quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Crónicas tropicais, no i


Final de semana carioca

É tudo muito rápido e assim que chegas já estás utilizando o gerúndio sem te dares conta e entre a casa e a praia já bebeste um chopp e há uma agitação de vendedores ambulantes, vapores de gasolina, um machete decapitando um coco com água de gelar o céu-da- -boca. Depois há cervejas na praia, o cheiro da maconha fumada por rapazes que não usam sunga e que talvez tenham profissões artísticas e se desloquem em bicicletas. Em seguida estás num lugar com mais gente e é de noite e os morros iluminados ficam mais bonitos por causa das lentes da cachaça e o teu amigo diz-te, numa festa no Centro, que nunca pensou que as brasileiras fossem tão altas. Dormes pouco e acordas cedo porque a ventoinha no tecto produz um barulhinho bom, mas não refresca. Sais para a praia e no final do dia, num terraço onde se viam urubus planando sobre os prédios, tiveste a certeza que a combinação cachaça & chopp é remédio para a felicidade. No dia seguinte: praia, feijoada, cerveja e cachaça até que a noite apareceu e no Rio podes entrar no mar sem a histeria de um sequestro. É tudo muito rápido, os dias têm a mesma intensidade das semanas em que foste feliz e a presença constante de uma suspeita: mudar de vida é mais fácil do que parece. Porque estás num lugar tão esplendorosamente novo percebes que aqui só um masoquista ficaria deprimido. Talvez não haja nenhuma lição a tirar destes dias que parecem música. Mas quando caminhas para a praia e um dos quiosques passa "Beija eu", de Marisa Monte, sabes que viver com música também é remédio gostoso para a felicidade.

O senhor Fernandes

Era de noite e na esplanada do Arpoador respirava-se a espessura da maresia quando encontrei o senhor Fernandes por acaso. Mais um evento inesperado na improbabilidade dos dias cariocas. O senhor Fernandes: escritor diário de crónicas num jornal português, executor de textos que, em Lisboa, enquanto tomo o pequeno-almoço, me põem a pensar, a sorrir, a querer escrever melhor. Há muitos anos, numa redacção, o senhor Fernandes disse-me: "Se as histórias são grandes, as palavras têm de ser pequenas." Quando o informei de que ia viver para os Estados Unidos, país que o senhor Fernandes descobriu (e sobre o qual escreveu) em longas viagens de carro, não falou como jornalista conselheiro de repórteres inexperientes, mas olhou-me com a compreensão do jovem adulto e inquieto que também saiu do seu país para viver em França, onde tinha o ofício da descoberta e de passear cães de gente com dinheiro. Com vista para o morro Dois Irmãos, tão luminoso como uma nuvem de pirilampos, o meu encontro com o senhor Fernandes parece, pelo menos na minha cabeça, retirado de um romance tropical de Graham Greene. Em vez de entre espiões ou homens destroçados pelo amor, este encontro no Rio é entre apreciadores de histórias. Falamos um pouco e trocamos piadas. Quando ele se afasta pelo calçadão estou certo que nesta cidade tenho pela frente muitas histórias e o senhor Fernandes foi enviado para me transmitir, mesmo sem o mencionar, uma verdade que não posso esquecer: se as histórias são grandes, as palavras têm de ser pequenas.

Samba do atropelamento


Rapaz, saí de Portugal há 15 anos e todos os dias tem tragédias românticas nesta cidade, não se assuste não, é assim mesmo, tem mais novela das oito no meu bairro que na televisão, mais mulher perigosa que arma ilegal, mais homem comilão que chuva de fim de tarde. Nesta cidade se ama com a mesma fúria dos bandidos. Amor mata mais que cachaça, pó e bala perdida. Eu não estava aqui na hora da desgraça, mas disseram que a garota era filha única com faculdade nos Estados Unidos e o rapaz era gringo, um desses turistas que em vez de procurar sexo com putinhas bonitinhas prefere buscar o amor, a paz de espírito e uma saída para o pessimismo chuvoso dos boletins psiquiátricos da Europa. Não se ofenda não, eu posso ter esse sotaque meio-meio, mas sou português de Chaves, e você é que perguntou o que aconteceu, só estou contando. O rapaz era músico e tinha viajado para São Paulo e quando voltou ela já não queria ser a inspiração do artista e estava saindo com um advogado de celebridades. Uma garota linda, cara de menina de colégio que virou escritora mas que podia ser actriz da Globo. Ela estava no mercado. Ele estava cruzando a rua, com certeza para lhe falar da importância do amor romântico, das sestas tropicais e de um final de semana de bagunça erótica e promessas de amor agora escangalhadas para sempre. Tenha cuidado, quando cruzar a rua por causa de uma mulher, olhe para ver se vem um ônibus. Não leu no jornal? Este ano já foram atropeladas mais de mil pessoas nesta cidade. E quantas delas não terão morrido por causa de um impulso amoroso?

Malandro nunca mais

Ele conhece a arte de consertar e limpar armas e nasceu na favela do Cantagalo: "Não deu tempo de descer, a minha avó foi a minha parteira." Mas ele também é graffiter e rapper e percebe a importância do acaso: "No ano passado, minha avó teve uma embolia e morreu nos meus braços." Ele chama-se ACME e subimos a favela espremidos entre paredes de tijolo e cimento que parecem cuspidas na cara pela humidade verde da selva.Houve um tempo em que ACME aproveitou o ofício de armeiro militar para servir traficantes. Pergunto se era perigoso e ele espanta-se como se eu tivesse perguntado de onde vêm os bebés: "Eu recebia cinco fuzil, ficava com eles em casa." Tinha medo dos polícias. E dos traficantes: teve de convencer um bandido de que uma espingarda já chegara às suas mãos com defeito: "Era um fuzil de 20 mil reais."
ACME cheirava pó: "Tinha pesadelos que entravam em minha casa para me pegar. Sempre gostei de desenhar e não estava conseguindo mais." Deixou as drogas, meteu-se na igreja, casou, é director do Museu da Favela e vive do seu trabalho artístico. Há menos de um ano a polícia invadiu o morro e capturou o rei traficante. Hoje as autoridades consideram esta favela pacificada. Continua a haver tráfico mas acabou o terror dos caprichos dos bandidos da pesada: "Se você vacilava levava um tiro na mão." Mas ACME sabe que a regeneração é trabalho para durar.
Viver na favela só pode ser - e aqui não existe outro adjectivo possível - fodido. E é por isso que não sou capaz de perguntar: "Quantas pessoas terão morrido com as armas que limpaste?"

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O poeta callboy


Conto sobre amores prostitutos, no i

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Supermercado


Uma ida às compras aqui.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Duas crónicas de outono


Fado de Outono

Na praça da cidade montam um carrossel e cruzo-me com os miúdos pequenos nalguma visita de estudo, as professoras atentas como sentinelas de uma manada de crias, dois a dois e de mãos dadas, a idade de quem acabou de perder os dentes da frente, uma daquelas tardes sem cor no céu e com o vapor de transpiração infantil nas janelas embaciadas da sala de aula, exactamente como quando na segunda classe a Sónia de olhos azuis e franja de escandinava estragou uma das minhas canetas de feltro molin – logo a vermelha, num estojo de 12. Quando fosse grande como o meu irmão, dizia a minha mãe, receberia um estojo de 48 canetas que parecia um órgão com teclas a tripar LSD. Sónia, se te dei um pontapé na canela foi porque gostava demasiado de ti – quando fazias um desenho a ponta da tua língua equilibrava-te, apertando-se entre os lábios cor de melancia sem sementes. Sónia, se fui mandado para a rua e te deixei a chorar, foi porque desde o primeiro período da Infantil que queria encostar a minha boca nas tuas bochechas cor-de-rosa, tão quentes e pegajosas como a sala de aula naquela tarde, e tu nunca sequer suspeitaste. Sónia, agora que passou tanto tempo, agora que os outros miúdos estão no recreio e nós de castigo, presos na idade adulta, não chores mais porque o rimmel que usas não é à prova de prantos. Sónia, não podia ser mais importante: deixa que a minha boca sinta a tua pele de fim de tarde e prometo-te que um dia vou ter um estojo com 48 canetas de feltro. A vermelha é para ti.


Comer, odiar, amar

O homem mastiga um panado como quem aspira a saliva por um tubo no dentista. O barulho húmido da carne de porco roça nas gengivas. Penso: um porco a comer um porco. Mais tarde, bebe um café coberto por espuma de leite. O seu bigode assemelha-se a natas pegajosas boiando na caneca. No final, palita os dentes, uma actividade que deveria ser tão solitária como espremer pontos negros. Noutro sítio, noutro lugar, ela tinha olhos de praia e a primeira vez que nos sentámos fazia calor. Por vezes, ela deixava a colher descansar sobre a língua, a boca fechada, o gelado derretendo no calor da saliva silenciosa. Ela era tão doce e suave e necessária como um cone de bolacha com morango e limão. Comer junto de outras pessoas pode ser incómodo ou reconfortante, asqueroso ou lascivo, mau para os nervos ou bom para o caminho da paz. Se um dos meus irmãos se punha a molhar o pão com manteiga no café com leite eu odiava-o, sugeria que o dessem ao Homem do Saco. Mas, muitos anos mais tarde, se a filha dela, que também tinha olhos de praia, se punha a comer bolo de chocolate como quem esfrega protector solar na cara, eu tinha um ataque de riso e queria apertá-la contra mim. Diz o senso comum e os manuais de auto-ajuda que só odiamos ou amamos aquilo que realmente nos importa. Comer não é apenas abastecer o corpo. E o estômago, acreditem, pode ser muito mais sensível que o coração. Felizmente, há sempre a esperança que para cada comedor sonoro de suínos panados haja uma miúda de cabelo amarelo com uma máscara de chocolate.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Basta!


