segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Sobre Pastelarias



Sempre acreditei que, se em algum momento, sou muito português, será sempre diante de uma vitrina com miniaturas de bolas de Berlim. Não falo de gula, não se trata apenas de hidratos de carbono e creme, mas de um estado de espírito, de um lugar de culto. Se as pastelarias estão na lista de elementos que afirmam a nossa identidade nacional, posso garantir que esta tarde me senti português.

Durante anos, além fronteiras, confirmei que não sofria da nostalgia do pastel de nata. Sempre que aterrava de férias em Lisboa, as pessoas perguntavam-me se havia bacalhau em Manhattan - da mesma maneira que os repórteres que entrevistam as estrelas de cinema lhes perguntam o que sabem eles sobre Portugal. Em Nova Iorque, temia pela actividade ilegal da mãe da minha companheira de casa, que viajava com uma mala de roupa, e outra de comida portuguesa, sempre que nos visitava - lembro-me de latas de conserva de polvo nos armários da minha cozinha. Em território norte-americano, não se pode entrar com comida, mas o tráfico lusitano de bacalhau e aguardente obrigou os agentes da alfândega a saber palavras em português como 'chouriço' e 'couve'.

No entanto, ainda que recuse que a saudade se pode sentir através da fome, sempre que ia a Newark parava na Bakery Coutinho's e comia salgados, bolos e bebia leite com chocolate Ucal. Não se tratava de estar mais perto do meu país - Newark parece a experiência falhada do filme 'A mosca'; mete-se Gondomar, o Ceará e a blue collar fat tv couch middle America no mesmo teletransportador, e no outro lado sai Newark. O que eu tinha na Bakery Coutinho's não era Portugal, era o prazer físico da memória, algo sensorial, algum conforto com pouco trabalho, sem necessidade de luta, enfim, o mesmo prazer que retiramos da repetição de um episódio do CSI, já sabemos o que vai acontecer, como acaba a história.

Quando cheguei a Nova Iorque, uma ilustradora alemã tinha-me avisado: as palavras têm memória e cheiro. Laranja não é o mesmo que 'orange'. Com o tempo, as palavras em inglês passariam a ter gosto e sabor, mas folhado de salsicha, por exemplo, já tinha o seu significado no avesso do meu cérebro desde sempre - folhado de salsicha eram os pequenos almoços com os meus pais e irmãos antes do colégio, eram o princípio da manhã, após uma noite a whisky marado, com amigos, na mesa da pastelaria 'Girassol', atribuindo às efemérides da noite uma importância que sabíamos que não tinham. Folhado de salsicha é felicidade retroactiva.

Em Madrid, desesperei com a cultura de pequenos almoços em bar, o 'toma lá a tortilha e o café com leite, coño'. Tantos fins de semana praguejei contra cañas e vermutes e pimientos padrón, porque às duas da tarde eu ainda queria um pastel de massa tenra e um bom bocado. Todas as pastelarias, pela sua polivalência, deveriam estar abertas 24 horas.

Hoje lanchei, como lancham as crianças. Numa pastelaria. E percebi melhor o que me faz ir lá para dentro, o que me impele a, sempre que chego a Portugal, comer bolos e salgados.

Na pastelaria, esta tarde, admirei a forma como as pessoas flutuavam, mas não era leveza, era indiferença, esse torpor de quem está no comboio e sabe que mais tarde ou mais cedo chegará ao destino, uma apatia 'tá-se bem', como quem fumou demasiadas ganzas ou se encheu ao almoço, conseguindo, sem esforço, a imobilidade dos animais de sangue frio. Nas mesas estavam dois funcionários da farmácia, vestidos de branco; duas colegas de liceu; uma mãe, e uma filha, tão iguais, as mesmas ancas, os mesmos braços cruzados como quem arruma a vida entre a sala de estar e o consultório do médico de família. Mulheres com cinta por baixo da saia, apertadas, inchadas embora sem ter para onde explodir. O homem ao lado, o pai, não as ouvia, conhecia todos aqueles diálogos, estava no seu território da leitura das páginas da segunda liga de futebol, terceira jornada.

Olhei para o empregado, com a cara de ter duzentos anos de pastelaria, a mesma camisa de manga curta, as mesmas calças pretas. Olhei para a empregada, com Katya tatuado no antebraço e a certeza de um namorado que tem uma motorizada e fez parte do público de um concurso de televisão. No final da tarde, quando tudo se desacelera, a câmara lenta imobiliza-se de vez. Continuo sem uma certeza absoluta sobre o que significa a minha urgência por pastelarias, a não ser uma necessidade de açúcar e de regresso ao passado - um passado de onde saí há muito tempo.

3 comentários:

Unknown disse...

Genial!!! Mas tu nao percebeste que Katia era senhora dela??.... ela era a solange

Nuno S disse...

Entretanto, a Coutinho's Bakery deixou de existir. Foi recentemente vendida. Sempre gostei mais do Teixeira's.

Provocação 'aka' Menina Ção disse...

Detesto folhados de salsicha...