ninguém, os escritores a editar os manuscritos. Com 31 anos, sofisticado, bem pago, culto, influente, abriu a sua própria agência e levou consigo alguns dos autores mais consagrados – os mesmos que, no início de 2005, não conseguiam contactá-lo, porque Bill estava desaparecido há semanas. Os rumores espalhavam-se, em surdina, por parecerem tão escabrosos e tristes. Bill conta agora tudo no seu livro, “Portrait of an Addict as a Young Man”, uma memória desse tempo em que ficou agarrado ao crack, ao sexo com desconhecidos, e em que gastou quase 70 mil dólares a fumar cocaína em hóteis de luxo na companhia de prostitutos – “Quero o esquecimento desfocado dos corpos em colisão durante o sexo”, diz no seu livro. Tudo acabou com um frasco de comprimidos para dormir, menos 20 quilos no corpo, e o colapso de uma existência, uma empresa, uma relação amorosa de oito anos. Bill entrou numa clínica, voltou a cair – vendeu uma fotografia de 20 mil dólares – mas há cinco anos que não consome. Foi contratado para uma das melhores agências literárias da cidade. Os seus antigos escritores foram com ele. Recebeu um adiantamento de 350 mil dólares pelas suas memórias. Nova Iorque mata. Mas também ressuscita.

Gorilas em Fiji

Os jornais diziam que o exército de Israel atacara, em águas internacionais, barcos que transportavam ajuda humanitária para Gaza. Morreram entre dez e 19 pessoas. O meu cérebro reagiu, lembrando-se de uma frase, no livro “The pugilist at rest”, do americano Thom Jones. Tive de procurar o livro, depois o parágrafo no qual o narrador afirma que a consciência dos gorilas é uma consciência do aqui e do agora, sem necessidade de guerra ou tortura, e que não é assim tão difícil aos seres humanos alcançarem esse estado – basta beber cinco martinis dentro de uma banheira de água quente. Por fim, encontrei a frase que procurava: “Leiam os jornais e percebem o que digo. O comportamento humano, 98% das vezes, é abominável.” Fui ler os jornais, como manda o narrador: “Acusado de engravidar filha surda”, “Bebé sofre queimaduras solares por desleixo dos pais”, “Mais de 145 mortos num atentado em Bengala”, “Acusado de espancar enteado de quatro anos é agredido por colegas de cela”, “Noivas criança escapam a casamento mas não a chicotadas”, “BP admite que o petróleo pode jorrar durante meses”, “Ditador Mugabe paga um milhão para ver o Brasil jogar”. Esta é uma pequena amostra da minha busca. Não devia surpreender-me, o narrador tinha avisado: “Os gorilas são felizes. Não precisam de ténis New Balance ou um Jaguar. Não há um gorila que tenha o desejo de violar ou assassinar.” Há dias em que, por mais fé que tenha na raça humana, só me apetece imitar o narrador: “Há uma série de ilhas desertas em Fiji. Eu e os meus cães vamos dar uma de Robinson Crusoe.”

domingo, 6 de junho de 2010

crónicas no i

Romance (versão actualizada)

Não precisas de olhar para o telefone de disco, ensaiando o discurso, antes de ligar para o número escrito num guardanapo de discoteca, como acontecia nos tempos em que desapertar um soutien era uma glória pouco frequente. Hoje, basta que, a meio da conversa com uma miúda que acabaste de conhecer, lhe perguntes se tem Facebook. Depois diz que vais buscar uma bebida. Volta mais tarde, quando já consultaste, no teu telemóvel, o perfil dela (deu para veres uma foto, na praia, ao fim do dia, bonito sem ser piroso, gostas da boca e do cabelo dela). Quando chegares a casa, se estiveres em condições de teclar, manda um sms, nada de emocional, reconhece que gostaste da noite. Não uses o Facebook, isso indicaria que te deste ao trabalho de ligar o computador. Durante a semana, troca mensagens no Facebook, se as mensagens acelerarem, entra no chat e fala com ela. Se as mensagens forem planas, curtas e sem espaço de manobra, esquece e aproveita os privilégios do presente: a tecnologia economiza tempo. Se as coisas correm bem, usa ferramentas de sedução, como postar o vídeo de uma banda que ela te mostrou ou apenas fazer um “Like” em algo que ela tenha escrito no mural: “O teu coração dá-me tesão”. Um dia vais acordar no quarto dela. Diz: “Deixa-te estar”, dá-lhe um beijo, diz: “Vou para casa.” Não mandes sms. Toma o pequeno-almoço e mete-te na cama com o laptop. Uma miúda que não conheces fez um “Like” na frase que roubaste a um escritor: “Your ♥ is my piñata”. Manda-lhe uma mensagem. Mais uma ficha, mais uma voltinha.

Sopra aí na corneta

Durante os festejos do Benfica no Marquês de Pombal, uma amiga brasileira, estreante entre as multidões portuguesas, comentou que no Brasil haveria logo gente com música para alegrar a celebração. Mas na rotunda ouviam-se gritos, carros a apitar melodias monótonas e um camião cujo motorista parecia ter adormecido em cima da buzina. Podemos ser um povo feliz, como quando o Benfica ganha, mas não somos musicais, o que só torna o sucesso da vuvuzela mais ameaçador. Uma vuvuzela, por si só, quieta num canto, já tem um enorme potencial destrutivo. Se operada por uma nação de trauliteiros sonoros, então, teme-se o pior. Essa corneta, que se espalhou pelos estádios sul africanos com a rapidez do herpes numa orgia romana, começou por ser um instrumento feito de lata, até que alguém percebeu o fascínio dos humanos por brinquedos de plástico que fazem barulho, e transformou a vuvuzela num produto de fabrico fácil. É facto aceite que um brinquedo da moda – Botabotilde, Hula Hoop – pode ser mais pegajoso que uma música de verão. Mas a Galp foi longe de mais ao pedir que toquemos a vuvuzela, em uníssono, um minuto antes dos jogos da selecção, para criar uma onda positiva. Eu aceito que queiram vender combustíveis oferecendo-me brindes de plástico produzidos na China. Mas meter um país inteiro a soprar na corneta e fazer disso um símbolo de união nacional, quando querem vender gasóleo, quebra o contrato (unilateral) que tenho com a publicidade e o Santuário de Fátima: aceito que me tentem enganar, só não me peçam que acredite no engano.