A greve na crónica do i, é clicar neste clicar.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Triologia de crónicas numa semana estranha


Filme noir

Ray Cortese chegou a Lisboa uma semana antes do prazo de execução do contrato. O agente dera-lhe as indicações do serviço. Ficaria num quarto de pensão na Praça da Figueira, levantaria a encomenda numa pastelaria do Martim Moniz, não frequentaria mulheres ou copos de whisky. Ray Cortese: filho de emigrantes portugueses em Newark, duas comissões no Iraque como atirador especial, inclinação para apostar em cavalos errados, amigo de agiotas e strippers latinas. Para pagar as dívidas e a hipoteca da casa dos pais começou a trabalhar com um agente de Long Island. Este era o primeiro trabalho fora de fronteiras e escolheram-no por causa do seu português de segunda geração: "Bom noite, querer saber casa de fados. Ya know, Amália and Marceneiro." Ray crescera a ouvir o pai a cantar a "Casa da Mariquinhas". O agente tinha-lhe dito: "Não uses esse teu chapéu de Boggart, dá muito nas vistas." Em Lisboa, por causa da cimeira, havia mais polícias que mulheres bonitas. Na noite antes do serviço, Ray foi ouvir fados e acabou na cama com Rosa Maria, fadista galdéria e amante de turistas generosos. Quando acordou ela já não estava. E a encomenda com balas e silenciador também não: "Fucking cunt from hell." Mas ela apareceu minutos depois com o pequeno-almoço: "Não faças o que te mandaram fazer." Hoje há um chefe de Estado que deve a vida a uma fadista. O que poderia ter sido um atentado transformou-se num casamento marcado para o dia de Santo António. Ray e Rosa vivem numas águas-furtadas na Pena. Talvez sejam felizes para sempre.

Filme noir II

Amável de Jesus, polícia na cidade de Lisboa, acordou quando os candeeiros públicos ainda iluminavam a rua e apanhou o autocarro. No primeiro dia da cimeira da Nato, vestido com um colete laranja por cima da farda, viu passar o trânsito mas nenhum dignitário internacional. Amável de Jesus: detentor de um coração amarfanhado e abandonado pela fadista Rosa Maria, leitor de jornais desportivos, comedor solitário da sopa do dia numa casa de pasto, cidadão que não conseguia perceber os mercados internacionais, os gastos chupistas do governo da Madeira ou a antecipação da entrega de lucros, por parte de grandes empresas nacionais, a fim de fugirem ao aumento de impostos no próximo ano. No final do turno, Amável regressou ao apartamento sem cortinados ou aquecimento central e meteu uma lasanha congelada no forno. Seria um fim-de-semana sem jogo do Benfica e, com a televisão escangalhada, não podia sequer ver as séries de polícias - em tempos, por causa de um Sherlock Holmes televisivo, Amável sonhou ser detective mas acabou a ver passar carros na estrada com um apito na mão. Nessa noite, metido nos lençóis que pareciam feitos de granito, mandou um sms a Rosa Maria. Ela não respondeu. De manhã não foi trabalhar. Em vez da farda vestiu roupa preta e foi juntar-se a uma manifestação anti-qualquer coisa. Os seus colegas de profissão não o reconheceram. Não houve bastões castigadores nem cocktails molotov nem nada que pudesse compensar o seu anonimato aborrecido. Voltaria a ser polícia. E o dia seguinte seria igual a todos os outros dias.

Filme noir III

Fátima Libério começou a guiar o táxi quando uma embolia cerebral congelou metade do marido, taxista e poeta popular, deixando-o a comer papas diante da televisão a preto-e-branco do quarto. No táxi, Fátima ouvia as notícias na rádio, telefonava para os fóruns, contava muitas vezes como a sua mãe distribuíra cravos na manhã de 25 de Abril de 1974. No primeiro dia da cimeira da NATO, Fátima sentiu uma pontada nos rins, apanhou menos clientes e foi mandada parar por um polícia que, embora se tivesse apresentado como Amável de Jesus, lhe passou uma multa porque um passageiro fumava dentro do táxi. Fátima disse ao polícia: "Não me faças ir para a rua gritar." Fátima: um ventre danificado e sem filhos, lavadora de escadas e vendedora de rissóis para fora durante anos, ia ao cabeleireiro uma vez por mês, fazia umas iscas de prémio gastronómico mas não tinha audiência, o marido não podia mastigar. Nos dias da cimeira o taxímetro trabalhou pouco. O negócio estava mau. E os boletins meteorológicos da contestação anunciavam uma greve geral. Nem metro, nem autocarros, nem comboios. "Mais pessoas a apanhar táxis", dizia a minoria de taxistas-copo-meio-cheio, gente que ainda não sofria de amargura ou hérnias discais. Mas Fátima não quis aproveitar a oportunidade. No dia da greve deu banho ao marido, foi ao cabeleireiro pela segunda vez em 30 dias e deixou o táxi parado. Foi para a rua gritar. Mesmo em crise, há coisas que o dinheiro não compra

sábado, 20 de novembro de 2010

Carta ao pai Natal

Take It Easy 'Dear Santa Claus' from Marco Espirito Santo on Vimeo.

História de amor, crónica no i



Pilar debruça-se para executar alguma tarefa caseira, o seu corpo entre o computador e José, nunca um obstáculo, o seu corpo dobrado e José dando-lhe uma palmada malandra no rabo, depois o nariz do escritor encostando-se na pele das costas da sua mulher. Ou a voz espanhola de Pilar lendo um livro de Saramago, sobreposta na voz portuguesa de José - é um artifício da montagem do filme "José e Pilar", mas é também a vida real, duas vozes coladas uma na outra, duas línguas entrelaçadas como as mãos que se agarram várias vezes durante a vida e durante um documentário que merece todos os elogios. O tempo aperta e a doença reduz a voz do escritor, ameaçando-o com a morte, com a impossibilidade de escrever mais, de amar ainda mais. Saramago tem muita graça, mesmo muita, como quando, cansado da correria mediática, propõe a história do escritor que mata jornalistas em série. São um casal: Pilar e José discordam um do outro no banco traseiro do carro ou discutem por causa de Hillary e Obama. São um par de namorados: ela apoia-se na porta do quarto de hospital de José, triste e irritada com os jornais que querem escrever um obituário precoce; ele diz: "Se eu tivesse morrido antes de conhecer Pilar teria morrido muito mais velho." Talvez só o amor impeça a morte. Talvez por isso José diga que quer que Pilar o continue. O escritor que vivia desassossegado e escrevia para desassossegar também diz, sozinho e apaixonado, para a câmara: "Pilar, encontramo-nos noutro sítio." E nós acreditamos, nós só podemos acreditar.

Diário de um tatuador


História de uma tatuagem e de um tatuador que já foi mórmone, para ler aqui.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Três crónicas no i


Testículos de bronze, Fado da Sina e Obituário de um adeus

Respira fundo, crónica no i


Porque é fim-de-semana e tens sentido a tristeza gasta de um falhado, sai da cama devagar, abre as janelas e toma um bom pequeno-almoço – omelete de tomate, laranjas espremidas com as mãos, pão alentejano no consolo da torradeira. Depois, quente e preguiçoso, regressa aos lençóis frescos, encontra o teu sítio na almofada e se tiveres a fortuna de poder beijar alguém, pousa primeiro os lábios na curva entre o ombro e o pescoço. Então, ataca, mas que sejas leve, que tenhas tempo para tudo. Mais tarde, já com o coração a reduzir o galope, os músculos em levitação e a boca a pedir água, podes dormir mais. Hoje, não ligues o telemóvel, abdica de narrar a tua vida em emails e redes sociais. Não alimentes a electricidade estática do teu cérebro nem a ansiedade televisiva de querer saber tudo em tão pouco tempo. Tem calma. Caminha longe dos motores, procura um jardim onde ainda sobrevivam buganvílias. Não digas nada. Experimenta viver sem ruído. No final da tarde liga aos teus amigos ou fala com a família. Marca um jantar, pega numa faca e acende o fogão, serve vinho a quem aparecer, toca no corpo daqueles que te fariam falta se ficassem doentes e --------, toca-lhes porque também precisam. Nunca nada é tão dramático como parece. Vai ser fodido, Portugal, mas quando tudo parecer em chamas lembra-te do admirável poder do toque – a cara barbeada do teu pai quando o beijas, a mão que te compõe a franja, um pé procurando outro pé, sobre o lençol, a meio da noite – e talvez percebas que tudo tem que voltar a ser muito mais simples.

Passeio com poeta morto, crónica no i


Era de noite quando Fernando Pessoa me tocou no ombro mas não me assustei. Já tinha lido nalgum relatório da OCDE que os poetas portugueses estão entre os mortos que mais aparecem aos vivos, logo a seguir aos portageiros gregos e aos guardas-nocturnos irlandeses. Disse-me que queria companhia para um passeio. Na Baixa, o poeta comentou que as decorações de Natal pareciam papel higiénico amarrotado e assustou-se com um vendedor de haxixe. Quis mostrar-lhe que o modernismo não era apenas um movimento artístico e entrámos na engenharia fluorescente do metro da Baixa, aproveitando a boleia das escadas rolantes para subir ao Chiado. Emergimos quando passava o eléctrico – um postal da cidade, pensei. Talvez me safe como guia turístico de defuntos. Percebi a vaidade e levei-o aos restaurantes dos Armazéns do Chiado. Disse: “Quereres uma pita?” Fernando Pessoa olhava para as adolescentes maquilhadas e de calções tão curtos como uma peça de roupa que encolheu na máquina. Repeti: “Queres uma pita shoarma?” Ele disse-me que aquele lugar era triste como as casas de pasto onde jantava sozinho do poeta ao ver a estátua de si mesmo. Perguntei-lhe se, no além, era amigo de Van Gogh. Ele desviou a conversa, dizendo que morrera sem pagar uma conta na Brasileira e que era melhor arrepiar caminho. Ponderei perguntar-lhe pela Ofelinha mas tínhamos fome. No Rossio perguntei: “Chamo-te um táxi?” Ele: “Obrigado, mas uma das coisas boas de estar morto é o dinheiro que se poupa em transportes. Isto não anda fácil”. E depois bebemos uma ginginha sem dizer uma palavra.

