sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Refém


Porque será que as gravações telefónicas são sempre feitas com vozes femininas - na caixa de mensagens dos telemóveis, no serviço de apoio a clientes do banco ('Para extravio de cartões, marque 5'), na lista de espera da companhia de águas de Cascais que me tem há um dia suspenso, sem água, e sem solução. Eu espero e espero e espero. E de vez em quando, por entre a versão de uma peça clássica irritantemente tocada por uma criança de dois anos, dedo a dedo, tecla a tecla, lá aparece a voz de uma menina a dizer: 'Por favor aguarde'. Eu estou a aguardar há duas horas, tendo tempo até para escrever este texto. E desde ontem, às três da tarde, para que restabeleçam o serviço. Se as gravações são feitas por vozes femininas para acalmarem os clientes frustrados, posso já dizer que não funciona. Sinto-me tão impotente como um dissidente chinês. Estas companhias, que se escondem por trás dos telefones, têm um esquema montado para ignorarem os clientes e as suas queixas. Não te trata apenas de incompetência, trata-se de 'estou-me a cagar para ti; e tu, que precisas da água, aguentas e não bufas'. Parece que me estão a fazer um favor. Cascais, que há anos se esforça para ter a imagem cuidada e limpa da Califórnia, tem hoje a qualidade dos serviços de Cascais em 1712, quando nem sequer havia saneamento básico. O erro desta gente é pensar que a modernidade são apenas rotundas com palmeiras, centros comerciais estilizados, agentes da polícia montados em segways, e meninas a gravar mensagens de paz para clientes mal servidos.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

O dinheiro ou a vida


Desde que regressei a Portugal que não páro de ouvir frases escandalizadas contra a falta de segurança. Fui testemunha, recentemente, num comboio, de um roubo - um tipo de 30 e tal anos puxou o telefone a uma adolescente, no segundo antes das portas se fecharem, e saiu a correr. As portas fecharam-se. Levantei-me, andei até ao fim da carruagem, e fui falar com a miúda em estado de choque. Chorava porque era o seu 18º aniversário e, sem telemóvel, não ia poder combinar com os amigos. Tentei acalmá-la e ofereci-lhe o meu telemóvel para ligar aos pais ou a quem precisasse. Juntou-se um grupo de três senhoras à nossa volta. Talvez esteja errado, mas preocupou-me mais a infelicidade da adolescente do que a fuga do ladrão. Tudo na adolescência tem o dramatismo do final dos tempos, e a ruína de uma festa de aniversário, ainda para mais o 18º, destruiu, por momentos, aquela miúda loira chamada Mercedes. Uma das senhoras insistia em pedir a Mercedes que relatasse o roubo e dizia pelo canto da boca: "Isto está bonito está". Depois, baixando o tom de voz, como se procurasse a minha cumplicidade, ou como quem diz 'bom dia' à vizinha do terceiro, que afinal é uma porca que se anda a meter debaixo do homem do gás, a velha decidiu perguntar-me: "Ele era branco ou preto?" Sem resposta, insistiu: "Era brasileiro?"

Nessa noite, disse a Mercedes que se fosse embebedar com os amigos e que comprasse um telemóvel novo quando lhe desse jeito.

Hoje vejo no jornal: 'Mãe recusou dar dinheiro para droga e levou um tiro'. E pensei que, no meu tempo, os drogados roubavam as jóias da família ou o dinheiro da carteira da avó. Jamais disparavam sobre as mãezinhas. Hoje, a senhora do comboio deve estar a sorrir de contentamento: "Se não é brasileiro nem preto, então é drogado". Os portugueses aborrecidos com a vida, como a senhora do comboio, não se deviam queixar da criminalidade. Os crimes animam os dias sem nada, são como pão para a boca de quem pensa que o bem e o mal se decidem nas notícias da noite e na pauta moral das telenovelas. Afinal, o que interessa mesmo é um pouco de espectáculo.

Que a vida te seja muito mais leve que isto, Mercedes.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Um minuto de snobismo


Não falo de política, falo do tipo que, num jantar em casa de amigos, calha ao nosso lado na mesa. Preferiria Obama a MaCain. Tenho uma lista grande de razões, mas dedico-me apenas a uma: MaCain faz 'aspas fictícias' com os dedos de cada vez que diz coisas como: Obama wants to 'spread the wealth'. Não me interessa, neste momento, o que ele diz, mas os seus dedos brancos e pequenos no ar, uma e outra vez, as aspas imaginárias a aparecerem como um caniche que morde um sofá numa sala de estar com um barzinho ao canto, qualquer coisa desnecessária, dramatismo de adolescente hiper activa, o ruído metálico da rádio quando não encontramos uma frequência. Sempre que dou por mim a fazer essas aspas de dedos, peço desculpa, vou à casa de banho, e espeto-me um chapadão. São apenas dedos, eu sei, uma bengala de linguagem, um tique sem importância. Mas irritam-me (pardon my cute lame french) p'ra caralho.

Febre de sexta à tarde


O João Tordo escreveu um dos melhores livros em língua portuguesa que li nos últimos tempos. Chama-se 'As Três Vidas'. Sou muito amigo do João e não farei mais apreciações porque seria suspeito e porque, como diria Ari Gold, 'Let's not star going down on each other right now'. Mas posso dizer que o livro do João me deu vontade de escrever - e isso, como ele sabe, vale muito. Mais que uma boa crítica os livros sobrevivem e espalham-se através do passa palavra. Por isso, o João convidou-me, juntamente com o Tiago R. Santos (alguém que consegue ter um ofício tão em risco de extinção como o de escritor: argumentista), para falarmos do livro e muitas coisas mais. Para que não seja apenas uma palermice de conversa entre três amigos e gin tónicos, o João teve o bom gosto e a sensatez de convidar a Soraia Chaves. Será sexta-feira, dia 31 deste mês, às 18h30 na Fnac do Vasco da Gama. Pode até haver perguntas, cadeiras pelo ar e pessoas penduradas nos candeeiros. Tudo depende do vosso entusiasmo.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Teatro do absurdo


Este lado do vale ficou mais frio com o vento, um vento de recolher obrigatório, de susto - árvores prestes a rachar os braços, a matar alguém; um longo assobio que entra pela chaminé; folhas, jornais e pássaros que se despistam nos vidros da casa, loucos e suicidas, sonoros como um pé de cabra numa fechadura. Sozinho nesta casa de grandes janelas, não ouço sequer a rouquidão de uma motorizada ao longe, as palmas aflitas de uma empregada de uniforme a chamar os miúdos para dentro, o fôlego das velhas prestes a cair nos passeios, segurando sacos de compras que lhes dão caneladas. Hoje, com este tempo de luz e vento, tudo parece mais prestes a terminar. Estamos no limite de um desastre ou de um homicídio.

Depois, entrei numa charcutaria e ouvi um casal, com sotaque fortemente açoriano, dizer para a empregada: 'Pode guardar-me esse pedaço de torresmo para amanhã? É que é tão molinho". A empregada disse que sim, e a cliente açoriana, de colete de peles, fez sorrir todo o resplendor do seu baton vermelho, antecipando o molinho que são os torremos na sua dentadura postiça e tão impecável como um piano Steinway.

Se o meu dia tivesse um título: Hitchcock e a matança do porco.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Fé nos homens (e nas mulheres)


Querida senhora da pastelaria,

Responda ao meu bom dia, a minha simpatia não é o mesmo que apalpar-lhe o rabo, não lhe pedi o telefone mesmo sabendo da sua aliança no dedo, não lhe tapei a saída da garagem com o meu carro, não sou o vizinho que ouve Celine Dion ao amanhecer. Por que está tão zangada comigo, querida senhora, e zangada com os prédios lá fora, com as crianças que vão para a escola, com a mulher que tem menos rugas e mais peito? Por que está zangada com o movimento de rotação do planeta e com o criador do universo?

Todos os dias eu digo 'bom dia' e 'dois queijinhos frescos' com um tom educado, tão amigável e redondo que, por vezes, julgo-me o apresentador de um programa de rádio que oferece dinheiro e fins-de-semana na Madeira.

