domingo, 28 de fevereiro de 2010

Deus, Pátria, Televisão


Neste domingo, ao final da manhã, a RTP, televisão do Estado, transmitia a missa do Colégio Militar - fardas e cabelos curtos nos rapazes e dourados na batina do padre. No fim, cantou-se o hino nacional. Grandes planos da bandeira. Por momentos, pensei: estou naquele episódio da Twilight Zone em que o protagonista acorda no passado. Má sorte ter-me calhado 1961.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Romancistas


Vem aí mais um workshop de escrita para romance, comigo e com o João Tordo. Podem saber mais aqui.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Counter Punch


Bruno de Almeida faz filmes. Conta histórias - como me contava quando eu lhe servia cafés num restaurante quase a cair para o Rio Hudson. Quando soube que o protagonista do meu segundo romance seria um pugilista, falou-me de boxe, de livros e filmes para a minha pesquisa e, claro, contou-me histórias. Como a de Bobby Cassidy, que se transformou num filme. O Bruno viveu 20 anos em Nova Iorque e veio para Lisboa porque a cidade se estava a tornar, segundo ele, numa versão caramelizada, disneyficada, sex&cityzada, infantilmente endinheirada daquilo que fora. Um tempo em que, a urgência estilizada de saber quais os melhores e mais caros apple martinis em Manhattan é um atributo sem o qual não se pode sobreviver.

Noutros tempos, entrei num mercado, com o Bruno, ao amanhecer, após uma festa, para que ele pudesse cozinhar uma massa puttanesca, no seu apartamento, em honra das amigas que acabáramos de conhecer. Lembro-me dessa noite porque tem uma boa história (para outro momento) e porque dancei numa rua de TriBeCa a olhar para a luz, ainda fresca, matinal, que o Empire State reflectia sobre a ilha. Tudo tão cartão postal alcoolizado, que ficou bem registado no arquivo pessoal de imagens. O Bruno fez este filme com três mil euros. Cojones, digo eu. Vão ver ao cinema rapidamente. Já não vai estar muito mais tempo nas salas.

Blood as simple as a good story



Vale a pena ler este texto, do Tiago Santos, guionista e rapaz que partilhou comigo, noutra cidade, uma casa e um ofício de empregado de mesa. Good Times. Mas estamos em Lisboa e, com os novelos empoeirados e cheios de nós amargos que são, muitas vezes, os textos de cinema, fazem falta histórias assim. Por outras palavras: right on, bitch.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Crónica de hoje no jornal i


Uma ilha

O mais perto que estive da Madeira de hoje aconteceu há dez anos, durante os dias de chuva que arrancaram as casas dos morros que rodeiam Caracas, forçando carros, hotéis, bairros, famílias inteiras, toneladas de lama, num punho demasiado apertado. Uma emigrante madeirense, descalça sobre os destroços, falou para o meu bloco de notas. Nesses dias, morreram mais de dez mil pessoas, algumas delas tinham emigrado da Madeira. Ontem, na televisão, outra madeirense falou para um microfone, no Funchal. Tinha estado nas duas tragédias: na Madeira e em Caracas. Lembrei-me, por isso, do homem deitado na cama de um centro de acolhimento de Caracas, tão velho que não sabia a idade, a sua mão apertando a minha, contando como perdera toda a família e queria regressar ao Funchal. Nesse momento, a minha mão livre não procurou o bloco de notas. Quem escreve sobre o que aconteceu em Caracas ou na Madeira fica sempre aquém: há uma debilidade que não nos abandona o pulso e que não nos permite encher toda a tinta das palavras. Mas também há o consolo do ensinamento do jornalista Ferreira Fernandes, que me disse: “Quando as histórias são grandes, as palavras são pequenas.” Na Venezuela, falei com um homem enlameado, que transportava um frigorífico – não tinha mais nada. Disse-me: “Adelante amigo, buena suerte”, como se as suas costas, carregando o frigorífico, fossem já a reconstrução de tudo. Gostava que esse venezuelano lançasse agora essas palavras sobre os madeirenses. Palavras pequenas, curtas, cheias, tão fundamentais como as suas costas carregando o frigorífico.