Marina & Leonid, crónica no i


Na praça do Rossio, ela segura uma câmara fotográfica e pergunta-me: “Do you speak English?” E depois de apertar o botão fico a saber que se chama Marina, que o marido, Leonid, fugiu da Letónia, então URSS, durante a Segunda Guerra Mundial, escondendo o seu sangue judeu no Uzbequistão. Regressou no final da guerra e casou com Marina, também judia – “Ele teve de identificar os irmãos mortos durante a ocupação alemã”. Mais tarde, Leonid serviu no exército soviético junto da fronteira com a China, a mais de nove mil quilómetros de casa: “Era muito duro, demorámos um mês para lá chegar”. Em 1977 Marina e Leonid tinham um filho: “Por causa dele fugimos para Berlim Ocidental. Queríamos que tivesse uma vida melhor”. Marina e Leonid saíram de um país que os tinha sob controlo para um país que, quatro décadas antes, os invadira. Falam de Berlim como a sua casa: “Já voltei à Letónia, mas é diferente, há gente muito rica ou muito pobre, não há nada no meio. Tens de vir a Berlim.” Marina fala um inglês eloquente – “Fiz um curso de línguas” – e os seus olhos agigantam-se ao mencionar o filho: “Estudou hotelaria na Suíça, foi para os Estados Unidos, casou-se com uma israelita e tenho dois netos.” Fala-me da importância da família. Tem tantas saudades do filho. Percebe-se tão bem quando me abraça e se despede e lhe digo: “Goodbye”. Ela responde: “Never say goodbye”. Já em casa descubro que os nazis mataram 90 mil lituanos entre 1941 e 1944. Tanto tempo depois Marina e Leonid estão na praça que cruzo todos os dias. Marina tinha razão: “Never say goodbye”.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Crónicas com banda sonora





E agora as crónicas no i já estão no site do jornal. Ficam as últimas duas: Respira fundo e Fado da Solidão.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Leis da atracção


Várias vezes por semana corres num jardim da cidade, no sentido contrário aos ponteiros do relógio, o que te faz pensar que ficarás com uma perna mais curta que outra. Corres depressa, roçando a imobilidade dos visitantes do jardim. No entanto, és invisível para os velhos que batem a manilha de paus na mesa como quem esbofeteia o adversário. Há bocados de palavras que se colam na tua velocidade – “Oiça, mas estou aqui bem?”, diz a mulher, segurando uma revista de telenovelas, para o homem sedutor no banco de jardim. Mais adiante, os bêbedos despejam pacotes de litro, falam com sílabas ensopadas pelo mosto e incentivam-te como se fosses um ciclista na montanha. Mais do que uma vez ficaste irritado com os solitários que lançam pão aos pombos. Bates palmas para abrir caminho como se disparasses um revólver de fulminantes, mas já percebeste que não te podes zangar com os pássaros ou com aqueles que, quando atiram migalhas, gostariam de receber alguma coisa em troca, mesmo que fosse um abraço de asas. E há o puto gordinho que levanta a mão – “High five” – de cada vez que passas por ele, há as indianas, sentadas lado a lado, tão coloridas nos trajes como sossegadas na voz, há mulheres bonitas na esplanada que (vá lá, reconhece) esperas que olhem para ti. É por causa destas pessoas que melhor percebes a descoberta de Copérnico adaptada aos humanos – nada gira em teu redor, não és o centro de nada, e um dia, quando te apoiares numa bengala para compensar a perna mais curta, também tu podes vir a precisar de um abraço de asas.

Uma casa com vista para o mar


E se o OE fosse chumbado? E se o FMI chegasse? Como seria Portugal se tudo tivesse corrido da pior forma possível? Um conto futurista que escrevi para o jornal i, é só clicar aqui.


Ilustração de Tiago Albuquerque.

domingo, 31 de outubro de 2010

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Mais crónicas no i


Relicário de um homem solteiro

Durante os anos adolescentes de beijos na boca e mãos curiosas – “Curti com ela atrás do pavilhão de ginástica” – o soutien tanto podia ser o alarme que impedia o assalto como a relíquia procurada pelo aventureiro. Os dedos afastavam o top, subiam lentamente pelas costelas, inquietavam a pele, respirava-se com mais saliva na boca, e assim que se tocava no soutien disparava a sirene: “Pára. Já disse, pára.” Mas havia um dia em que os dedos cruzavam, por fim, a fronteira do tecido, avançando mais tarde para o fecho com o nervoso com que se enfrenta um penalti. Então, quando a alça resvalava pelo ombro, quando o corpo estremecia como se passasse uma corrente de ar, então o soutien passava a ser a relíquia do peregrino. Para alguns homens, a destreza com que se desmancha um soutien importa tanto como a eloquência dos beijos. E a visão de uma alça, escapando por acidente para fora de um vestido, pode parar o tempo num restaurante, numa pista de dança até mesmo num parque de estacionamento. Tanto romance erótico para nada. Depois de lançar os soutiens, com pedras preciosas, Hearts on Fire Fantasy (6,5 milhões de dólares) e Secret Diamond (5 milhões), a Victoria’s Secret revelou agora o Bombshell Fantasy (2 milhões), fazendo do soutien uma espécie de arma para cyborgs e dando-lhe nome de filme soft porn/cor de verniz. Já não é uma relíquia. É uma acrobacia publicitária, a disneyficação da sensualidade, a morte romântica do artista de mãos para quem importa muito mais a forma como uma mulher se despe do que as jóias que resplandece.

Here comes the sun

Nasceste num desses dias de sol em que a cidade parece água – o Tejo levitando sobre os telhados, resplandecendo nas fachadas. Nasceste num país antigo e com alma cansada, num mundo que, desde sempre, tanto pode ser admirável como devastador. Não te escrevo para que aprendas alguma coisa comigo. Não te vou falar do futuro. Sou demasiado trapalhão com a vida para aconselhar um recém-nascido. Mas saí de casa e na metade mais luminosa e quente da rua havia roupa estendida, o rumor de um rádio fadista num primeiro andar, a alegria de saber que já estás aqui. Não falas, mal abres os olhos e não me podes fascinar com conversas sobre cinema, sobre noites de copos com miúdas que não acreditam em soutiens, sobre a canção dos Beatles que escolhi para banda sonora do teu nascimento. Não podes ainda, como o teu pai, ensinar-me a amizade numa língua que não é a minha, nem recordar essa cidade estrangeira em sobressalto onde me guiou, durante anos, com um coração descobridor e a certeza que podemos ser muito mais do que aquilo que herdamos. Não sabes ainda, como a tua mãe, usar a curiosidade para percorrer países e ouvir aqueles que nunca são ouvidos. Não podes sequer perceber que a tua chegada acontece no momento em que os homens não se entendem, que andam assustados, que preferem o ego, o sonho do toque de Midas, os comprimidos e as pistolas. Não sabes nada e, no entanto, sem uma palavra, sem uma cumplicidade, sem uma memória em comum, fazes de mim uma pessoa melhor. Não consigo explicar-te porquê. Mas sei que faz todo o sentido.


Get a life

Inaugurou-se o sítio justspotted.com, uma rede social que permite aos utilizadores revelar, em tempo real, onde foram vistas celebridades, com direito a mapa-mundo e fotografias. Imagine que encontra Scarlett Johansson na papelaria. Tira uma foto como o telemóvel e faz um post do avistamento da actriz para que os idiotas perseguidores de famosos fiquem a saber que Scarlett comprou a colecção de dedais da Planeta Agostini. O director executivo deste sítio de internet/ pardieiro de bufos, A. J. Asver, diz que não se trata de perseguir celebridades mas de uma forma de os fãs se sentirem psicologicamente perto dos seus ídolos. Asver parece descrever vítimas de falta de afecto a precisar de consolo, mas é dessa maneira que melhor esconde a motivação do site: ganhar dinheiro com a vida privada dos outros. Tenho que admitir que os criadores do justspotted são tão espertos na arte do engano como quem meteu Portugal a usar pulseiras do equilíbrio. Com uma vantagem: não têm grandes custos porque são os fãs que fotografam e perseguem, convencidos pela realidade mediática que lhes diz que não é preciso talento, trabalho ou excelência para serem famosos, acreditando que basta entrar numa casa com câmaras e segredos ou fotografar uma celebridade para serem salvos do quotidiano anónimo. Deviam escutar as palavras de Tyler Durden, em “Fight Club”: “Vocês não são especiais, bonitos ou flocos de neves únicos. Vocês são feitos da mesma matéria em decadência que tudo o resto”. E não é por fotografar Brad Pitt a sair de um WC público que isso vai mudar.

Manual de auto-ajuda

É segunda-feira e na rádio, nos jornais, nas televisões, na mercearia onde se compra o pão fala-se da crise, essa praga tão assustadora e peganhenta como sangue coagulado num pedaço de algodão. Melhor seria ficar na cama, não ir, usar o edredon como líquido amniótico e dormir até que tudo passe. Mas depois descubro, por acaso, que Keneth Waters esteve preso 18 anos acusado de matar um vizinho. E fico a saber que a irmã, Betty, empregada de bar, começou a estudar Direito após a tentativa de suicídio de Keneth na prisão. Durante quase duas décadas Betty tornou-se advogada, criou dois filhos – estudava, nas bancadas, durante os jogos dos miúdos –, passou por um divórcio, ouviu todas as testemunhas do julgamento e encontrou amostras de ADN perdidas durante o processo. Em 2001 provou a inocência do irmão. Seis meses depois Keneth caiu de um muro, perto de casa, e bateu com a cabeça. Morreu. Betty tem 56 anos, é gerente do bar onde foi empregada e voluntária numa associação que ajuda presos falsamente acusados. Não continuou com a carreira de advogada. Não parece amarga, destruída, revoltada. Disse: “Só quero ser avó” Na semana passada estreou “Conviction”, sobre Betty e Keneth. O realizador, Tony Goldwin, disse: “Sempre que me ia abaixo durante o filme, pensava na determinação de Betty.” Nas noites de domingo irei agora colar um post-it na mesa de cabeceira. Quando o despertador tocar, impiedoso como a crise nas manhãs de segunda-feira, vou ler o que escrevi: “Betty e Keneth”. E isso deve chegar para, de imediato, saltar da cama e me fazer à vida.