Mesmo de ressaca, nunca deixei que as dores de cabeça me impedissem sorrisos e a dicção perfeita - 'dois quejinhos frescos e uma água com gás'. Não passei para trás do balcão para lhe ver as mamas, não suguei três bagaços de seguida nem atirei papéis para o chão nem palitei os dentes. Eu sou bonzinho, e venho em paz.

Todos os dias, ao dizer-lhe bom dia e ao receber a sua cara de 'E se fosses comer lâminas de barbear', eu penso nesse teste, feito por cientistas, que explica como os músculos da nossa cara, durante uma conversa, se sincronizam com os movimentos das feições do nosso interlocutor - uma espécie de dança, de mano-a-mano. O teste mostrou que se fecharmos duas pessoas numa sala, e as pusermos frente-a-frente, sem falar, olhando-se apenas, passados alguns minutos a pessoa com a personalidade menos saliente adoptará o estado de ânimo da pessoa com a personalidade mais imponente.

Querida senhora, já me disseram que tenho um feitio difícil - gente que não me conhece, claro - e que tenho uma 'personalidade vincada' (como um papelinho de voto dobrado oito vezes). Por isso, se nos tivermos de sentar numa sala, frente-a-frente, aposto que os seus músculos faciais irão dançar ao ritmo dos meus, e me vai dizer, por fim, bom dia, e sorrir, e perceber que não fui eu que inventei a escravatura nem os transportes públicos da área metropolitana de Lisboa. Se nos encontrarmos nessa sala, farei tudo para não perder. Um dia destes, querida senhora da pastelaria, vai dizer-me bom dia e sorrir-me e, mostrando até algum interesse, perguntar-me: 'Porquê dois queijinhos frescos?'

sábado, 25 de outubro de 2008

Peixe Frito com Arroz de Tomate


Quando Cavaco Silva ganhou a sua primeira maioria absoluta, lembro-me de estar numa varanda, no Algarve, e os adultos caminhavam entre a sala e a cozinha, sempre atentos aos resultados da eleições - a minha família não era nada politizada, mas acreditava naquele homem, que para eles era um professor disciplinado que tinha a postura de quem desprezava a política partidária, e que representava uma novidade segura depois dos primeiros anos confusos de democracia. (Em Portugal a política é tão mal vista, que alguns políticos afirmam não ter interesse na política, a fim de parecerem mais credíveis, chegando a mostrar certa repugnância, como a senhora que afasta o prato caracóis com as costas da mão). Do meu passado político, lembro-me ainda da avó de um amigo que votou sempre em Cavaco, justificando assim a sua motivação: "É elegante e magro".

Na varanda, nessa noite de vitória do PSD, vi como depois de anunciados os resultados os carros passavam na estrada, formando um trânsito de celebração, buzinas, bandeiras, altifalantes, tampas de panelas a servirem de música, a certeza, nos gritos daquelas pessoas, de que estavam a participar em algo especial. Essa noite, sem idade para pensar pela própria cabeça, vivi o meu derradeiro entusiasmo com a política portuguesa. A festa lá fora era um excelente pretexto para ficar acordado até tarde, espiando as pessoas da varanda, deitado num pequeno colchão: 'Avó, hoje posso dormir aqui fora por causa do calor?'

Esta semana, houve eleições no Açores, e o orçamento de Estado, e Santana escolhido para candidato à câmara de Lisboa. Nada, não senti nenhuma comichão, nem sorri, nem me pus feroz num debate à mesa de jantar. Não quis dormir na varanda por causa do calor. Não consigo excitar-me com os políticos nacionais. Mas recuso-me a pensar que se trata de uma questão de idade, afinal, também já não tenho a rádio no quarto ligada, nem salto em cima da cama com um edredon de robots, sempre que o Benfica marca um golo. Mas não, não pode ser da idade. Em Madrid acompanhei de muito perto (enquanto jornalista e habitante da cidade) as eleições autárquicas da capital espanhola. Quando John Kerry perdeu, há quatro anos, fiz uma madrugada eleitoral na sala dos meus pais. Nunca discuti tanto política como nas semanas que antecederam a segunda eleição de Zapatero. Sei mais dos candidatos Obama e MaCain, do que conheço de José Sócrates ou de Ferreira Leite. Politicamente, sou um traidor ao país, um consecutivo votante em branco, um não frequentador das palestras televisivas do omnipresente e omnisciente Marcelo Rebelo de Sousa - só talvez Hugo Chávez para ultrapassar o professor em número de horas na televisão pública. Marcelo fala e, porque é professor, tal como Cavaco, os portugueses repetem o que disse no dia seguinte, ao lado da máquina de café. Tanto respeitinho. Tanto senhor doutor. Tanto gosto pela autoridade.

Para mim, a política nacional parece uma versão mais grisalha e engravatada da política das associações académicas - incompetente, provinciana, oportunista, vaidosa, desinteressante, de palmadinha nas costas, impune. Bem, ao menos não há tunas nem tipos aos saltos a tocar pandeireta.

Nesta semana de orçamento de Estado, ainda mais importante em tempos de crise, senti que não se tinha passado nada. Mesmo uma ausência e um silêncio - de Barak Obama, que suspendeu a campanha para ir visitar a avó doente -, causaram em mim mais interesse que o futuro económico de acordo com as contas do governo. Começo a achar que não sou o único português adormecido pela política nacional. Não nos interessamos. E se querem números lembrem-se da participação no último referendo do aborto. É uma amostra pessoal, mas posso dizer que, mesmo aqui ao lado (e nem falemos do norte da Europa), os espanhóis são muito mais politizados que nós; em Portugal, raramente oiço uma mulher envolver-se numa discussão política entre amigos; em Espanha as mulheres são tão aguerridas, e informadas, na defesa das suas opiniões políticas como os homens - algumas delas, se bem me lembro, muito mais que os homens. E mesmo que digam que a escolha de Zapatero, em ter mais mulheres no governo do que homens, seja uma manobra de propaganda, acredito que significará algo mais que eleitoralismo de pacotilha.

A nossa falta de exigência traduz-se, por exemplo, nisto: pessoas que relativizam o comportamento ordinário de Alberto João Jardim, ou as suas tiradas autoritárias, dizendo: 'Mas a Madeira está muito desenvolvida. Há obra feita'. Muitos de nós parecemos satisfeitos com um político mal formado, que nos tira liberdades, que não aceita que haja gente com ideias diferentes das suas, porque esse político tem 'obra feita'. Talvez eu seja muito exigente, e sei que a procura da excelência é perigosa, mas será pedir de mais um político bem educado, com bom coração, que não trate os outros como se fossem atrasados mentais (caro senhor Valentim Loureiro); e que faça o seu trabalho sem precisar de ser uma besta, ou adepto do nepotismo, ou que use os trabalhadores da câmara para fazer as obras em casa? Será pedir de mais uma boa pessoa e um político competente aliados num mesmo indivíduo?

Gandi nunca mandou construir auto-estradas, nem avenidas principais com lombas, nem teleféricos. Era bonzinho, uma jóia de pessoa, dizem, incapaz de fazer uma rotunda desnecessária, de construir na primeira linha da praia e, ainda assim, há quem acredite que, mesmo sem 'obra feita', era um bom político.

Em tempos disseram-me, sobre nós, os portugueses, que havia que corrigir o aforismo moderno, 'Temos os políticos que merecemos', por este ,'Merecíamos político piores'. Portugal, tantos anos mirrado por uma ditadura que tomava conta do seu povo que queria 'estúpido', não é, ainda hoje, um campeão no sentido de comunidade, de vizinhança, de dever público. Por cada seis pessoas que pagam impostos há uma que foge. Portugal: o caso de um país pobre mas com tiques, tantos tiques, de novo rico. Portugal: país da celebração da 'obra feita', que em breve terá o maior centro comercial da Europa. (Pensei que, se queremos subir nas estatísticas da educação entre os países da União Europeia, talvez devêssemos construir a maior escola da Europa, porque pela qualidade não chegamos lá acima.