Nota: por causa do tema desta crónica, resolvi prolongar mais um dia as crónicas do jornal i neste blog.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Crónica de hoje no jornal i


Macho Men

Uma das consequências da liberdade é aceitar que a liberdade dos outros nos pode deixar presos no trânsito, a admirar, pela janela, a explicação de um polícia – “É a marcha contra os gays” – e milhares de opositores ao casamento homossexual descendo Lisboa. Na manifestação, estranhei os balões cor de rosa e o hino disco sound das Supreme: “We are family”. Um bocadinho gay, não? Mas os manifestantes também tinham terços, bíblias e t-shirts com Jesus, porque a religião sempre quis controlar a sexualidade. Sei que a Bíblia, escrita quando se julgava que um terramoto era um castigo de Deus, condena a sodomia como condena comer porco e marisco – a religião é, tantas vezes, a superstição em forma de lei. Outra superstição: pensar que, caso os gays se casem, as famílias tradicionais deixarão os sapatos de vela e a missa de Domingo para correr em fio dental e plumas pelo país. Os heterossexuais têm medo do contágio gay. Ser homem a sério é ser lixado para a porrada e insultar os condutores adversários no trânsito. (Más notícias para os homens a sério: imperadores militaristas do Império Romano, um capitão da selecção de rugby de Gales e até Marlon Brando dormiram com homens.) Os gays podem vir a casar-se, mas os manifestantes tiveram uma vitória: no tempo que estive preso entre carros impacientes, a testosterona tomou conta do meu corpo e o ponteiro das rotações da minha heterossexualidade quase partiu o motor. Deus estará orgulhoso de mim – e de Jesus (do Benfica), que proibiu os jogadores de usar collants em Berlim. Homens a sério não usam roupa justa.

Nota: esta será, pelo menos por agora, a última crónica no jornal i disponível online. De hoje em diante só em papel. Vá, comprem o jornal, não tenham medo da tinta nos dedos.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Crónica de hoje, no jornal i



Deusa Oprah

John Mayer cresceu branco. O seu melhor amigo era um mulato – o tenista James Blake. Por causa do blues, música negra, Mayer trabalhou numa bomba de gasolina para comprar uma guitarra. O nome da sua primeira banda era Villanova Junction, uma canção de Jimi Hendrix. Já gravou com B.B King e Kanye West e disse: “O hip-hop é hoje o que o rock costumava ser.” Numa recente entrevista na Playboy, comentou-se que Mayer tinha um “hood pass”, que significa fazer parte da comunidade negra. Ele respondeu: “Não posso ter um ‘hood pass’ porque não sei o que é entrar num restaurante e dizerem-nos: Estamos cheios”. Mayer referia-se ao tempo em que segregavam os negros nos restaurantes. Mas Mayer também disse, nessa Playboy, “nigger pass” – nigger é uma palavra altamente insultuosa se dita por brancos. Percebi melhor a palavra, quando, nos Estados Unidos, uma vizinha negra me contou que, aos cinco anos, uma adulta branca lhe cuspiu na cara. Nigger é a escravatura, os homicídios do Ku Klux Klan, é o cuspo adulto na cara de uma criança. Mayer, que é americano, sabe isso melhor que eu. Perante o ultraje da comunicação social, pediu perdão. Mas já se fala de mais um pedido de desculpas, no programa da Oprah. Se Mayer precisa de ajoelhar-se para a audiência de Oprah, a mesma que exultou quando Tom Cruise saltou em cima do sofá do programa como uma atracção de circo, se Mayer precisa mesmo da limpeza espiritual da televisão de massas, se um lapso linguístico vale mais que uma história de vida, então, é melhor largar o blues e candidatar-se aos Il Divo.

Nota: estas crónicas só estarão online até ao final da semana, depois serão exclusivas em papel no jornal i

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Crónica de hoje, no jornal i