Breve relato de amor temporário

Ele contou-me que tinham combinado um encontro e que levara laranjadas porque ainda fazia calor. Conheceram-se numa festa. Ele, lubrificado pelo whisky, quase chegou a dançar. Ela, acesa por causa da erva, disse-lhe: “Não fumo tabaco, mas dás-me um cigarro?” Ele disse que a levaria aos fados e ela, de passagem por Lisboa, disse-lhe que preferia um quarto de hotel. Comunicaram em inglês, como nos filmes, e não se beijaram logo, como nos livros antigos. Mas trocaram nomes em vez de números de telefone. Ele disse: “Estás no Facebook?” No dia seguinte iriam encontrar-se no alto da cidade – o romantismo transformou um quatro de hotel num jardim com vista. Ele chegou antes de tempo, percebendo a passagem dos minutos pelos sinos da cidade. “Já reparaste que as igrejas de Lisboa não estão sincronizadas? Se deus não sabe a quantas anda ela também podia chegar atrasada”, disse-me. Ele imaginou o que aconteceria assim que ela chegasse: trocariam piadas, contariam uma história de infância, ele diria “Gosto disto” e ela diria “Posso adiar a minha viagem”, jantariam numa esplanada, a meio da segunda garrafa de vinho ela diria “Leva-me para um sítio com uma cama e um bar” e pela manhã ele teria o braço dormente porque ela ainda dormia no seu peito. Nos dias seguintes alguém iria preferir ficar sozinho. Ele cansado de falar inglês, ela com saudades do cão. Ficariam amigos. Fim. Ele esperou no jardim. Ela não apareceu. Ele disse-me: “Há um lado positivo: vivi numa hora aquilo que, de certeza, ia ocupar-me uma semana. E sabes que tenho de trabalhar”.



Don Draper

Os rapazes, desde pequenos, querem ser outra coisa. Obriguei a minha mãe a fazer-me um fato de super-homem, quis ser o meu irmão mais velho, imitei Marco van Basten no Euro 88 e houve dias que, se me chamassem Mr Sinatra, eu pagaria uma rodada. Mas com o passar do tempo, pensar ser outra coisa, fantasiar, é para alguns tão patético como ir ao pão com um pijama do Batman. É uma pena, porque a imaginação apura a existência ao mesmo tempo que nos alivia de peso, como a primeira descida de uma montanha russa. Eu, por exemplo, ando por estes dias com a certeza que quero ser Don Draper, o protagonista da série Mad Men, passada num tempo em que ainda se usavam chapéus. Não falo apenas da forma como enlaça as mulheres sem precisar de as agarrar pela cintura, das garrafas de álcool duro no escritório, de frases tão graves como os fatos que usa – “O amor foi inventado por tipos como eu para vender collants” –, frases que seduzem secretárias, artistas e clientes da agência publicitária onde é director criativo. Falo também das manhãs em que acorda com a roupa da noite anterior ou se esquece de ir buscar a filha ou tem um ataque de pânico ou aparece bêbedo numa reunião. É que já não acredito, como aos seis anos, que uma pedra verde de outro planeta seja a única fraqueza do herói. Quero ser Don Draper porque ele é a prova da distância entre aquilo que somos e aquilo que queremos ser, e porque depois do fracasso não desiste da fantasia: “Espero agora, serenamente, que a catástrofe da minha personalidade pareça outra vez bonita e interessante e moderna”.


Sobre estar vivo

Se nenhum homem é uma ilha quando os sinos dobram – o terramoto no Haiti, o tsunami no Índico, as bombas num comboio de Madrid – então nenhum homem é uma ilha quando, em vez de sinos que anunciam a desgraça, há canais de televisão a transmitir uma prova de vida. Mais de mil milhões de pessoas acompanharam o resgate dos mineiros chilenos. Num bar em Nova Iorque, conta o “NY Times”, um grupo via televisão segurando cartazes que diziam “Esperanza” e um chileno comentou: “A fé move montanhas e aquela montanha foi movida pela fé”. Um dos mineiros, chegado cá acima: “Estive com deus e o diabo. Ganhou deus, agarrei-me à melhor mão.” Houve quem visse na data uma prova do acaso divino: dia 13, mês 10, ano 10, números que somados dão 33, total dos mineiros. Percebo a fé dos homens mas prefiro encontrar alegria e consolo no engenho, na coragem e na dignidade dos homens que não aceitam ser uma ilha – falo dos especialistas da NASA que colaboraram no resgate, dos engenheiros que estrearam a cápsula e as roldanas ou de todos os mineiros que, sem excepção, queriam ser o último a subir. Mais de mil milhões de pessoas do mesmo lado: crentes, cínicos, adúlteros, filantropos, assassinos, doadores de órgãos, pais que cuidam, filhos ausentes. Gente inteira ou em colapso, gente que não se sentaria na mesma mesa mas que esteve em sintonia por causa dos homens capazes de inventar máquinas salvadoras e dos mineiros que, durante 69 dias, confirmaram a teoria da evolução desta espécie – aquela que diz que a morte existe para que façamos o melhor que podemos com a vida.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Conversa com poeta morto e de bigode


Para ser grande sê inteiro? Nada teu exagera ou exclui? Sê todo em cada coisa? Bonitas palavras, senhor Pessoa, tão inspiradoras como um anúncio da Nike. Mas e se tudo o que exagero e não excluo, se tudo o que sou em cada coisa, se toda essa inteireza nas acções me deixa mais desarrumado que triunfador, mais sozinho que em comunhão, mais mina anti-pessoal que tratado de paz? E quem é o senhor para dar dicas como um life coach? Se bem se lembra morreu de fígado abusado e maleitas diversas na alma anónima. Aceitar as suas sugestões seria como ter lições de condução com um cego.

O senhor fingia tão bem que ainda hoje acreditamos, quando lemos essas coisas que escreveu, que seremos inteiros. Mas não se lembra de também ter escrito que a sua alma caíra pela escada excessivamente abaixo e se partira como um vaso vazio? Nesse caso tinha razão, porque somos muito mais pilha de entulho do que alguma vez seremos inteiros.

Digo-lhe mais, antes que se ponha a beber e deixe de me ouvir: se ponho tudo o que sou em cada coisa, caro poeta, falho mais curvas do que o meu corpo pode aguentar. Se nada excluo tudo devoro. E se nada exagero morrerei de aborrecimento. E agora, pergunto-lhe, o que faço? Pois, nenhum dos seus poemas me ajuda, não há ode ou soneto que funcionem como aquela canção pop que toca na rádio e que, estamos seguros, fala exactamente daquilo que estamos a sentir.

Hoje, nem palavras bonitas nem poesia de auto-ajuda. Hoje digo-lhe na cara que sou muito menos inteiro do que poderia e gostaria de ser. E agora, o que vais fazer acerca disso? O que vou eu fazer acerca disso?

Pois. Se calhar é melhor pedir mais uma rodada enquanto não tomamos uma decisão.

Não se levante, eu vou lá.

Já lhe disse que gosto muito do seu trabalho?

Poetry

Crónicas das últimas semanas, no jornal i


Escritor

Mario Vargas Llosa viajou para o Congo e iniciou o relato desses dias com as palavras de Tharcisse: “O principal problema são as violações. Matam mais mulheres que a cólera, a febre amarela, a malária. Aqui o sexo não tem nada de prazer só ódio.” Tharcise cuida das mulheres violadas pelas milícias hutu fugidas do Ruanda. Llosa escreve sobre a miúda de 15 anos, escrava sexual dos hutu durante cinco meses, na selva, até que a expulsaram por estar grávida. Regressou a casa e um tio disse-lhe que, matando o bebé, seria bem recebida. Llosa escreve sobre o peso dos violadores que esmagaram a bacia de uma criança de cinco anos. Mas em nenhuma das descrições há voyeurismo comercial ou exploração de tablóide. Llosa escreve com o respeito de quem sabe ouvir. Num campo de refugiados ou diante de crianças soldado, o escritor encontra o lugar mais profundo da derrota mas também o lugar onde ainda se combate o fracasso – em Kinshasa, por exemplo, onde Émile Zola tenta impedir as térmitas de comer um museu ou no hospital de Tharcisse, onde a destruição das mulheres não impediu o escritor de reparar que o médico não vê a família há dois anos. Escreve Llosa, sobre a chegada: “Um lugar de beleza natural – havia nenúfares de flores malva na praia onde desembarcámos – e indescritíveis horrores humanos”. O escritor não ganhou o Nobel por esta reportagem no “El País” mas, como ele disse, o jornalismo ajudou-o a escrever livros. Num tempo de jornais anémicos e robotizados, Llosa lembra que o jornalismo só não consegue a nobreza da literatura se não quiser.


‘da-se

O taxista percebe que a corrida é curta, vira a boca de SG Gigante para o lado e morde a primeira sílaba: ‘da-se. O pai desliga a Playstation e ordena que o filho tire as canecas com leite de baixo da cama. O rapaz obedece mas primeiro afasta a franja canina dos olhos: ‘da-se. A mulher informa o marido que há reunião de condomínio. Ele veste o casaco e: ‘da-se. Há um ponto de equilíbrio, entre a confrontação e a resignação, que pode ser definido pela palavra: ‘da-se. É uma espécie de desabafo, uma declaração de princípios No fundo, ao dizer ‘da-se, estamos a dizer: ok, faço o que tu mandas, mas só porque sou obrigado. Por vezes – quando a mãe ordena um recado na hora do jogo, quando o chefe não sai do escritório antes das nove, quando o irmão mais velho monopoliza o computador – prolongamos a última sílaba num assobio – ‘da-sssse – para deixar claro que um dia destes ainda nos revoltamos. Quantas vezes, na adolescência, após uma homilia paterna, dissemos qualquer coisa mastigada, quase muda, mas cheia de raiva: ‘da-se. Quem tem algo a perder fica-se sempre pelo ‘da-se. Sem dúvida que dizer ‘da-se é mais chunga e mariquinhas que dizer a palavra por inteiro, mas assim evitam-se cenas de estalo, divórcios e parricídios. Embora amputada, trata-se de uma palavra necessária para a convivência humana. E se o governo português não enfrentou carros virados na rua e pneus em chamas bem pode agradecer ao carácter de uma nação que há anos, no café com a malta, diante das notícias, na casa de banho da empresa, prefere dizer ‘da-se do que gritar foda-se.