Pergunto: nós não nos interessamos porque os políticos são maus, ou os políticos são maus porque nós não nos interessamos o suficiente? Portugal: uma pescadinha de rabo na boca.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Let's look at the trailer


Este é o início de um texto para o jornal da discoteca Lux. Depois de sair em papel, teremos aqui a versão completa deste perfil. Mas até lá procurem o jornal uma destas noites. Ou já de madrugada.

The Connecter & O Monstro

Perfil de um bom diabo, de um humanista, de um instigador de festas e de um romântico. Estas são algumas das histórias reais protagonizadas por este homem viajante e animador de pessoas – sim, é preciso sublinhar que são histórias reais, porque Holden Sawyer podia ser uma personagem de ficção. Mas existe.

Por Hugo Gonçalves

Todos nós conhecemos, ou pelo menos deveríamos conhecer, alguém assim: Holden Sawyer tinha pouco menos de trinta anos quando, numa noite de semana, na cidade de Madrid, saiu da sala do Hotel Palace onde participava num jantar institucional e, mesmo antes de abandonar o luxuoso edifício e regressar a casa, passou pela porta de um salão de festas. O seu instinto pôs-se em alerta – reconheceu essa ansiedade das conversas sobrepostas, a agitação de copos, a música a inquietar um pé, depois as ancas, mais tarde o corpo inteiro em cima de uma mesa. Holden entrou sozinho, sem conhecer ninguém. Passou-se pouco tempo e Holden dançava no centro da pista, apresentava-se e era apresentado, acabara de se tornar no gerador de alegria da festa organizada para os deputados e jornalistas do Congresso espanhol. Nessa noite de 2007, ainda que tivesse casa própria em Madrid, Holden dormiu no apartamento de uma repórter especializada em política parlamentar.

Holden Swayer – nome que, por motivos de discrição, lhe atribui para este perfil – nasceu em Portugal, estudou em Lisboa e em Estocolmo, trabalhou em São Paulo e em Madrid. Muitos dos leitores talvez o conheçam e tenham estado com ele na mesma mesa de jantar, na mesma fila para conseguir um gin tónico. Os seus amigos consideram-no um condutor rápido, seguro, inalcançável nas corridas de karts. Na estrada, diz-se, Holden tem os potenciais atributos de um piloto de Fórmula 1, descritos por um psicólogo inglês como ‘a capacidade para jogar xadrez ao mesmo tempo que se foge de um tigre’. Entre outras alcunhas, Holden foi chamado de Tetris pela forma como, sentado num bar ou restaurante, organiza geometricamente todos os objectos em cima da mesa – tabaco, telemóveis, cinzeiros, carteiras. Descobri essa sua inclinação para o equilíbrio das coisas quando entrei no seu quarto em Madrid – os chapéus alinhados, as camisas dobradas em pilhas com o mesmo tamanho, a colcha da cama bem entalada no colchão, o boneco de um gato, sentado, comprado nos chineses, a balançar uma pata como se fosse o ponteiro de um relógio. Julgo que a ordem doméstica de Holden tem a mesma função das bandas sonoras na berma da auto-estrada – para nos manter no caminho.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

First Blood


Hoje acordei mais cedo do que queria - com uma dor perfurante num músculo do pescoço e, lá fora, o que me parecia ser o ruminar eléctrico de uma moto-serra gigante, talvez um berbequim para chegar ao centro da terra, algo que me despertou muito antes do tempo.

Durante os últimos anos sou perseguido por obras estridentes e perturbadoras do sono. Em tempos, na rua 97 com a Park, começaram a construir um prédio ao lado do meu - doze meses de tortura auditiva e mini terramotos a chocalhar o quarto. Na Travessa do Abarracamento de Peniche, havia uma garagem onde o dono lavava os carros com uma mangueira ligada a uma máquina que abanava o pequeno edifício. Na Calle Espíritu Santo, o vizinho da frente renovou a casa a pancadas de martelo, e a vizinha do lado foi de férias mas deixou o despertador programado para as sete da manhã - um daqueles alarmes que parecem uma corneta desafinada. Todos os dias acordava em sobressalto. Na minha adolescência, tive um despertador assim, que acabou na parede porque temi acordar um dia apenas para abrir os olhos e sofrer um ataque de coração.

Uma noite de mau sono deixa-me inclinado para a violência. Nada mais frustrante que querer dormir e não poder, ou acordar e não conseguir (por causa de forças externas) voltar ao sono, como quando passamos férias com amigos e há sempre uns madrugadores (ou os que chegam a casa de manhã) que se põem a conversar na cozinha e a produzir barulhos de loiça na bancada.

Não percebo porque só há massacres a tiro de espingarda nas escolas. Se nas notícias descobrirem um tipo que entrou num prédio em construção e disparou contra homens de ferramentas ruidosas em punho, fiquem a saber que fui eu. Ontem, tinha pensado em escrever um texto sobre um tema optimista. Hoje, sem poder virar o pescoço, com dores, e com o sono por cumprir, estou preparado para ser bombista.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Pimenta na língua


Todos os escritores, diante de uma frase esplendorosa, ou pelo menos crua, no osso, uma frase que nos arranque do chão ou nos diga tudo o que precisamos de saber, todos os escritores, dizia eu, pensam: 'Por que não me lembrei eu disto?'

David Simons, ex-repórter de crime e brilhante criador das séries The Wire e Generation Kill, conta, numa conversa com Nick Hornby, como se comportam os escritores ao encontrar frases que gostavam de ter criado:

We had a murder case similar to the one he (Richard Price) was writing about and he wanted a tour, so that he could acquire more of the tone of the thing, I guess. So down he comes and we go around and research his case, meet the witnesses and the detectives and whatever. And because he’s Richard fucking Price and I’ve loved his ass ever since The Wanderers, I just gotta show my shit a little. I was researching and writing The Corner, the book, at the time. So we drive over to West Baltimore and I start to show him the hood where Ed and I are gathering our stuff. And at some point I run into Gary McCullough, one of my main characters. And Gary, who had just copped and was high as a kite, is talking with us and he laughs at something I say, and says, “Oh, man, you is an apple-scrapple.” Apple-scrapple being a particular Baltimore phrase in the African American idiom meaning, well, a special dessert or special treat. Gary says it and I see this look cross Price’s face and I think, for just a second, Oh, shit. Now he’s got apple-scrapple. I hope he doesn’t publish before I do or he’ll beat me to it. Sure enough, when Gary departs, Richard immediately turns to me and says, “Apple-scrapple. That’s a keeper.” Fucking writers.

Tudo isto para dizer que ontem, noite dentro, sozinho na cama, diante de outra série, Californication, fui capaz de uma gargalhada que parecia não ter fim, e depois senti inveja de quem escreveu isto:

'Fuck me like I'm al qaeda'.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

livro de fotos antigas


Este texto foi escrito há exactamente cinco anos, noutro lugar, noutra vida.

Cartografia íntima de uma ressaca

É como se fosses um profissional do álcool e as mãos tremessem pela manhã. No entanto, estavas ontem seguro, diante de um espelho, passando um polegar no queixo para melhorar o sorriso. Um dos teus amigos levantou-se quando passou uma modelo que se preparava para fumar uma cigarrilha:

“Helena Christiensen. Volto já.”

E enquanto observavas a ausência de roupa interior de uma mulher que não sabia cruzar as pernas, levantavas a mão para pedir outra bebida, e avisavas um amigo que lhe sobrava pó branco no arco de uma das narinas. Ele riu-se, passou a palma no nariz e entregou-te um maço de cigarros.

Andas assim toda a semana. Acordas e tomas banhos de imersão para depois aliviares as dores de cabeça com um saco de gelo. Dormes quase nada. Passas um produto debaixo dos olhos para esconder os semi-círculos escuros. Mas durante a noite continuas a ser o protagonista. As mulheres admiram-te a eloquência e a forma como as encostas à parede enquanto conversas. Os homens, os teus amigos, respeitam o teu poder, e parece que tocam chapéus invisíveis, levantando-os, para assinalar a tua chegada.

Ontem estavas sentado na tampa da retrete de uma casa de banho. Trancaste a porta. Tinhas um copo apertado nos dedos e pensavas se querias regressar. No outro lado havia música e pessoas que se acendiam e se apagavam. Afinal, tudo o que já conheces. Sentiste-te cansado.

