quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Back to the Future


Jantar com este senhor resulta em ressaca. De que falam dois escritores, em redor dos 30, que foram contemporâneos na mesma cidade estrangeira, e que passaram por ali com a intensidade de um corredor de automóveis que jamais pensa na revisão do carro? O que fazem, estes rapazes, numa cozinha enquanto o ecrã do computador mostra um espectáculo de stand up de Bill Maher? Estes rapazes fumam cigarros e ponderam se o bacalhau, no forno, demora muito a assar; entram a meio da conversa porque não precisam de tirar o chapéu e apertar a mão com uma pequena vénia. Contam histórias reais, tantas histórias, relatos que nem sequer precisam de verniz literário, têm a vida toda lá dentro - festas em restaurantes italianos no SoHo com as portas fechadas e livre acesso ao bar, mexicanos que chegaram aos Estados Unidos com buracos na carne dos pés que atravessaram o deserto; irlandeses (suspeitos de assaltos a bancos)com mau vinho e apetência para capotar carros; professoras de História de Arte que, aos 17 anos, chegaram ao baile do liceu de helicóptero e se estrearam na cocaína ('Sabes que ela se casou com um professor e acabou de ter um filho'. 'Uma professora casar com um professor. Original').

O João foi também meu colega de trabalho. Durante o serviço - cortar pão, limpar os menus, trazer as cervejas para cima - escrevíamos notas para romances em guardanapos, dançávamos entre mesas, não tínhamos mãos para tantos pratos, transpirávamos como atletas de triatlo, aborreciamo-nos no bar, com a sala vazia, esperando que algo improvável aparecesse na rua - e muitas vezes aparecia. Tirávamos sacos de lixo de uma cave, como última tarefa do turno de trabalho, num passeio com tráfico de mulheres bonitas. Riamo-nos de nós próprios e das nódoas na roupa. Depois, com o dinheiro das gorjetas nos bolsos das calças, íamos beber cervejas Rolling Rock e fumar erva para a porta do segundo bar mais antigo da cidade, trocando disparates com gente desconhecida e miúdas enigmáticas (ou apenas alteradas). Um bar junto ao rio, onde o chefe de cozinha, chinês, jogava xadrês com actores conhecidos e os empregados dos bares do bairro se juntavam para começar a festa.

Ontem, já sem o bacalhau pela frente, falámos cinco minutos de livros, nenhum de literatura.

Sabemos agora que somos muito mais adultos do que alguma vez imaginávamos ser, e muito mais infantis do que aquilo que esperam de nós. Continuamos a escrever porque nos faz bem. 'Para escrever é preciso mundo', diz ele. 'Um dos russo, não sei qual deles, dizia que tudo o que um bom escritor precisa é de ver uma luta de rua, a partir daí começa o seu trabalho de ficção', disse eu. Tantas das histórias contadas ontem seriam possível material de romances. Mas a vida e a escrita não são a mesma coisa. Hoje, lembrei-me de uma frase que li num livro de Stephen King emprestado pelo João, há uns dois anos: 'Ponha a secretária no canto e, sempre que se sentar para escrever, lembre-se porque motivo ela não está no meio da sala. A vida não é um sistema de suporte da arte. É o contrário'.

Sobre as histórias de Nova Iorque, de Lisboa, do Carvoeiro, de Madrid, da Travessa do Abarracamento de Peniche, o João disse, sem a mão na testa da nostalgia, mas com certeza: 'Essas histórias estão lá a atrás, esse tempo já não se repete'. Respondo: 'Mas há muito mais histórias para criar.' Não foi sequer preciso dizer-lhe que não me referia à literatura. Mas à vida cá fora. Sexta-Feira começamos.

1 comentário:

Tunguana disse...

Fogo...a gente ta com moinha??

Vai uma musica de um cantor da minha terra..

Sólo se trata de vivir
(Lito Nebbia)

Dicen que viajando se fortalece el corazón
Pues andar nuevos caminos
Te hace olvidar el anterior
Ojalá que esto pronto suceda
Así podrá descansar mi pena
Hasta la próxima vez

Y así encuentras una paloma herida
Que te cuenta su poesía de haber amado
Y quebrantado otra ilusión
Seguro que al rato estará volando
Inventando otra esperanza
Para volver a vivir

Creo que nadie puede dar una respuesta
Ni decir qué puerta hay que tocar
Creo que a pesar de tanta melancolía
Tanta pena y tanta herida
Sólo se trata de vivir

En mi almanaque hay una fecha vacía
Es la del día que dijiste
Que tenias que partir
Debes andar por nuevos caminos
Para descansar la pena
Hasta la próxima vez
Seguro que al rato estarás amando
Inventando otra esperanza
Para volver a vivir