Cem anos de esperança

Estás na rua tão cedo que te lembras das manhãs de aulas, quando os estores subiam inclementes na janela e a tua mãe assegurava que não sairias de casa com ramelas. Mas é feriado e és adulto e vais trabalhar. Estás numa praça com bandeiras do teu país e, como os miúdos que esperam a carrinha da escola, imaginas-te a viajar no tempo cem anos. Estarias na rua, de espingarda na mão, ou ficarias em casa, preocupado com a preservação do teu corpo? Serias um revolucionário ou um comodista? Daqui a nada, vais ouvir um amolador noutro sítio deserto da cidade. Perceberás então que os feriados são muito mais generosos para os miúdos que, ainda na cama, ouvem a flauta solitária sem a melancolia do passado que oprime os adultos. Neste feriado haverá políticos e bandas filarmónicas e comparações entre aquilo que somos e aquilo que fomos. Num jornal, encontras mesmo uma foto dos “Vencidos da vida” – Eça, Ramalho, Junqueiro etc. – e um texto desse poeta açoriano que estoirou os miolos num jardim: “Se não reconhecermos e confessarmos os nossos erros passados, como podemos aspirar a uma emenda sincera e definitiva?” No final da manhã já encontras famílias na rua, crianças aprumadas como embrulhos de Natal, miúdos mais interessados num Happy Meal do que atormentados pelos erros dos pais, avós e bisavós. Serão um dia revolucionários ou comodistas? Não conheces nada do futuro. Mas sabes que, em vez da pistola de Antero de Quental, ainda preferes a placa do jardim onde o poeta se matou. Dizia: “Esperança”.

SOS

Na livraria há uma sala escondida, com bancos corridos, onde os clientes se abrigam para ler enquanto um clarinete nas colunas de som parece algodão caindo na alcatifa. É um sítio de paz onde uma tosse levantaria as sobrancelhas dos leitores. Num dos bancos está um velho que dorme um sono pós-almoço. Tem bigode, bochechas de vinho e um livro de Anaïs Nin na mão. Logo de seguida, estão quatro lolitas literárias – a mais bonita lê “Orgulho e Preconceito”, a mais pequena “Contos”, Eça de Queiroz, aquela que tem aparelho nos dentes segura um livro cor-de-rosa. Chega outro velho. É daqueles homens com unhas compridas, que sacralizam a literatura, julgando alcançar a poesia como ninguém e que, cruzando as pernas, apoiam o pulso no joelho – um gesto que tenta provar a gravidade da sua condição de eleito e que afasta a quarta leitora para outro lugar. O velho de bigode acorda. Os seis corpos, uns adolescentes, outros decadentes, estão agora alinhados no mesmo banco mas, páginas após página, as sinapses de cada um criam coisas diferentes – francesas que gostam de cama, inglesas pudicas, portuguesas loiras e singulares que roubam jóias. Estes leitores estão agora noutro mundo, não percebem sequer o martelo a bater na rua, não se importam com o rapaz mais giro da turma que não respondeu aos sms ou com o filho que deixou de ligar ao pai bebedor de tinto desde que a mãe morreu. Porque quando tudo nos falha – a religião, a política, a terapia, a internet, o amor – só a ficção nos poderá explicar aquilo que ainda não conseguimos perceber. E salvar-nos.



Cicuta

Nós, os portugueses, temos uma apetência para empurrar com a barriga decisões que precisam de rapidez e uma grua – adiamos, atrasamos, contornamos e esperamos sempre que tudo se resolva no último segundo. Nisso, este governo é muito português. Em Fevereiro, Sócrates disse: “Vamos fazer uma consolidação orçamental baseada na redução da despesa e não através do aumento de impostos.” Em Março disse: “O governo vai concentrar-se na redução da despesa do Estado. Mais fácil seria aumentar impostos, mas isso prejudicaria a nossa economia”. Na apresentação do primeiro PEC, disse: “Não haverá aumento de impostos”. Em Junho, disse, em Bruxelas, que não seria preciso reduzir os salários. Mais grave que a retórica do primeiro-ministro nos últimos meses – afinal sempre é preciso aumentar impostos e cortar salários – é a sensação que o governo, com o barco a meter água há tanto tempo, pensou que podia chegar a porto seguro sem mandar nada borda fora. Ou o primeiro-ministro mentiu, com medo de não ganhar as próximas eleições, ou cometeu o grave erro de não perceber, há meses, a necessidade das medidas agora anunciadas quando tantos países europeus já seguiam esse caminho. Se todas estas medidas tivessem sido tomadas no tempo devido, os portugueses talvez se sentissem agora mais empenhados que traídos. Sócrates, o filósofo grego, foi obrigado a beber cicuta por dizer a verdade. Sócrates, o primeiro-ministro português, perderá as próximas eleições por adiar a verdade.

Saturday night rain, crónica no i


Fumando, espera

Ela segura um chapéu-de-chuva amarrotado e as suas roupas, apanhadas pela tempestade, parecem tão tristes como rímel desbotado. Já não chove mas Lisboa continua abocanhada pela humidade, a calçada escorregadia, os pingos saltando dos toldos das lojas para a nuca de quem passa. Ela está na saída da estação de metro, tem roupa de discoteca numa noite de sábado em que a meteorologia lhe sabotou a maquilhagem e o penteado. Fuma e, com os dois polegares, não pára de teclar mensagens como se a lista de contactos do telemóvel a impedisse de sentir-se sozinha. E tens auscultadores nos ouvidos – com toda a certeza uma banda sonora que permite transformar a espera num teledisco. Passam muitas pessoas mas ninguém conhecido, ela olha para todos os lados, a perna direita tão inquieta como antes da oral de estreia na faculdade. Ela é nova e deve ter hora para chegar a casa. Começa a chover outra vez, mas pouco, uma espécie de vapor que se cola na cara como creme Nivea. Ela morde muitas vezes o lábio inferior, tenta abrir o chapéu-de-chuva com duas varetas fora de sítio. Não consegue. Penso que está prestes a chorar mas o telemóvel toca, ela atende e começa a procurar alguém. E é então que sorri, esquecida da roupa fria e do cabelo desarrumado, começando a caminhar na direcção dos rapazes e das raparigas que trazem garrafas e alegria alcoólica no volume da voz. Um rapaz beija-a na boca. Dão-lhe uma garrafa e ela bebe – uma, duas, três vezes. Já não se sente sozinha e segura o cigarro como num poster de cinema. Que a noite te seja leve, miúda.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Carta ao senhor Sarkozy (com banda sonora)



"Yo soy español integral y me sería imposible vivir fuera de mis límites geográficos; pero odio al que es español por ser español nada más, yo soy hermano de todos y execro al hombre que se sacrifica por una idea nacionalista, abstracta, por el sólo hecho de que ama a su patria con una venda en los ojos. El chino bueno está más cerca de mí que el español malo. Canto a España y la siento hasta la médula, pero antes que esto soy hombre del mundo y hermano de todos. Desde luego no creo en la frontera política".

Federico Garcia Lorca.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Why try to change me now



Sabes que a tua vida não é um filme e, no entanto, olhas o mundo como se fosse um ecrã. Sais de casa, o peito apertado, e caminhas pela cidade que ainda acredita no verão. Sentas-te ao lado dos bêbedos na praça, olhas a fonte sem nenhuma mulher bonita e descalça que dance como no cinema. Passam muitos turistas, os seus cabelos loiros, as suas roupas leves, nenhum deles te sorri mas gostarias de saber quem são. Tudo se resume ao coração do coração: a escrita - "A tua namorada", disseram-te. Voltas a casa com comida em pacotes. Há futebol nas televisões das esplanadas. Sobes a colina, estás só, incapaz de falar com aqueles que gostam de ti. Sentas-te, por fim, e começas a juntar as palavras. Vês: estás a escrever. E agora mostra o mundo do que és capaz.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

O Estado da Nação, texto publicado no i


Um estranho em São Bento

Num corredor do Parlamento, Eduardo está sentado na cadeira de veludo. Tem a seu lado duas colegas do sétimo ano. Os três teclam nos telemóveis, esperam que os outros miúdos usem as casas de banho. O debate no hemiciclo começou há uma hora e lá dentro há quem feche os olhos e não resista ao calor, ao corpo a pedir sesta, aos deputados que parecem alunos de liceu hiperactivos, tantas vezes indiferentes ao orador do momento, actualizando o Facebook, falando para trás, para o lado e para o telefone. Porque Eduardo é tão estreante nestas coisas do parlamento como eu, porque ainda não tem idade para cinismos, parece-me melhor interlocutor que os assessores parlamentares. Eduardo diz-me, sobre a viagem de estudo: “É interessante”. Quanto ao estado do país, informa-me: “Não tem nada a ver com o que o primeiro-ministro disse” – José Sócrates tinha falado do sucesso das medidas contra a crise, dos bons indicadores económicos, da aposta na ciência e tecnologia, da defesa do Estado Social e da importância do optimismo.

Escolher um adolescente para comentar o debate parece tão gratuito como os programas de televisão com criancinhas a cantar. Mas eu só queria descobrir alguém que ainda não tivesse sofrido desgostos políticos. Uma visão livre de preconceitos. Tudo isto porque decidi enfrentar a minha primeira viagem ao parlamento com o mesmo entusiasmo com que visitaria a Disneylândia caso alguém me tivesse levado em criança. E começou bem: a Assembleia parece funcionar com o profissionalismo de um condomínio fechado. Tudo impecavelmente polido e brilhante, senhoras de bata que empurram carrinhos como num hotel, menus no refeitório com direito a opção dieta, uma biblioteca com candeeiros dourados.

Há qualquer coisa de country club naquelas madeiras. Há qualquer coisa de requinte funcional, de serviço de conciérge, de internet sem fios grátis. Mas o parlamento também tem as características de uma escola ou de um quartel, esses sítios onde se juntam pessoas que se isolam do exterior – além do regimento oficial há um código de costumes para quem lá vive, as conversas nos corredores, as sms dos deputados para os jornalistas ao longo do debate, os apartes durante um discurso como uma guerra de bocas na sala de aula, o grupo parlamentar do PS aplaudindo quatro vezes o primeiro-ministro nos primeiros 2’51 minutos da sua intervenção, aplausos que surgem antes de
Sócrates finalizar uma ideia, aplausos regimentais.

O debate é aborrecido e, duas horas depois, há menos deputados nas cadeiras, os miúdos das escolas desapareceram das galerias. Mesmo tendo votado em branco, quero saber se me foi atribuido um deputado. Por sorte, encontro o único parlamentar que conheço pessoalmente – entrevistei-o antes das eleições. António Leitão tem 30 anos, estudou em Harvard, foi eleito pelo PSD. Faz-me uma visita guiada e diz-me que sim, que as pessoas têm direito a um deputado, que na próxima semana vai receber uma senhora que o contactou por email. Mas também me diz que: 1) o peso do ritual é brutal e as coisas não funcionam tão bem como deviam 2) pode não fazer-se nada como deputado ou pode fazer-se imenso como deputado. 3) não se governa a partir do parlamento, ou seja, a ilusão de mudanças rápidas geradas no hemiciclo seria uma ingenuidade.