E hoje acordaste depois do telefone tocar muitas vezes. Nunca atendeste. Estás na cama, incapaz de procurar comida apesar da fome. Encontras-te fraco e imaginas a cidade que visitaste, ainda este mês, mais a norte, onde experimentaste as manhãs e onde avançaste nos corredores de um supermercado com uma mulher a quem gostavas de fazer cócegas. Havia uma universidade, casas sem uma nódoa nas paredes, famílias nos jardins, e um silêncio que não conhecias há alguns anos. No caminho de regresso ao aeroporto, viste como as ruas estavam vazias porque as crianças estavam nas salas de aula e os pais trabalhavam, esperando ir buscá-las mais tarde, prontos para lhes dar banho e as sentar à mesa. A mulher a quem não fugiste na cama, deixando – nunca deixas – que enrolasse o corpo todo no teu corpo, tremeu os lábios mas não chorou. Quando lhe seguravas as mãos pensaste no que aconteceria se ficasses. Mas depois havia uma frase de um escritor – Chuck Palahniuk - que estava colada no céu da tua boca:

“Fuck me for saying this but I don’t want any peace until the day I die”


E como não tinhas a certeza, agarraste na mala e seguiste caminho, procurando o bilhete de avião no bolso do casaco.

Agora, que estás sozinho, na cama, e que o próprio corpo te magoa, percebes que existe outra vida além da cidade onde vives e que talvez consigas sair daqui para outro lugar. Um dia, a mulher que não chorou, talvez esteja à tua espera no aeroporto, para levar-te depois ao quarto tão branco e garantir-te que podes ficar, procurando espaço nos armários para a tua bagagem. Mas, por agora, escolhes uma nova lâmina de barbear e abres as portas do roupeiro, escorrendo uma mão nas camisas. Mais logo, o teu pescoço vai cheirar a perfume e quando entrares num táxi não te vais lembrar de nada disto. Até que voltes a acordar amanhã.

Less than zero


Ouvi em tempos um escritor dizer: 'Escrevo para que gostem de mim'. Eu já disse: 'Escrevo para não ter patrão' (e pelos vistos salário ). Outro escritor ainda (raistaparta esta gente da ficção) disse-me que deveria pôr o sitemeter no meu blog, a fim de contabilizar as visitas. Imaginei uma senhorita de saltos e cigarro de boquilha, um sinal por cima do lábio e a cor de baton usada em ambientes de fumo e de má frequência. A senhorita tinha na mão uma dessas máquinas para contar pessoas, como usam agora os porteiros das discotecas. Imagino-a ainda a olhar de alto a baixo os leitores e leitoras que esperam entrar nos meus textos, por vezes cruel, outras deitando a língua de fora ou aproximando-se demasiado.

Mas não há senhorita - o sitemeter aparece-me em relatórios semanais, mas nunca de espartilho ou assobiando o 'Lili Marlene'. E diz-me que tenho zero visitas. Muitos zeros em colunas verticais e horizontais. Por enquanto, estou descansado, ainda não escrevo para que o sitemeter goste de mim.

L

domingo, 19 de outubro de 2008

Original Sound Track



Nota: este texto deve ser lido com a banda sonora acima indicada.

Mil e quinhentos quilómetros, ir num dia a Madrid e regressar no seguinte, uma espécie de missão de recuperação da minha vida em objectos, guardada em casa de três amigos: caixas, malas, um globo terrestre que ficou esmagado - tudo na parte de trás de uma carrinha alugada.

Conduzi sozinho, redescobrindo que é o trânsito da cidade que me torna numa pessoa pior. Há uns dias, chamei 'Velho ordinário' a um condutor que escrevia mensagens no telemóvel ao mesmo tempo que mudava de faixa.

Mas, na auto-estrada, na extensão desses mil quilómetros, tinha a paisagem lisa e morna da Península, estações de serviço espanholas onde suspeitamos que todos são loucos, ou que uma tragédia ou uma festa ou uma intoxicação alimentar podem começar a qualquer momento; durante horas, sozinho, pude pensar sem suspender a viagem por causa de um telemóvel, um email, uma desculpa para ir fumar um cigarro.

Gosto de auto-estradas como gosto de aeroportos - a electricidade do movimento, a mesma ansiedade feliz de quando acordamos de manhã e sabemos que já temos as malas feitas e os bilhetes dentro do passaporte. Nesses dias, o pequeno almoço sabe muito melhor.

Ir a Madrid e voltar pode não ser uma viagem de aventuras. Mas é, pelo menos, sair do mesmo lugar; é sacudir o pó da roupa e estar mais alerta, mais atento a tudo o que ainda não conhecemos. O autor Pío Baroja, escreveu: 'O nacionalismo cura-se viajando'. E viajando cura-se também a monotonia de pensar e de sentir sempre da mesma maneira. Mas por vezes é apenas isto: estar em movimento, uma planície amarela com três linhas de fumo a subir ao céu, o rasto branco de um avião a emergir de uma nuvem, nenhum carro na estrada, e a música suficientemente alta para pensarmos que vamos a algum lado importante.


Ps - um 'guardia civil ordinário' multou-me por não acender os faróis quando entrei num túnel (105 euros); tem razão, incumpri e devo pagar. Mas o guardia civil, de bigode branco e uma mancha amarela ao centro, fumava e conversava com o colega enquanto se debatia com o formulário da multa. Fui informado (já o sabia) que tinha de pagar na hora ou o veículo ficaria apreendido. E foi então que a vulgaridade passou a estranheza mafiosa. Fui guiado pelas duas motos até uma rançosa estação de serviço, onde os Cds de artistas de feira escorrem azeite e há sempre uma televisão autoritária na sua estupidez. Diz-me o senhor agente: "Veja lá se essa caixa tem dinheiro, se não temos de ir a outra'. Estou diante da máquina e lembro-me de um amigo brasileiro a quem a polícia, na noite do Rio de Janeiro, fez o mesmo, embora sem a base legal espanhola, que obriga os condutores estrangeiros a pagar na hora. Digo-lhe, como se estivesse a comprar heroína num bairro de barracas: 'Tem troco de dez?'. 'Não'. 'Então vou trocar'. Note-se que ter pago na hora ( embora não tivesse outra possibilidade) me deu 'direito' a um desconto (o valor inicial era de 150). Pensei beijar a mão do Padrinho de bigode branco e agradecer a sua magnificência.

Há uma diferença entre o cumprimento das normas de tráfico (com as quais concordo) e a suspeita de que, em vez de se preocupararem com a segurança rodoviária dos outros humanos, os homens de farda têm a mesma prioridade de um wise guy com um taco de basebol em punho - chama-se dinheiro, ou extorsão mafiosa. Muchas gracias, capullo.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Road Trip


Vou ali e já venho.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

crise é isto


Diz a senhora, entrevistada na rua, com a voz grave das velhas que franzem os olhos para ver melhor por trás dos óculos: 'Ah, à noite a única coisita que a gente ainda tem é uma mantita e a televisão'.

Back to the Future


Jantar com este senhor resulta em ressaca. De que falam dois escritores, em redor dos 30, que foram contemporâneos na mesma cidade estrangeira, e que passaram por ali com a intensidade de um corredor de automóveis que jamais pensa na revisão do carro? O que fazem, estes rapazes, numa cozinha enquanto o ecrã do computador mostra um espectáculo de stand up de Bill Maher? Estes rapazes fumam cigarros e ponderam se o bacalhau, no forno, demora muito a assar; entram a meio da conversa porque não precisam de tirar o chapéu e apertar a mão com uma pequena vénia. Contam histórias reais, tantas histórias, relatos que nem sequer precisam de verniz literário, têm a vida toda lá dentro - festas em restaurantes italianos no SoHo com as portas fechadas e livre acesso ao bar, mexicanos que chegaram aos Estados Unidos com buracos na carne dos pés que atravessaram o deserto; irlandeses (suspeitos de assaltos a bancos)com mau vinho e apetência para capotar carros; professoras de História de Arte que, aos 17 anos, chegaram ao baile do liceu de helicóptero e se estrearam na cocaína ('Sabes que ela se casou com um professor e acabou de ter um filho'. 'Uma professora casar com um professor. Original').