Brasiú

O Carnaval acabou. Já posso falar do Brasil sem referir bundas que tremem samba no frio da Mealhada. Também não me interessa o ultraje com Maitê Proença ou a arrogância civilizacional de acharmos que os brasileiros são todos futebolistas, prostitutas ou malandros. Não esqueço, claro, a pobreza, a insegurança, a corrupção no Brasil, mas sei que o país vive um momento único, como ilustrou a capa da “Economist”, com o Cristo carioca a levantar voo como um foguetão: “Brazil takes off”. Hoje interessa-me mais uma conversa, numa festa em Lisboa, entre brasileiros, e o seu entusiasmo ao falar do Brasil: “Os próximos 40 anos serão extraordinários. Não é apenas a economia, é um estado de espírito”. Tentei responder, alcoolicamente, com o Euro 2004 – um mês de euforia que acabou numa final perdida e estádios mumificados. Sei que não é a mesma coisa, e tive de reconhecer que, em toda a minha vida, nunca senti que os portugueses tivessem o mesmo entusiasmo, com Portugal, que os brasileiros mostram hoje pelo seu país. Senti inveja. Foram precisas as palavras do jornalista brasileiro Zuenir Ventura para perceber o meu engano: “Inveja é querer que outro não tenha, cobiça é querer o que não se tem”. Então, sofro de cobiça. Quero esse estado de espírito, sabendo que o melhor de Portugal passará também pelo Brasil – pela sua esperança, pelo seu vigor, pela sua criatividade. Em tempos, Saramago corrigiu um brasileiro, dizendo-lhe: “A língua é minha, o sotaque é seu” Estou-me nas tintas para o sotaque. Porque, senhor Saramago, não se trata do passado. Trata-se do futuro.

Nota: estas crónicas só estarão online até ao final da semana, depois serão exclusivas em papel no jornal i

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Crónica de hoje, no jornal i


Ídolos

Paul Schrader tinha dívidas, era viciado em pornografia e vivia no carro. Hospitalizado por causa de uma úlcera, teve uma ideia: “Percebi que não falava com ninguém há semanas. Flutuava sozinho pela cidade.” Essa ideia originou o filme “Taxi Driver”, com Robert De Niro, cujo argumento, de Schrader, foi nomeado para um Globo de Ouro. Todos os grandes prémios de cinema – Oscars, Cannes, Berlim – celebram os argumentistas, mesmo os que gostam de pornografia. Recentemente, a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) e a RTP inovaram na entrega dos seus prémios televisionados. Perguntei a José Jorge Letria, da SPA, por que razão uma sociedade de autores tinha premiado actores tendo-se esquecido dos argumentistas. Letria disse: “O rosto visível da obra, mais que os autores, são os intérpretes, a ideia de premiar o actor corresponde a um desejo da RTP de ver os intérpretes ter o seu espaço”. Ou seja, para uma televisão pública e uma sociedade de autores, as caras conhecidas valem mais (nas audiências e nas revistas) que as boas histórias e os degenerados que as escrevem. Pergunto: sem as palavras de Schrader teria De Niro sido capaz de ser o protagonista de “Taxi Driver”? Eu, que até ganho a vida a escrever, confesso que preferia ir a uma gala com Scarlett Johansson e deixar Schrader no carro – acontece que eu não sou uma associação que se propõe representar os autores. Uma sugestão para os guionistas: casem com uma actriz, como fez Schrader, e serão convidados para entregas de prémios. Ser autor para quê? O que interessa é aparecer na televisão.

Nota: estas crónicas só estarão online até ao final da semana, depois serão exclusivas em papel no jornal i

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Crónica de hoje no jornal i


O pugilista

Os comentadores parecem concordar numa coisa: a resiliência de José Sócrates que, entre tanta pancada, parece não ir ao tapete. Muitos escritores tentaram explicar como o boxe é uma metáfora da vida. Sou apenas mais um deles. Em 1967, após ter trocado aquele que considerava ser o seu nome de escravo (Cassius Clay) por Muhammad Ali, o campeão do mundo ouviu as provocações do adversário: Terrell chamou-o sempre de Cassius Clay antes do combate. Já no ringue, um despeitado e inclemente Muhammad Ali perguntou, entre socos, uma e outra vez: “Qual é o meu nome?” – mais que a resposta certa, Muhammad Ali queria prolongar a punição durante 15 assaltos. Outro pugilista, Roberto Durán, foi várias vezes campeão mundial, conseguiu 70 vitórias por KO e ficou com a alcunha “Manos de Piedra” – após mandar um adversário para o hospital, disse: “Para a próxima mato-te.” Mas, em 1980, Durán, que parecia feito de granito, ficou para a história do boxe, deixando a audiência tão boquiaberta como um paciente no dentista. Castigado pelo adversário durante oito assaltos, virou costas e disse apenas: “No más”. John Shulian escreveu sobre o abandono de Durán a meio do combate: “O seu momento de vergonha duraria uma vida.” Já Terrel perdeu de outra maneira: aos pontos, humilhado pelo campeão mundial, mas chegou ao último assalto sem dar o braço a torcer. Durán e Terrel: se o boxe é mesmo uma metáfora da vida, qual deles será José Sócrates?