Basta um debate no parlamento para perder a inocência de estreante. Basta olhar para o hemiciclo para perceber que aquelas pessoas gostam tanto das redes sociais como nós e que também bocejam sem tapar a boca. Em determinados momentos tudo aquilo parece inútil, como se fosse um teatrinho para as câmaras. Noutros momentos parece solene, tão decisivo e imponente como as escadarias do edifício.

No corredor deserto António Leitão pára de falar porque aparece José Sócrates acompanhado de seguranças. Diz-nos: “Boa tarde”. E em seguida comentamos a resiliência do primeiro-ministro. Sócrates regressa minutos depois. Voltamos a calar-nos. Vejo-o caminhando, sozinho, afastando-se sobre o tapete vermelho, sem a escolta dos seus ministros no hemiciclo, e lembro-me que o chefe de governo gosta de Fernando Pessoa. “O que há em mim é sobretudo cansaço/ Não disto nem daquilo,/ Nem sequer de tudo ou de nada:/ Cansaço assim mesmo, ele mesmo,/ Cansaço”. Só agora me dou conta que o cansaço não é apenas do primeiro-ministro, é um cansaço antigo que está nos retratos de todos os mortos pedurados no parlamento, na cara de parvo de D. João VI, no olhar assertivo de Sá Carneiro, no público nas galerias, nos deputados que acumulam legislaturas, na nação que está a ser debatida, “um supremíssimo cansaço./ Íssimo, íssimo. íssimo,/ Cansaço…”.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Polvo ataca Ronaldo Jr., crónica no i




O polvo vidente Paul desapareceu do Sea Life Aquarium. Os primeiros dados apontavam para que Paul, que nos últimos dias encheu páginas de jornais, tablóides, revistas e abriu noticiários em todo o mundo, disputando manchetes com o filho de Ronaldo, tivesse um esgotamento nervoso por causa da fama súbita e, tal como Zé Maria, vencedor do Big Brother, deambulasse perdido pela cidade com um gatinho ao colo. Paul, a quem um psicólogo televisivo diagnosticou um terrível medo de falhar, chegou a ser ameaçado por neo-nazis após prever que a Alemanha perderia para a Espanha. Este cronista soube, através de uma fonte do aquário, conhecida como Navalheira, que a família suspeitava de rapto. Uma ministra espanhola chegou a pedir medidas de protecção para Paul – “Para que os alemães não o comam” – e Zapatero sugeriu uma equipa de resgate. Tarde de mais. Paul desapareceu no dia em que Ronaldo regressou a Portugal, após férias em Nova Iorque. A conversa do jogador com a namorada, no Facebook, através da qual ficámos a saber que ela desconhecia a existência da criança, foi ultrapassada e o casal visitará a família do craque. Esta madrugada, uma fã de Ronaldo entrou na propriedade e colocou o refém, Paul, junto do bebé, gritando: “Diz-me se foi inseminição artificial ou descuido?” Paul assustou-se com tantos fotógrafos e atacou a criança. A fã foi convidada para aparecer na Playboy. Espera-se que Ronaldo actualize o seu estatuto no Facebook para sabermos mais sobre o assunto. Mais, queremos mais. Sempre mais.

Manual de sobrevivência, crónica sobre calor, no i


Se tens o corpo em chamas respira como quem mergulha. Desvia-te do alcatrão de melaço onde os carros se afundam, escorrendo ira e borracha. Evita o reflexo incendiário das montras, os bancos públicos de metal, o telemóvel a carburar na orelha. Não te aproximes do fogão e escolhe uma dieta de frigorífico. Come fruta com as mãos e bebe água gelada de seguida. Sintoniza um posto de rádio em que toque uma trompete, um saxofone, uma preta com fumo na voz e crimes passionais na garganta. Não tenhas medo de estilhaçar o gelo com os dentes nem da surpresa dos regadores da relva. Desliga a televisão caso uma repórter faça perguntas, sobre o calor da tarde, a uma mulher que não pára de cavar o campo. Uma mulher que, pressionada pelo microfone – “Responda com sinceridade” –, levanta a cara escondida na sombra de um panamá: “Nós fomos criados assim.” É normal que, depois de ouvir isto, o corpo te pese ainda mais. Por isso, abre a torneira e esconde-te debaixo de água, telefona ao amigo que tem uma piscina, executa uma fuga na direcção das ondas. Não tenhas medo da procrastinação em lume brando porque o calor é um extraordinário criador de memórias. Foi em dias assim que te atirastes da rocha mais alta, que te deixaram andar de bicicleta durante a noite, que a irmã do teu melhor amigo, mais velha quatro anos, te encostou no mármore das escadas e praticou contigo a arte dos beijos na boca. Não te assustes se, por estes dias de calor cardíaco, te achares quieto por umas horas. Porque é exactamente destes dias que te vais lembrar.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Dia de jogo na crónica do i


La cogida y la muerte

Gosto de Espanha, das sombras do bairro de Malasaña durante a sesta e do furor dos madrilenos assim que o sol começa a baixar e as mesas se cobrem de copos. Gosto de “tortilla de patata”, de salmorejo e de tabaco Fortuna. Gosto dos pátios de Córdoba, das praias de Tarifa, da sidra asturiana que sobe ao cérebro como uma bala de prata. Gosto da auto-estrada para Sevilha, os seus puticlubes com neons na berma, ondas de calor a estremecer como água na planície, uma mulher a dizer-me: “Uma esplanada às sete da tarde, com este calor? És louco?” Gosto da palavra “Joder”. Gosto do matador José Tomas, porque mostra uma entrega, em cada movimento da muleta, que poucos humanos conseguem pôr naquilo que amam – e porque uma mulher lhe gritou: “Me has arrancado mi corazón y ahora lo tengo en un puño”. Gosto das palavras espanholas de Juan José Millás, inscritas na carne da memória como um bisturi que também cicatriza. Gosto da aldeia de Castela La Mancha onde os velhos me falaram da guerra civil. Gosto das praias pintadas por Sorolla e das mulheres que atacam, seguras, nos seus saltos altos. Gosto muito de Espanha e do poema de Lorca, “La cogida y la muerte”, que diz que “a las cinco de la tarde eran las cinco en punto de la tarde”. Mas, ao contrário do que diz o poema, a criança não aparecerá com um lençol branco – aparecerá um homem português, vestido com a cor do sangue derramado na praça de Lorca. Hoje, às sete e meia em ponto, não serão as hastes do touro a penetrar o coração. O sangue – España, mi amor – estará dentro da tua baliza.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Noite em branco, reportagem publicada na Index, revista do i


Um homem que sai sozinho à noite, com calças brancas, não pode recusar a bondade dos estranhos. É por isso que estou na rua, entre espanhóis que me oferecem bebida, comida e cigarros. Começo a ficar menos consciente da minha roupa de primeira comunhão porque eles, tal como eu e outras quinze mil pessoas, se vestiram de branco para entrar na festa Sensation White, no Pavilhão Atlântico. Samuel Prieto é o líder do grupo de andaluzes. Tem o peito largo, o cabelo com gel, uns óculos escuros pendurados na gola da t-shirt. Quero fazer-lhe perguntas mas Samuel não descansa enquanto não mastigo a tortilha de batatas da sogra. E faz piadas: “A minha sogra é uma grande tortillera” – em castelhano tortillera também quer dizer fufa. Os espanhóis chegaram de Huelva. Têm três geleiras com comida e um bar na carrinha estacionada ao lado do Pavilhão. O rádio toca música electrónica para quem passa, como num arraial – a batida é um coração gigante a pulsar nos tímpanos. Depois de mandar a namorada servir-me uma dose (dupla) de rum, Samuel diz: “Gastámos 200 euros por cabeça, incluindo o bilhete, que custou 65, eu gastei 400 porque paguei a parte da minha namorada.” Não há crise económica em Huelva? “Tenho uma empresa de ar condicionado num sítio onde faz muito calor.” Samuel pergunta se quero outra bebida.

Em Huelva, dizem, não há tanta variedade de gente, nem aparecem Dj’s de primeira linha. “Não há afluência [de pessoas]”, conta Samuel. Olho para a roupa e atitude de uma das miúdas espanholas, com óculos de massa, que podia ser estudante de belas artes em Berlim, e percebo que a globalização é um facto consumado. Huelva pode não ter festões cosmopolitas, mas tem internet. Só o sotaque andaluz, tão sibilado como uma lâmina na pedra do amolador, denuncia as origem dos viajantes. Eles podem ser de Huelva, mas apresentam-se como num vídeo clip. O que procuram? “Pasarlo bién”, respondem. Ou seja, curtir largo. Grato ao meu anfitrião, ofereço-lhe um cigarro. Samuel, o macho alfa generoso, diz: “Obrigado mas não fumo lights”, e saca de um Malboro a sério. Já começou o espectáculo de abertura e a nave mãe chama os seus discípulos. Há filas para entrar.

Estou no salão vip delux como num céu almofadado, envolto na gaze branca com que o rum duplo embrulhou o meu cérebro. Tudo é branco e vasto e cruzo-me com meninas de calções curtos e asas de anjo prateadas. Têm ancas estranhamente magras e pernas longamente jovens. Pergunto-me sem têm idade legal para estar ali (“Lolita: a ponta da língua fazendo uma viagem de três passos pelo céu da boca, a fim de bater de leve, no terceiro, de encontro aos dentes. Lo. Li. Ta.”) Tem lógica. O tema da festa, “Wicked Wonderland”, mistura sonhos infantis, alusões ao País das Maravilhas, borboletas, fatos teatrais, cintos de ligas e uma ou outra prática de dominação – mais tarde, no palco, bailarinas irão passear outras bailarinas pela trela.
Saio da calma vip (ainda é muito cedo) e enfio-me pelos túneis brancos, piso alcatifa branca, e entro por fim na escuridão momentânea da pista de dança principal. Depois as luzes acendem-se, o som é poderoso, o cenário imperial. O espectáculo está no palco, no centro da pista. Milhares de pessoas de branco dançam viradas para o Dj. Lisa Stutterheim, mulher do criador da festa, tinha razão quando disse: “Não é uma rave, é um cruzamento entre um concerto, o Cirque Du Soleil e um evento de dança.”