O João foi também meu colega de trabalho. Durante o serviço - cortar pão, limpar os menus, trazer as cervejas para cima - escrevíamos notas para romances em guardanapos, dançávamos entre mesas, não tínhamos mãos para tantos pratos, transpirávamos como atletas de triatlo, aborreciamo-nos no bar, com a sala vazia, esperando que algo improvável aparecesse na rua - e muitas vezes aparecia. Tirávamos sacos de lixo de uma cave, como última tarefa do turno de trabalho, num passeio com tráfico de mulheres bonitas. Riamo-nos de nós próprios e das nódoas na roupa. Depois, com o dinheiro das gorjetas nos bolsos das calças, íamos beber cervejas Rolling Rock e fumar erva para a porta do segundo bar mais antigo da cidade, trocando disparates com gente desconhecida e miúdas enigmáticas (ou apenas alteradas). Um bar junto ao rio, onde o chefe de cozinha, chinês, jogava xadrês com actores conhecidos e os empregados dos bares do bairro se juntavam para começar a festa.

Ontem, já sem o bacalhau pela frente, falámos cinco minutos de livros, nenhum de literatura.

Sabemos agora que somos muito mais adultos do que alguma vez imaginávamos ser, e muito mais infantis do que aquilo que esperam de nós. Continuamos a escrever porque nos faz bem. 'Para escrever é preciso mundo', diz ele. 'Um dos russo, não sei qual deles, dizia que tudo o que um bom escritor precisa é de ver uma luta de rua, a partir daí começa o seu trabalho de ficção', disse eu. Tantas das histórias contadas ontem seriam possível material de romances. Mas a vida e a escrita não são a mesma coisa. Hoje, lembrei-me de uma frase que li num livro de Stephen King emprestado pelo João, há uns dois anos: 'Ponha a secretária no canto e, sempre que se sentar para escrever, lembre-se porque motivo ela não está no meio da sala. A vida não é um sistema de suporte da arte. É o contrário'.

Sobre as histórias de Nova Iorque, de Lisboa, do Carvoeiro, de Madrid, da Travessa do Abarracamento de Peniche, o João disse, sem a mão na testa da nostalgia, mas com certeza: 'Essas histórias estão lá a atrás, esse tempo já não se repete'. Respondo: 'Mas há muito mais histórias para criar.' Não foi sequer preciso dizer-lhe que não me referia à literatura. Mas à vida cá fora. Sexta-Feira começamos.

Jardim Infantil


Os rapazes são rapazes até quando? Buñuel, aos 70 anos, ainda se queixava do 'tirano' - o seu ditador era o sexo, a forma como era controlado pela ferocidade da carne sempre que encontrava uma mulher que, não sendo necessariamente bonita, seria pelo menos sexual.

Nas minhas fotografias de infância encontrei recentemente fotos em que estou vestido de Super Homem e de Capitão América - nunca percebi por que razão o Super Homem usa roupa interior vermelha por cima das calças que, por acaso, são elásticas e azul bebé. Deixei de me mascarar.

No livro de Ann Beattie, The Burning House, um casal em ponto de separação, enfrenta-se. Começa ela.

'Quero saber se ficas ou vais.'
Ele respira fundo, liberta o ar, continua a mentir, muito quieto.
'Tudo o que fizeste é louvável,' diz ele. 'Fizeste bem em voltar a estudar. Tentaste fazer o que estava certo ao encontrar uma amiga normal, como a Marilyn. Mas durante toda a vida cometeste um erro: rodeaste-te de homens. Deixa-me dizer-te uma coisa. Todos os homens – se são malucos, como o Tucker, se são tão maricas como uma bicha louca, ou como aquela raposa das histórias da Reddy Fox, mesmo os que só têm seis anos de idade – vou-te dizer uma coisa sobre eles. Os homens pensam que são o Homem Aranha, e o Buck Rogers, e o Super Homem. Sabes o que todos os homens sentem cá dentro, e que vocês não são capazes de sentir? Que vamos chegar às estrelas.”
Ele agarra-lhe na mão. 'Estou a olhar para tudo isto do espaço,' murmura ele. 'Já não estou cá.'

Noutro livro, The Thing About Life is That One Day You'll Be Dead, o autor, David Shields, fala do pai, que tem 95 anos, e de um amigo do pai, ambos homens que se esforçam para prolongar os efeitos gloriosos da testosterona, homens dispostos a arregaçar as mangas, e a fechar os punhos, para resolver uma discussão de bar; homens que, estando já na fila para a bilheteira do cemitério de elefantes, querem os seus fatos de super herói e a certeza que fornicar os faz invencíveis e imortais. Diz um deles: 'Remember the four F's: find'em, feel'em, fuck'em and forget'em.'

Não me lembro de nenhum herói, de Aquiles ao Wolverine, que tenha sido feliz para sempre. E, sobre os homens normais, os que aspiram a ver o mundo desmoronar-se desde as estrelas, sempre intocáveis, com desejos de impunidade eterna e erecções perpétuas, continuo a perguntar quem ganha a guerra - se a fornicação, se o amor.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Sugestão bourgeois mas muito útil


Não tente cortar, como eu, o seu próprio cabelo.

Sobre Pastelarias



Sempre acreditei que, se em algum momento, sou muito português, será sempre diante de uma vitrina com miniaturas de bolas de Berlim. Não falo de gula, não se trata apenas de hidratos de carbono e creme, mas de um estado de espírito, de um lugar de culto. Se as pastelarias estão na lista de elementos que afirmam a nossa identidade nacional, posso garantir que esta tarde me senti português.

Durante anos, além fronteiras, confirmei que não sofria da nostalgia do pastel de nata. Sempre que aterrava de férias em Lisboa, as pessoas perguntavam-me se havia bacalhau em Manhattan - da mesma maneira que os repórteres que entrevistam as estrelas de cinema lhes perguntam o que sabem eles sobre Portugal. Em Nova Iorque, temia pela actividade ilegal da mãe da minha companheira de casa, que viajava com uma mala de roupa, e outra de comida portuguesa, sempre que nos visitava - lembro-me de latas de conserva de polvo nos armários da minha cozinha. Em território norte-americano, não se pode entrar com comida, mas o tráfico lusitano de bacalhau e aguardente obrigou os agentes da alfândega a saber palavras em português como 'chouriço' e 'couve'.

No entanto, ainda que recuse que a saudade se pode sentir através da fome, sempre que ia a Newark parava na Bakery Coutinho's e comia salgados, bolos e bebia leite com chocolate Ucal. Não se tratava de estar mais perto do meu país - Newark parece a experiência falhada do filme 'A mosca'; mete-se Gondomar, o Ceará e a blue collar fat tv couch middle America no mesmo teletransportador, e no outro lado sai Newark. O que eu tinha na Bakery Coutinho's não era Portugal, era o prazer físico da memória, algo sensorial, algum conforto com pouco trabalho, sem necessidade de luta, enfim, o mesmo prazer que retiramos da repetição de um episódio do CSI, já sabemos o que vai acontecer, como acaba a história.

Quando cheguei a Nova Iorque, uma ilustradora alemã tinha-me avisado: as palavras têm memória e cheiro. Laranja não é o mesmo que 'orange'. Com o tempo, as palavras em inglês passariam a ter gosto e sabor, mas folhado de salsicha, por exemplo, já tinha o seu significado no avesso do meu cérebro desde sempre - folhado de salsicha eram os pequenos almoços com os meus pais e irmãos antes do colégio, eram o princípio da manhã, após uma noite a whisky marado, com amigos, na mesa da pastelaria 'Girassol', atribuindo às efemérides da noite uma importância que sabíamos que não tinham. Folhado de salsicha é felicidade retroactiva.

Em Madrid, desesperei com a cultura de pequenos almoços em bar, o 'toma lá a tortilha e o café com leite, coño'. Tantos fins de semana praguejei contra cañas e vermutes e pimientos padrón, porque às duas da tarde eu ainda queria um pastel de massa tenra e um bom bocado. Todas as pastelarias, pela sua polivalência, deveriam estar abertas 24 horas.