Nota: estas crónicas só estarão online até ao final da semana, depois serão exclusivas em papel no jornal i

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Crónica de hoje, no jornal i


Love Story

O amor globalizado é isto: Hirsi Ali, nascida na Somália, foge da Holanda, ameaçada por islamitas radicais, e apaixona-se, em Nova Iorque, por um famoso professor escocês. No entanto, o académico é casado com a ex-directora do tablóide conservador britânico Sunday Express. Em 1992, Hirsi Ali escapou de um matrimónio arranjado pela família, pediu asilo na Holanda e, depois de ter sido empregada de limpeza chegou a deputada. Disse que, após muito pensar, teve uma epifania por causa do vinho: “Porque deverei arder no inferno por beber isto? Mas o que me alertou foi que os assassinos do 11 de Setembro acreditavam no mesmo Deus que eu.” Hirsi Ali escreveu o argumento do filme “Submission”, no qual mulheres muçulmanas, com versos do Corão escritos no corpo, relatam abusos. O realizador, Theo van Gogh, foi assassinado por um muçulmano e Ali vive nos EUA com protecção. O amante escocês, Niall Ferguson, enfrenta agora um mediático divórcio com Susan Douglas – Ferguson ganha 6 milhões de libras ao ano e Douglas será candidata pelo Partido Conservador. O Sunday Express esfrega as mãos: o tablóide moralista/voyeurista adora capas com as infidelidades dos famosos e, há dias, titulava: “Mais de 1,3 milhões de imigrantes com emprego após primeiro-ministro prometer empregos britânicos para os britânicos.” Imagino o título do Express: “Escocês trai loira conservadora com negra feminista e imigrante.” Ferguson sabe que as palavras com que descreveu as suas aparições televisivas também servem para a exploração do amor nos tablóides: “É como estar nu na rua”.


Nota: estas crónicas só estarão online até ao final da semana, depois serão exclusivas em papel no jornal i)

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Crónica de segunda-feira no jornal i


Babilónia Suburbana

Os polegares de Pedro Matias conheceram a fama porque bateram um recorde do Guiness: teclaram um sms de 264 caracteres em um minuto e 59 segundos. Matias foi celebrado pela televisão com a mesma euforia pacóvia com que perguntam a Tom Cruise – a promover um filme – se visita Portugal e se gosta de bacalhau assado. Lembrei-me de Matias durante uma investida pelo centro comercial Babilónia, na Amadora – concelho destruído pela construção selvagem e criminosa de prédios com marquises, e que apresenta a maior densidade populacional do país: 7241 habitantes/km². Mal entrei no Babilónia, pareceu-me ouvir: “Os anos 80 ligaram e querem o seu centro comercial de volta”. Mas algo mudou desde a inauguração, em 85: o centro tem agora 30 lojas de telemóveis (a sério). E Matias faz parte do grupo de jovens (15-34 anos) em que a taxa de penetração do serviço móvel é de 99 por cento. Os sms substituíram o Spectrum 48k e o Bate Pé. Não é grave. Sou tecnologicamente liberal. Mas nessa mesma tarde, escutei o socialista Candal, no debate do Orçamento de Estado, falar exageradamente de um país tecnológico. Candal enganou-se. Nem sempre a tecnologia é progresso: muito do furor lusitâno com recordes de sms, telemóveis, plasmas ou carros topo de gama, é uma prova de que somos o estranho caso do país pobre com pulsões de novo rico. Os recordes das árvores de Natal gigantes e dos centros comerciais monstruosos não significam sempre progresso – são apenas um penso rápido para um ego doente que precisa, afinal, de um transplante de coração.