Embora com roupa da mesma cor, todos os participantes querem ser diferentes, saciando na pista a necessidade humana e contemporânea que ordena: sintam-se parte de alguma coisa comum mas desenvolvam uma identidade distinta. Esta é a tribo Sensation White: irmãos de branco durante algumas horas, fiéis da música electrónica, seguidores de Dj’s celebridades, hedonistas imediatos, dançarinos furiosos, sedutores à espreita, exibicionistas aperaltados, utilizadores do corpo com claras noções dos benefícios do pecado, cada um sentido-se singular e contrariando as certezas de Tyler Durden: “Não és especial. Não és um floco de neve bonito e único.”

Fuck Tyler Durden – as pessoas na pista não vieram ouvir sermões. Vieram, já se sabe, para curtir. Este é o nosso coliseu romano. Não matamos cristãos nem aplaudimos gladiadores. O espectáculo agora somos nós, o nosso corpo a subir com a música, o culto do eu e dos acessórios de moda: rapazes de t-shirt de alças com lentes de contacto que imitam os olhos dos vampiros, um homem de saias brancas e cabelo de Jesus Christ Super Star, negros com máscaras venezianas brancas, milhares de óculos escuros, a ocasional Monica Selles com roupa de jogar ténis, o rapaz com chapéu de basebol largo na cabeça e atitude de gangster rapper, as duas miúdas que posam uma para a outra, as duas miúdas que se beijam na primeira de várias cenas girl on girl. E para que tudo seja mais especial e memorável, há sempre telemóveis levantados entre a multidão para filmar o palco, os fogos de artifício, a própria multidão aos gritos.

Horas mais tarde, no camarote presidencial, olho para a pista, lá em baixo, e percebo que há tanto de ritual, na forma como milhares de pessoas dançam em redor do altar do Dj, como nos milhões de muçulmanos que todos os anos, vestidos de branco, dão sete voltas a Kaaba, em Meca. André Resende, 30 anos, um dos sócios da Hype, empresa portuguesa responsável por trazer a festa para Lisboa, explica-me o mito fundacional da Sensation White: “O irmão do criador do conceito tinha morrido umas semanas antes da primeira festa. Ele não sabia se cancelava ou não mas decidiu que podia homenagear o irmão se fossem vestidos de branco. É uma forma de recordar o irmão todos os anos.” Essa festa de estreia aconteceu em 2000, em Amesterdão, com 20 mil pessoas no estádio do Ajax. Dez anos mais tarde, a Sensation White acontece também na República Checa, Espanha, Bélgica, Polónia, Alemanha, Chile, Brasil e Russia. André diz que o espectáculo, que dura oito horas, custou cinco milhões de euros a desenvolver. Depois os holandeses vendem-no para diferentes cidades. Duncan Stutterheim, o tal fundador, dono da empresa ID&T, é um dos homens mais ricos da Holanda.

Pergunto quanto custa uma mesa no vip deck, mesmo ao lado do camarote presidencial. André diz: “Três mil e quinhentos euros, para oito pessoas, com direito a oito garrafas.” Quem costuma reservá-las: jogadores de futebol que trazem os amigos de infância, empresas que gostam de mimar os clientes. Durante a noite, há quem compre mais garrafas para as mesas (150 euros) e ofereça 50 euros de gorjeta às empregadas giras. André também me explica, com entusiasmo pelas coisas mecânicas, como funciona a esfera que faz rodar o palco – os amigos alcunharam-no de “Tetris” por estar sempre a organizar geometricamente os objectos em cima da secretária.

Estica o braço para os ecrãs gigantes, para o filme que passa entre a mudança de Dj’s: “É a história de uma miúda, meio inocente, que vai abrindo portas até encontrar o caminho. Em cada porta há um tipo de música diferente, no fim está com outra mulher, vestida de cabedal preto” – nunca uma metáfora pareceu tão adequada para o que acontece durante a noite. Saímos de casa engomados, cheirosos, imaculados, acreditando nas surpresas do caminho, abrindo portas, e acabamos corrompidos, com os sapatos sujos, a roupa colada na pele, o corpo gasto. Não nos enganemos, as pessoas saem à noite para se comerem. Não se trata apenas de sexo, não é isso – pode ser o flirt com os empregados de bar, podem ser os sapatos de salto agulha, pode ser a vontade que gostem de nós, pode ser o jogo da caça, pode ser a dança da namorada que activa o desejo numa relação que dura há sete anos. A noite é uma forma de strip-tease: as pessoas ficam mais acesas, mais vulneráveis na carne, menos domesticadas. E não é por acaso que as meninas que vendem senhas de bebidas têm todas a mesma t-shirt com um decote acentuado ou que as bailarinas no palco estão vestidas como se para acompanhar a excentricidade de Lady Gaga, a rebeldia sexual de Madonna ou as ancas maleáveis de Shakira. O sexo vende, cativa e deslumbra. Quem disser o contrário, na Sensation White, é tolo.

Tudo isto parece evidente para Fred, rapaz educado e de boas maneiras, ex-habitante de outros países, conhecedor de festas internacionais, que sabe que a cumplicidade entre homens se constrói, tantas vezes, a falar de mulheres. E no salão vip delux há muitas mulheres bonitas, celebridades da televisão, meninas betas e de solário, agentes provocadoras por uma noite. Fred diz, com discrição: “Olha aquela”. E, no meio de tantos vestidos curtos e saltos altos, entre pernas morenas e tonificadas, na confusão apetecível de penteados e lip gloss, torna-se difícil identificar a escolhida de Fred, que acrescenta: “É aquela, com as orelhinhas de coelho na cabeça”. Quando lhe pergunto o que acha da festa, ele responde: “É elevar a rambóia de Lisboa a outro patamar.” Resolvo acompanhá-lo no caminho para a pista principal. Ele diz a frase de ordem das noites de dança: “Embora lá para o meio”. Quanto mais perto do Dj mais perto do centro do prazer. Depois perdemo-nos um do outro.

Desde segunda-feira que André Resende dorme num hotel para estar mais perto do pavilhão. Tem poucas horas de sono e ainda que confesse que, ao ver-se de branco, no espelho do quarto, tenha pensado, “Olha o Mickael Carreira”, o casaco e os ténis Converse parecem o uniforme de um empresário da noite de Miami. Desloca-se pelo pavilhão numa trotinete, falando com os colaboradores que precisam de ajuda, sendo parado a cada cinco metros por amigas, conhecidos, funcionários, um careca de gigantes olhos azuis, com pele bronzeada e músculos de legionário no deserto, que mais tarde me dirá: “Esta festa devia ser todas as semanas”.

Cruzamos as entranhas do pavilhão, onde o público não tem acesso, passamos por tubos e empilhadoras, até que entramos numa pequena sala onde um homem gordo escuta as comunicações de rádio. Diz que alguém precisa de uma acreditação. André, o solucionador dos problemas, trata disso e explica-me que tencionava simplificar as coisas desde o início: “Só queria três tipos de pulseiras para as diferentes áreas, mas não conseguimos. Há 16 pulseiras e três acreditações.” O rebanho de quinze mil pessoas precisa de ser distribuido e arrumado. É um monstruoso processo de organização.

Mas por que vem esta gente toda para aqui, dançar, vestida de branco?, pergunto. E André responde: “O que a nossa geração quer é pão e sensations”, e solta uma gargalhada, sabendo que aquilo que disse está entre o slogan de refrigerante e a análise sociológica. Por fim, abandona a trotinete e leva-me para o salão vip. Não nos voltaremos a ver.

Tanto na pista principal como nas áreas vip uma coisa é certa: hoje, os portugueses cuidam mais da aparência. Os espectáculos com passadeira vermelha, trasmitidos na televisão, as revistas de moda, as fotografias de famosos, as lojas globais de roupa, serviram para apurar o estilo. Esta é a geração que nasceu em democracia e para quem a liberdade é também uma autorização para usar o corpo como bem entender, sem restrições morais, com voracidade – seja através do sexo, das drogas, do álcool, da dança, da roupa com etiqueta de marca. Não há, nesta festa, a sensação apocalíptica do fim de uma era, como se o império da boa vida estivesse próximo do fim. Duvido que na pista alguém pense que os salários irão mesmo baixar, que o modelo social europeu corre perigo ou que as pensões de reforma e as noites de dança estão em risco. Este tipo de festas já faz parte do estilo de vida, como o Natal, as férias de verão, o décimo terceiro mês. São um direito adquirido. Este não é um lugar para a austeridade, é um escape para o excesso.

Já a caminho da saída, encontro um dos espanhóis, de língua alcoolizada, mas ainda capaz de dizer: “Perdi-me dos meus amigos, é impossível achar alguém aqui, estão todos vestidos de branco.” São quatro e meia da manhã, a sobriedade e o cansaço empurram-me para a rua, onde os prédios do Parque das Nações se acumulam como legos mal amanhados, símbolo do mau gosto e da opulência de outros tempos. Não há nenhum prenúncio de austeridade – o que a nossa geração quer é pão e sensations. Vejo uma luz verde, estico o braço no ar, não preciso sequer de gritar a palavra mais importante no fim de uma noite: táxi.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

O verão começa hoje








O VERÃO

Estás no verão,

num fio de repousada água, nos espelhos perdidos sobre

a duna.

Estás em mim,

nas obscuras algas do meu nome e à beira do nome

pensas:

teria sido fogo, teria sido ouro e todavia é pó,

sepultada rosa do desejo, um homem entre as mágoas.

És o esplendor do dia,

os metais incandescentes de cada dia.

Deitas-te no azul onde te contemplo e deitada reconheces

o ardor das maçãs,

as claras noções do pecado.

Ouve a canção dos jovens amantes nas altas colinas dos

meus anos.

Quando me deixas, o sol encerra as suas pérolas, os

rituais que previ.

Uma colmeia explode no sonho, as palmeiras estão em

ti e inclinam-se.

Bebo, na clausura das tuas fontes, uma sede antiquíssima.