Hoje lanchei, como lancham as crianças. Numa pastelaria. E percebi melhor o que me faz ir lá para dentro, o que me impele a, sempre que chego a Portugal, comer bolos e salgados.

Na pastelaria, esta tarde, admirei a forma como as pessoas flutuavam, mas não era leveza, era indiferença, esse torpor de quem está no comboio e sabe que mais tarde ou mais cedo chegará ao destino, uma apatia 'tá-se bem', como quem fumou demasiadas ganzas ou se encheu ao almoço, conseguindo, sem esforço, a imobilidade dos animais de sangue frio. Nas mesas estavam dois funcionários da farmácia, vestidos de branco; duas colegas de liceu; uma mãe, e uma filha, tão iguais, as mesmas ancas, os mesmos braços cruzados como quem arruma a vida entre a sala de estar e o consultório do médico de família. Mulheres com cinta por baixo da saia, apertadas, inchadas embora sem ter para onde explodir. O homem ao lado, o pai, não as ouvia, conhecia todos aqueles diálogos, estava no seu território da leitura das páginas da segunda liga de futebol, terceira jornada.

Olhei para o empregado, com a cara de ter duzentos anos de pastelaria, a mesma camisa de manga curta, as mesmas calças pretas. Olhei para a empregada, com Katya tatuado no antebraço e a certeza de um namorado que tem uma motorizada e fez parte do público de um concurso de televisão. No final da tarde, quando tudo se desacelera, a câmara lenta imobiliza-se de vez. Continuo sem uma certeza absoluta sobre o que significa a minha urgência por pastelarias, a não ser uma necessidade de açúcar e de regresso ao passado - um passado de onde saí há muito tempo.

Português Suave ou As Coisas Que Uma Pessoa Tem a Sorte de Ouvir


"Sim, sou um gajo básico, só penso em pipis carecas."

domingo, 12 de outubro de 2008

Viver todos os dias não cansa


Comi um cornetto de morango. Bebi. Fumei. No jardim, de noite, sem mais ninguém, olhei paras as luzes amarelas dos candeeiros públicos e, talvez porque o meu corpo cedeu ao encanto da maresia e do silêncio, decidi que ia ser uma pessoa melhor. Não foi preciso muito tempo para dar-me conta de quantas vezes já tinha tomado essa decisão.

It’s all fun and games until someone gets hurt



Manuel apareceu este domingo depois dos jornais ao pequeno-almoço, depois do passeio junto ao mar, e do encontro casual com casais amigos, bonitos, com filhos em triciclos escandinavos. Manuel chegou depois de uma sessão da tarde com o mais recente filme dos Coen, no qual o povo estúpido se fode (Brad Pitt), a autoridade incompetente se safa (CIA), o homem infiel não passa de um menino da mamã que precisa de colo (George Clooney), e a paranóia nos torna ainda mais vulneráveis (todos eles, todos nós).
Manuel chegou quando entrei no táxi e percebi o seu sotaque incomum. Manuel é argentino. Mudou-se para Lisboa depois da gerra das Malvinas, em 1982. Tinha-se metido nos sindicatos, nos partidos que faziam peito a uma ditadura que lançava pessoas pela porta de aviões. Manuel, o insurgente, líder do sindicato, que começou a construir metralhadoras e, numa operação stop, foi identificado pela políca – se fosse o exército não estaria a conduzir táxis no Estoril. Esteve preso com o irmão de Ernesto Che Guevara. Conseguiu asilo na embaixada portuguesa – tinha familiares portugueses – e mudou-se para cá. Dois anos depois conseguiu tirar o filho da Argentina, porque a mulher já tinha sido assassinada pelos militares. Manuel disse-me: “Estagnei, parei”.
Por vezes, nessa enciclopédia dos horrores que os humanos legam a outros humanos, confundo siglas, países, governos – CIA, Castro, Kissinger, Pinoché, Mugabe, junta militar argentina etc, e etc, e mais etc. Quem é quem e quem fez o quê?, parecem-me uma família em que todos usam o mesmo penteado e escolheram a mesma profissão.
Para que tudo possa ser mais claro, para perceber melhor o que se passa quando nos fuzliam o amor, nos expulsam de casa e nos obrigam a estaganar, a parar, a sofrer, pedi a Manuel o seu número de telefone, para que um destes domingos me conte toda a sua história frente-a-frente, sem que precise de procurar-me no retrovisor.

sábado, 11 de outubro de 2008

The evil one


No duche, pus-me a pensar sobre essa história do sherife norte-americano, fardado (ou seja, representando o Estado norte-americano), que participou numa acção de campanha de MacCain, e repetiu, uma e outra vez, o nome completo do adversário como quem, do alto das escadarias do templo, entrega o herético homem bomba para o apedrejamento: 'Barack Hussein Obama'. E enquanto eu tentava perceber se a ignorância anda sempre acompanhada da mesquinhez perigosa, dei-me conta que tinha posto gel de duche na cabeça e xampô no corpo. Durante os próximos dias não quero saber da campanha eleitoral.

Técnica da força contra a força da técnina


Manchete de primeira página do jornal Record, em dia de jogo da selecção, com Cristiano Ronaldo numa nota de 20 Euros:

'Ronaldo contra a crise'.

Pensei que, entre as páginas 6 e 11, como anunciado, houvesse alguma reportagem sobre a forma como os seus negócios, e venda de camisolas, estão a contribuir para sanar a demência suicida dos mercados financeiros, e o inevitável rabo entre as pernas da economia. Pensei que talvez Ronaldo nos desse conselhos sobre como poupar água (gel em vez de xampô), sugestões para transformar roupa velha em t-shirts apertadas, ou até nos contasse que faz car pooling com os seus companheiros de equipa.

Comprei o jornal.

Mas, nas páginas em questão, o mais parecido com uma solução para a crise foi a meia página dedicada ao bruxo de Barcelos, o Mestre Alves, que faz 'trabalhos' a favor da selecção, e que afirma que enquanto for vivo, Mourinho jamais ganhará um título - parece que o patriotismo linguístico do Mestre Alves, esse Afonso Henriques da pureza da sintaxe lusitana, se ofendeu quando Mourinho, em Milão, treinando o Internazionale de Milano, falando para jornalistas italianos, escolheu falar em italiano. Segundo Mestre Alves: 'Tem de pedir desculpa pelo que fez'.

Ronaldo contra a crise... Resta saber se é a vida que imita os jornais desportivos, ou se são os jornais desportivos que imitam a nossa vida.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Farinha Pensal com Cacau



Há coisas, lugares, livros, comidas, que não se podem revisitar. Ou mesmo pessoas - Sónia, querida, eu sei que estava apaixonado por ti aos 10 anos, e que as minhas definições genéticas me impeliam para o teu cabelo loiro e olhos azuis, e que esperava pelo dia em que, finalmente, jogássemos ao bate-pé. Mas vi-te há dois anos (tu não me viste) e, para ser sincero, já não me importo que gostasses mais do miúdo de olhos verdes que dava mortais da prancha mais alta da piscina.

O mesmo se passa com a Farinha Pensal com Cacau. Ou com Axl Rose. Ou com a religião católica. Mas ontem, no supermercado, revisitei o passado e uma pulsão infantil: Farinha Pensal com Cacau, que me fazia salivar, e aqui não estou a usar uma figura de estilo. Eu salivava. No entanto, se não fosse consumida em 3 minutos, a papa transformava-se em argamassa, ou, como defendia um dos meus irmãos, 'vomitado de gato'. Ontem, pensei comprar um pacote.

Axl Rose vai, por fim, lançar o seu álbum Chinese Democracy. No início do anos 90, estive no Estádio de Alvalade, esmagado entre temperaturas de banho turco, gajos a xutar heroína, e bocados de relva arremessados para o palco. Com 14 anos, eu gostava dos Guns N' Roses. E ir a esse concerto foi talvez um dos meus primeiros gestos de livre arbítrio que implicaram confronto com a autoridade(o meu pai). Deixaram-me ir. Escoltado pelo meu irmão mais velho.

