terça-feira, 13 de julho de 2010

Manual de sobrevivência, crónica sobre calor, no i


Se tens o corpo em chamas respira como quem mergulha. Desvia-te do alcatrão de melaço onde os carros se afundam, escorrendo ira e borracha. Evita o reflexo incendiário das montras, os bancos públicos de metal, o telemóvel a carburar na orelha. Não te aproximes do fogão e escolhe uma dieta de frigorífico. Come fruta com as mãos e bebe água gelada de seguida. Sintoniza um posto de rádio em que toque uma trompete, um saxofone, uma preta com fumo na voz e crimes passionais na garganta. Não tenhas medo de estilhaçar o gelo com os dentes nem da surpresa dos regadores da relva. Desliga a televisão caso uma repórter faça perguntas, sobre o calor da tarde, a uma mulher que não pára de cavar o campo. Uma mulher que, pressionada pelo microfone – “Responda com sinceridade” –, levanta a cara escondida na sombra de um panamá: “Nós fomos criados assim.” É normal que, depois de ouvir isto, o corpo te pese ainda mais. Por isso, abre a torneira e esconde-te debaixo de água, telefona ao amigo que tem uma piscina, executa uma fuga na direcção das ondas. Não tenhas medo da procrastinação em lume brando porque o calor é um extraordinário criador de memórias. Foi em dias assim que te atirastes da rocha mais alta, que te deixaram andar de bicicleta durante a noite, que a irmã do teu melhor amigo, mais velha quatro anos, te encostou no mármore das escadas e praticou contigo a arte dos beijos na boca. Não te assustes se, por estes dias de calor cardíaco, te achares quieto por umas horas. Porque é exactamente destes dias que te vais lembrar.

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