Doce e cruel é setembro.

Dolorosamente cego, fechado sobre a tua boca.

José Agostinho Baptista

sábado, 19 de junho de 2010

O Homem Duplicado


José Saramago, com ofício de escritor, passou na esquina da Spring com a Greenwich, em Nova Iorque, numa tarde de 2002, quando o empregado Hugo Gonçalves, com o restaurante vazio, lia o romance “Money”, de Martin Amis. O rapaz levantou a cabeça sem nenhum motivo que o justificasse e, enquadrado na porta, no outro lado da rua, descobriu o escritor. Hugo saiu e estendeu-lhe a mão. O escritor perguntou o que fazia o rapaz naquela cidade. O que importa mencionar dessa conversa é aquilo que, por pudor e bom senso, o rapaz não disse (que andava a escrever o seu primeiro romance e que podia prová-lo com as notas guardadas atrás do balcão). Quatro anos depois, Hugo Gonçalves, cliente de um restaurante em Madrid, esperava o seu hambuguer e lia uma revista. Mais uma vez, levantou a cabeça sem nenhum motivo que o justificasse, e através da porta encontrou o escritor. Saiu para a rua de mão estendida, arriscando mencionar a coincidência – dois portugueses, duas cidades, dois restaurantes, duas esquinas. Não referiu, claro, e ainda bem, que tinha publicado o tal romance. “Senhor Saramago, eu também escrevo”, foi frase que não se disse naquela esquina. Desses encontros, há um exemplar de “Money” com a assinatura de Saramago e a sensação que o acaso dos eventos em Nova Iorque e Madrid podia ser a premissa de um romance. Não foi, nem será. Ficou por dizer: Senhor Saramago, eu também escrevo, e a si cabe-lhe alguma responsabilidade. Depois de ler um dos seus livros, pensei: “Quero saber como se faz isto tão bem”. Prometo-lhe que continuarei a tentar.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Oração do escritor


"Estou comprometido, ou seja, vivo, num mundo que é um desastre. O meu empenho está em não separar o escritor da pessoa que sou. Esforço-me, na medida das minhas possibilidades, em tratar de entender e explicar o mundo».

José Saramago.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

crónicas no i



Rumo ao sul


Há anos que não cruzava o país de autocarro, como antes, quando no alcatrão que cicatrizava o Alentejo apertávamos os dedos nos estofos a cada ultrapassagem porque havia sempre alguém que falhava uma curva. Tínhamos a certeza que não havia no mundo viagem mais longa – uma aventura que só terminava na placa “Algarve” quando nos percebíamos perto das corridas de caricas e dos concursos de mortais para a piscina. Mas agora descer o país de autocarro é diferente. Há máquinas de bebidas no cais de partida e revistas que nos entretêm durante as duas horas e pouco (tão pouco) em que deslizamos na auto-estrada. Há ainda a babilónia linguística dos miúdos viajantes e estrangeiros, com phones brancos nas orelhas, que agora atravessam a Europa como quem vai ao pão. Há bancos de couro como num descapotável, televisões que mostram os horóscopos, um WC onde caberia uma família monoparental. E, claro, tenho sempre a mesma sorte em comboios, aviões e autocarros – a brasileira gira passou por mim mas foi a velha com cabelo de fuzileiro que ficou a meu lado: “Desligue aí o ar condicionado que não me dou bem com essa coisa.” Há, no entanto, coisas que não mudam: assim que chegamos ao destino e abandonamos o ambiente controlado da nave espacial, somos abocanhados por esse calor com cheiro de figos, capim, alfarrobas, pinhas e terra vermelha das falésias, esse calor musicado por cigarras e grilos e regadores de relva, esse calor cá de baixo, esse calor algarvio. Então, temos a certeza que somos outra vez tudo aquilo que fomos em todas as férias grandes.

Todos os nomes


No dia 4 de Abril de 1989, não valeu a Maristela Just encontrar-se na residência dos pais, no misericordioso bairro da Piedade, em Jaboatão de Guararapes, segunda cidade do estado tropical de Pernambuco, quando o legítimo marido, José Ramos Lopes Neto, de quem estava separada há dois anos, apareceu com uma arma de fogo para matar toda a família. O atacante, filho do advogado criminalista Gil Teobaldo, trancou-se num quarto com a família, disparando três vezes sobre a mulher e acertando na cabeça da rapaz (com dois anos), no ombro da rapariga (com quatro anos) e algures no cunhado, Ulisses Just, que aparecera em missão de socorro. O homicida foi detido e enviado para a penitenciária Aníbal Bruno, em Tejipió. No julgamento, que aconteceu esta semana e durou 13 horas, testemunharam Natália Just e Zaldo Neto (os filhos sobreviventes), Harlan de Andrade (policial civil), ficando por ouvir Gilson Calábria e Walter de Figueiredo Filho, testemunhas ausentes. Pela morte da mulher, o réu foi condenado, por um júri popular, a 79 anos em regime fechado. José Ramos Lopes Neto, que desapareceu há 20 anos quando lhe foi concedido um habeas corpus, também não marcou presença em tribunal embora, como disse a juíza Inês Maria de Albuquerque, tenha sido feita uma busca ao réu sem que este fosse encontrado em seu endereço. No final, a filha perguntou: “E se ele decidir terminar o que começou [há 21 anos]?” Não há motivos de alarme: José Inaldo Cavalcanti, nomeado pelo Estado para defender José Ramos Lopes Neto, explicou que jamais fora contactado pelo réu.

No fio da navalha


Fomos criados com supermodelos na imaginação erótica e conhecemos a intimidade das actrizes perfeitas no ecrã do computador. Para manter sustentável este mundo de fantasia, acreditamos na globalização da cirurgia plástica para as mulheres. Contudo, este galopante processo de uniformização da beleza feminina, com milhões de aderentes em todo o mundo, e que tanto se inspira nas modelos da “Vogue” como na actriz recauchutada da novela da Globo, está em declínio na Europa e nos Estados Unidos, país líder em número de plásticas. Em Espanha, por exemplo, as cirurgias estéticas caíram 30% por causa da crise, com destaque para as raparigas entre os 18 e os 22 anos, que recebiam correcções a bisturi como presente de aniversário. Eu sou suspeito porque ainda ontem me senti arrebatado diante de uma paragem de autocarro com a Gisele Bündchen deliciosamente passada a ferro por photoshop. E confesso que já me espantei, como um pateta durante um truque de cartas, ao encontrar implantes num decote arriscado. Mas custa-me aceitar que tantas mulheres se mutilem para serem apenas mais uma cópia, que não percebam que a homogenia não dá assim tanta ponta e que nem sempre é o maior par de mamas que faz suspirar a sala. Mesmo com a crise a ajudar, sei que será muito difícil passar esta mensagem. No Iraque muçulmano, agora com menos atentados e uma economia em crescimento, as plásticas aumentaram 50%. Os americanos, triunfadores mundiais do silicone, bem avisaram que não saíam dali enquanto não consolidassem a democracia e os valores ocidentais.

NY me mata

Bill Clegg tem cara de menino loiro bem comportado, de rapaz que chegou a Nova Iorque, do interior dos Estados Unidos, acreditando que jantar comida chinesa era uma actividade glamorosa. Mas, rapidamente, a inocência foi substituída pelo sucesso enquanto agente literário e por uma invulgar sensibilidade como leitor. Bill ajudava, como ninguém, os escritores a editar os manuscritos. Com 31 anos, sofisticado, bem pago, culto, influente, abriu a sua própria agência e levou consigo alguns dos autores mais consagrados – os mesmos que, no início de 2005, não conseguiam contactá-lo, porque Bill estava desaparecido há semanas. Os rumores espalhavam-se, em surdina, por parecerem tão escabrosos e tristes. Bill conta agora tudo no seu livro, “Portrait of an Addict as a Young Man”, uma memória desse tempo em que ficou agarrado ao crack, ao sexo com desconhecidos, e em que gastou quase 70 mil dólares a fumar cocaína em hóteis de luxo na companhia de prostitutos – “Quero o esquecimento desfocado dos corpos em colisão durante o sexo”, diz no seu livro. Tudo acabou com um frasco de comprimidos para dormir, menos 20 quilos no corpo, e o colapso de uma existência, uma empresa, uma relação amorosa de oito anos. Bill entrou numa clínica, voltou a cair – vendeu uma fotografia de 20 mil dólares – mas há cinco anos que não consome. Foi contratado para uma das melhores agências literárias da cidade. Os seus antigos escritores foram com ele. Recebeu um adiantamento de 350 mil dólares pelas suas memórias. Nova Iorque mata. Mas também ressuscita.

Gorilas em Fiji

Os jornais diziam que o exército de Israel atacara, em águas internacionais, barcos que transportavam ajuda humanitária para Gaza. Morreram entre dez e 19 pessoas. O meu cérebro reagiu, lembrando-se de uma frase, no livro “The pugilist at rest”, do americano Thom Jones. Tive de procurar o livro, depois o parágrafo no qual o narrador afirma que a consciência dos gorilas é uma consciência do aqui e do agora, sem necessidade de guerra ou tortura, e que não é assim tão difícil aos seres humanos alcançarem esse estado – basta beber cinco martinis dentro de uma banheira de água quente. Por fim, encontrei a frase que procurava: “Leiam os jornais e percebem o que digo. O comportamento humano, 98% das vezes, é abominável.” Fui ler os jornais, como manda o narrador: “Acusado de engravidar filha surda”, “Bebé sofre queimaduras solares por desleixo dos pais”, “Mais de 145 mortos num atentado em Bengala”, “Acusado de espancar enteado de quatro anos é agredido por colegas de cela”, “Noivas criança escapam a casamento mas não a chicotadas”, “BP admite que o petróleo pode jorrar durante meses”, “Ditador Mugabe paga um milhão para ver o Brasil jogar”. Esta é uma pequena amostra da minha busca. Não devia surpreender-me, o narrador tinha avisado: “Os gorilas são felizes. Não precisam de ténis New Balance ou um Jaguar. Não há um gorila que tenha o desejo de violar ou assassinar.” Há dias em que, por mais fé que tenha na raça humana, só me apetece imitar o narrador: “Há uma série de ilhas desertas em Fiji. Eu e os meus cães vamos dar uma de Robinson Crusoe.”