Passei alguns anos num colégio católico. Nenhum trauma. Muita pancadaria, as melhores amizades, muitas formas de contornar a disciplina, e a certeza de que a liberdade e a afirmação pessoal me interessam muito mais do que a ordem colectiva da Igreja, o medo, o respeitinho, o receio de que, se nos masturbamos, Jesus se zanga e nos tira o direito a uma nuvem e uma harpa.

Parece agora que a minha família quer batizar um dos meus sobrinhos. Convidaram-me para padrinho. Para quê? Para um almoço e fotografias num álbum? Para que o menino esteja protegido do demónio? Que tal gastarem esse dinheiro em lições de inglês? Ou em legos? Ou em aulas de karaté? Qualquer coisa que lhe seja mais útil que essa espécie de cartão de membro do country club de Jesus, com direito a bar aberto de culpa, e um buffet de preconceitos bíblicos.

Em pequenos formatam-nos com programas que já foram recebidos da geração anterior. Querem que sejamos cópias das cópias. Sem questões, sem dúvidas. Batiza-se porque sim - mais uma convenção, é melhor assim, não vá acontecer alguma desgraça.

Por isso, ando a desprogramar-me há anos. E se o meu sobrinho corre o risco de algum tipo de formatação, que seja ao menos esse impulso condicionado da Farinha Pensal com Cacau. Ou a música rachada de um Axl agora gordo, de trancinhas, para sempre adiado nas suas ambições de fazer uma obra prima, mas que em tempos me punha aos pulos no sofá da sala quando gritava:

'And when you're high you never
Ever want to come down, so down, so down, so down, Yeah!

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

No country for old men



Porque neste início de tarde o verão ainda subsiste, e a minha perna aquece com a luz que chega da porta aberta, e há um mosca pilotando na atmosfera da sala - o som das suas asas por vezes razando a mobília, sobrevoando a minha cabeça, perdendo-se de imediato no corredor -, decidi que o dia seria passado em modo Western. E por isso mesmo, iniciei duas actividades obsoletas, andar pela rua e pôr uma carta nos Correios.

Não havia muita gente lá fora, apenas o mar ao fundo e, se passava na porta de um restaurante, a ansiedade dos talheres no prato do dia, as anedotas com bagaceira, o jingle que anuncia o noticiário da tarde. Pus-me observar (afinal, íamos na mesma direcção)um rapaz pós-adolescente com mandíbula de adulto. Tinha o corpo tonificado como quem acaba de sair do ginásio - o saco de desporto na mão direita, e a pulsão de olhar para cada montra ou janela de carro, um tique confiante, indiferente a possíveis detractores da vaidade.

O rapaz com queixo de homem, empurrava pela rua abaixo essa bazófia de quem reconhece que não pode ser derrotado, como quando se entra num campo de futebol para jogar sabendo que somos melhores que os outros (todos, incluindo os jogadores da própria equipa), ou quando foi a miúda que nos pediu o telefone, ou quando, após uma discussão familiar, sabíamos, com toda a certeza, que num mano-a-mano com o pai, ele ia ao chão.

O rapaz viu, como eu, as quatro mulheres de pele clara e cabelos ruivos, loiros, em chamas, que abriam as portas de um carro, e apareciam na rua, suficientemente agitadas (aquela garrafa de vinho ao almoço) para activar a biologia de alerta dos homens presentes. Eu e o rapaz: os únicos na rua além das miúdas, que pareciam dispostas a tirar a tarde para a matar cocktails e enrolar charros na piscina da casa de uma amiga.

O rapaz encheu ainda mais o músculos, o bícepe contraíu, o pescoço rodou, e nesse momento ele era indestrutível, impune, capaz correr mais que qualquer colega da turma, capaz de curvas com travão de mão, saltos de penhascos para a água, capaz de cometer um crime e, ainda assim, ter-nos como testemunhas abonatórias numa sala de tribunal.

Tolstoi disse: 'Li em algum lado que as crianças entre os doze e os catorze anos – ou seja, na transição da infância para a adolescência – estão particularmente inclinadas para pôr fogos e até matar. Olhando para os meus anos de rapaz, posso, com certeza, apreciar a possibilidade de ser cometido um crime assustador, sem objecto ou intenção de magoar, mas apenas porque sim – por curiosidade, ou para satisfazer uma inconsciente ansiedade por acção'.

O semáforo fechou, o rapaz atravessou a passadeira, e um carro queimou borracha - a ameaça de um atropelo. O rapaz ficou a olhar para a condutora, ainda inquebrável, desafiante. Mas foi do carro mais atrás na fila, que saiu a resposta: o homem ao volante, com óculos espelhados, procurou a minha compreensão, apontando com a cabeça para a condutora que quase provocara o acidente: "Não passa com o amarelo, esta gaja... Foda-se!

E, durante este tempo, as sedutoras raparigas de cabelo ruivo já tinham desaparecido. Sobrava o silêncio acentuado por algumas moscas, e três homens desconhecidos, olhando-se entre si, sem nada para dizer, a não ser, talvez, pedir um shot de whisky e, em seguida, regressar ao silêncio.

Literatura




Pela manhã. Dois adultos na pausa para o cigarro. Um deles diz:

- Os homens precisam de imaginação.

O amigo acrescenta:

- P'ra quê? Temos a pornografia.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

No Name Boys




Sarah Palin, num comício: "Estava a ler o New York Times".

E o público inicia uma vaia.

Viva a liberdade quando um jornal é vaiado.

Go Palin! (a mesma que, quando lhe perguntaram que jornais lia, respondeu assim: os que me metessem em cima da mesa.)

O follamos todos o la puta al rio




Escuto o meu amigo Quique a explicar, na Sic, a crise em Espanha. Sim, todos esses números temíveis, e imigrantes a regressar ao Equador, e os esqueletos dos prédios paradados por falta de dinheiro. Mas, acabei de sair de lá, após três anos em Madrid, e a crise naquela cidade não é uma crise de executivos a atirar papéis pelo ar, dessa histeria mariquinhas bolsista, do medo e da escuridão a impedir que todos saiam da cama. Em Madrid, com Quique como grande cronista de Espanha, companheiro e testemunha, percebi, tão claramente, que a melhor coisa a fazer com a tristeza é não passar muito tempo com ela. Não é leviandade. É fiesta.

I ♥ USA (ou pelo menos alguns estados da união)



Bush e os seus rapazes da administração, bem como os fanáticos da Fox News, passaram os últimos oito anos a dizer que os Estados Unidos corriam o perigo de deixar de ser o que são por causa dos terroristas. Um estilo de vida em risco de extinção. 'They want to take away our freedom', disse o senhor presidente. Mas mais que os rebeldes no Iraque, o ódio entre sunitas e xiitas, os erros militares na invasão, a arrogância (a farsa) de ser o mensageiro da democracia; muito mais que a comédia das bolsas, o roubo levado a cabo pelas grandes companhias, as mentiras da administração (onde estão as armas de destruição massiça?), o aquecimento global, o fim do petróleo, Sarah Palin (para quê descrevê-la), ou a assustadora, desenvergonhada, ocultista e manipuladora forma de governar um país; muito mais que tudo isto, o que ameaça os Estados Unidos são os próprios americanos, e a suspeita de que essa terra prometida, chamada América, pode ter iniciado a sua curva descendente. Tony Soprano dizia, em 1999, no primeiro episódio da série da HBO : 'É bom participar nalguma coisa que se construa desde o chão, e sei que nasci demasiado tarde para isso, mas ultimamente, sinto que cheguei no fim, que o melhor já acabou'.

E os Estados Unidos arriscam-se a ser apenas isto, um homem gordo, com a cabeça a prémio, com problemas em casa, em crise de meia idade precoce, que acha que acabou o tempo da magia americana.

Mas os Estados Unidos, como sabemos, são muito mais que isso. Não vale a pena fazer uma lista de escritores, cientistas, aventureiros, lutadores, homens com sentido de serviço público, mártires de boas causa, obras primas e gente que contribuiu para que sejamos todos um pouco melhores - sou melhor quando oiço Haitian Fight Song, sou melhor quando percebo o que fez Muhammad Ali.

Nestas eleições, os americanos podem muito bem estar a decidir entre um país amarrado pelo medo, de pacóvios, com espingardas na parte de trás da carrinha pick up, e miúdas que são violadas por familiares e têm de pagar os abortos (como acontece no estado governado pela senhora Palin); ou se quer continuar a sua história de evolução, ou seja, um país que não sirva para ilustrar o aforismo de Don Delillo: 'It occured to me that eating is the only form of professionalism most people ever attain'.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

The meaner you are, the more I like you



Não me restam dúvidas que se Shakespeare, Gil vicente ou Molière andassem por aqui, seriam escritores de séries televisivas como Six Feet Under, The Wire, Sopranos, Mad Men, Generation Kill, histórias que fazem hoje o relato das nossas atraentes insuficências e dos nossos repelentes triunfos, dos nossos bons pecados, do nosso passado, do nosso tempo, do que está contra o nosso tempo. São a melhor narrativa de costumes, a comédia e a tragédia, o horror e excelência desta espécie animal que ainda escreve, que ama, que fode (e que se fode a si mesma), e insiste, para nosso fascínio, em fazer beicinho ou em matar-se. Está tudo ali, nas séries. Melhor que terapia, religião, Belvedere com gelo. Isso e personagens que falam sem que pareçam atrasados mentais com uma expressão facial única. Isso e um pouco de romance.

princípios para fazer a barba




De três em três dias, antes que anoiteça, mas depois da hora da sesta. Sem pressa, sem poses no espelho, antes como quem tira um fato do armário e sabe que não vai voltar atrás na escolha. Sem hora fixa, sem pompa. Com água quente antes e gelada depois. Sem pequenos farrapos de papel higiénico presos no queixo por uma mancha de sangue. Com pulso seguro. Sem precisar de companhia. Por vezes com música, antecipando a festa do dia seguinte. Outras com o barulho da água, o ruído rápido da barba na lâmina, ou com alguém a dormir lá dentro. E talvez um dia partilhes a sorte dos protagonistas da literatura, essas personagens que têm epifanias diante do próprio reflexo, de lâmina na mão e cara no espelho, decidindo mudar de vida nesse instante do coração, descobrindo alguma coisa insondável - algo que talvez te deixe bom, ou pelo menos rico. Por agora, fazer a barba é só mesmo fazer a barba.

cordeiro de deus





Um filósofo inglês, com nome francês, uma calva ruiva e um programa de televisão, revisita Sócrates(no meu youtube), e fala sobre a necessidade de questionarmos, com mais frequência, por que razão estamos tão encaixados no rebanho, de cabeça baixa, e patas na alcatifa. "Se eles dizem que é por ali, é porque deve ser, pá, e eu vou onde vocês forem". A metáfora ovina é contemporânea de Sócrates e da paisagem campestre grega. Hoje, o rebanho segue o caminho da informação permanente, o grande ídolo do entretenimento, essa linha de montagem de coroas magnéticas e acessórios de primeira necessidade: despertador, canal tv notícias 24 horas, rádio no duche, auricular na rua, ipod no carro, windows xp, gmail, hotmail, sexymail, facebook, youporn, fotos de erasmus lésbicas, small world, sms, mms, televisão feita por si, directo da casa da senhora que foi assaltada por esticão, os meus preferidos, a minha música, wonderful world of waste, myspace, iutubí, já conheces este vídeo de um tipo a dançar em diferentes lugares do mundo, teve vários milhões de visitas – and so fucking what? O Terreiro do Paço incha e entope quando milhares de pessoas querem adorar esse símbolo de progresso, triunfo e espantosa prestação colectiva, chamada árvore de natal em ferro. Porque é grande e luminosa e maravilha os fiéis.

E eu aqui, com o Sócrates no ecrã do youtube, e com o Sócrates na estante da sala. Sem saber se tiro o capacete informativo da superficíe das coisas ou se me ponho a ler. Como dizia a personagem do Mamet: “Well it beats working”.

O meu país ou E agora, meu?



Todos sabem que ele é velho, e que vive onde a terra acaba e o mar começa, a olhar para a água como se o oceano fosse um acessório de palco para melhorar a fotografia. Deixou de usar coletes e chapéus há muitos anos, depois de trabalhar para um académico que tinha medo de andar de elevador e de avião – um homem mesquinho, um tirano de aldeia, um produtor de couves e de galinhas. O doutor que sabia de finanças e de repressão.

Parece que já se drogou e quase matou alguém na estrada depois de uma despedida de solteiro. Fala ao telemóvel enquanto muda de faixa. Gosta da legítima esposa. Tem medo de ficar sozinho em casa nas tardes de domingo. Tem filhos e netos que saíram para fora das fronteiras, e que por vezes telefonam nalguma data em que se deve telefonar, mas que comunicam como quem escreve um cartão de natal para o colega do escritório – uma mensagem curta, caligrafia certa, cortês, com os melhores cumprimentos.

Parece ainda que bebe demais ao jantar e que tem azia, que gosta de refeições longas, essas que dão tempo para que os silêncios sejam narrados por dedos a fazer padrões de migalhas. Tem uma média de dois filhos, de dois carros, de duas hipotecas, e ocasionalmente uma amante num parque de estacionamento. Duram pouco tempo as amantes. Gosta do Natal. Gosta de jogos de futebol com golos e com poucas faltas. Já gosta de mamas de silicone.

Compra roupa e artesanato no estrangeiro, e tem atenção nos títulos dos jornais e nas legendas das fotografias. Há pouco tempo para ler. Tem muitas televisões em casa, conhece as pessoas que aparecem no ecrã, visitantes com autorização para tirar os sapatos e abrir o frigorífico. Confunde-se com os comandos em cima da mesa da sala.

Benze-se se entra numa igreja, em visitas turísticas, mas prefere não falar no confessionário. É mais baixo do que julga, mais magro, com mais barriga, mais pobre e muito mais capaz do que aquilo que aprendeu na escola e em casa. Tem respeitinho aos pais, aos governantes, ao coronel do terceiro direito.

É muito mais sedutor do que supõe, como a miúda de liceu que fuma ganzas, e faz topless, e não tem medo de engordar. E tão insuportável como ela.

Tem um tique – encolhe os ombros. Tem uma pulsão – a preguiça. Por vezes, sente-se como aquele homem que escolheu estudar engenharia por causa do pai. Outras vezes, só quer é que tudo se foda. Escreve poesia às escondidas, adormece no sofá todas as noites, começou a aceitar, sem raiva, as filas trânsito.

Se lhe fazem a tal pergunta (em tempos chegou a telefonar para um programa nocturno de rádio), diz que sim, que é feliz. Porque os verões, ainda assim, continuam a ser longos e as casas já começam a ter aquecimento central para atravessar o inverno, e porque aqui não há guerras, nem fome, nem pestes, nem ódio. Diz, Aqui está-se bem. E só não balança porque ainda não comprou a cadeira de baloiço.

Está-se bem aqui, ao lado deste senhor de idade, este país velho e engenhoso, que tem em si todos os sonhos do mundo, de génios e não génios, e onde regresso agora desde o ar, com essa teia de antenas de tv a roçar a barriga do avião, os prédios a aproximarem-se, cheios de pessoas a pôr creme na cara, em jejum, a dizer, 'Tou, manda-me isso por mail, prédios cheios de criaturas a parar a colher dos cereais ensopados em leite diante do filho ou das notícias da manhã. Recomeçam os dias onde a terra acaba e o mar começa. Recomeçam as noites. É aqui que volto, para mais uma ficha, mais uma volta. Mais pancadas. Prego a fundo. Música, maestro que aqui vou eu.

the beautiful letters



Literatura psicadélica é encontrar a última mortalha, ver que tem escrito a ideia para um romance, e começar a enrolar.

Rock and Roll


Esta manhã o libertino do bairro, de beata nos dedos, cerveja no topo de um carro, e pente a deslizar pelos fios de cabelo, disse-me bom dia assim: "Rock and roll".

Respondi: Tens toda razão.

O momento de maior lucidez no meu dia.