Nota: estas crónicas só estarão online até ao final da semana, depois serão exclusivas no jornal i)

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Crónica de fim de semana no jornal i



Conta-me histórias


Maria João Avillez, jornalista, disse: “Vivi situações com o país à beira do abismo, é a primeira vez que vivo à beira da vergonha” Também disse: “Não saberia explicar aos meus netos o que se está a passar”. Percebo a sua frustração em descodificar o país para os mais novos. Mas Robert Mckee, professor de guionismo, diz que, quando nos falha a política, a economia e a até a terapia, só nos resta a ficção. Faz-nos falta uma narrativa que dê sentido a tudo isto. Pensei recorrer à tragédia grega, que trata de poderes superiores que manipulam os indivíduos comuns e que, apesar das perdas dos protagonistas, oferece uma certa limpeza emocional e espiritual. Mas as crianças de hoje têm problemas em manter a atenção, por isso, recupero o desafio em tempos lançado a Hemingway: uma história com apenas seis palavras. Ponderei Sá de Miranda para explicar o que se passa: “O que farei quando tudo arde?”. Ou talvez adaptasse o início da Metamorfose, de Kafka: "Portugal acordou como um monstruoso insecto.” Inspiro-me antes na série The Wire, que fala de escutas, de jogos de poder (e dos danos que causam) numa cidade americana: numa cena simbólica, uma personagem ensina dois adolescentes a jogar xadrez, explicando-lhes que os peões são sempre os primeiros a sair do jogo (de poder). Depois diz – e aqui está a nossa história para miúdos em seis palavras: “O Rei será sempre o Rei”. Fica-nos a faltar a limpeza emocional que a tragédia oferece, é verdade, mas a higiene espiritual só chega no fim da história. E esta história ainda não acabou.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Muda de Vida


Crónica do dia no jornal i

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Extra! Extra!


Crónica de estreia no jornal i, aqui.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

i num instante tudo muda


Todos os dias, a partir de 5ª Feira, vou escrever uma crónica aqui

Sound Track

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

a poesia dos outros também é minha


E ao anoitecer

e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia

Al Berto

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Carta


Querida Rosa,

Sei que chego tarde com esta carta e que a nossa correspondência se interrompeu há anos. Sei também que a última vez que estive em sua casa havia bolos e chá e scones. Eu estava a preparar-me para ir para outro país e a Rosa teve a atenção de convidar os seus netos para me falarem da cidade onde eu iria viver. O seu marido Joaquim estava lá, rodeado de móveis antigos e contando histórias sobre o Cardoso Pires e sobre a PIDE. Apesar dessas histórias do passado, a única coisa escura e antiga na sua casa eram mesmo os móveis da sala de jantar - a Rosa e o Joaquim espantavam-me: como podiam duas pessoas nascidas há tantos anos perceber as minhas inquietações existenciais de pós-adolescente, como podiam ouvir tão bem, como podiam perdoar a minha certeza de saber tudo sobre o mundo quando ainda me faltava aprender tanto?

Conheci-a, se bem se lembra, durante a entrega de um prémio de poesia na minha faculdade. Lembro-me que me disse que, ao ler os meus poemas, me imaginara vestido de preto, com barba e uma apetência para a misantropia. Isso, deu-me uma certa felicidade, uma vez que era a prova que os escritores, afinal, podiam usar camisas às riscas e sapatos de vela. Eu era um universitário pateta, produto inacabado da betice obsoleta da Linha, deslumbrado com as possibilidades da poesia: as pessoas gostariam de mim pelo génio da minha escrita e as miúdas da faculdade despiriam a roupa ao ritmo dos meus sonetos. Eu, confesso, queria ser o David Mourão Ferreira, por isso, quando me disse que fora amiga do poeta de "Música de Cama", cansei-a, tenho a certeza, com perguntas que nem uma groupie dos Rolling Stones teria coragem de fazer.

Depois comecei a ir a sua casa, a trocar cartas metidas em envelopes gordos, cheios das minhas primeiras tentativas na prosa. Em sua casa, recebia-me sempre com comida que acabara de cozinhar. Recebia-me tão bem. Sentados nos sofás, durante a tarde inteira, falávamos muito e hoje, se pudesse, falaria menos e escutaria mais. Era um miúdo, sabe, um rapaz que acreditava que a escrita limparia o lixo do mundo e que precisava de ser validado pelas suas palavras, um miúdo a quem fazia falta o seu cuidado na execução do bolo de laranja e a sua paciência para os relatos das minhas desventuras românticas.

Lamento nunca lhe ter dito que agora compreendo tudo muito melhor, que percebo que a Rosa não estava ali apenas para me dizer que eu seria escritor.

Por exemplo, se voltasse a sua casa, dir-lhe-ia que sempre que escrevo o código postal da minha morada, num envelope, me lembro do seu código postal da Calçada dos Barbadinhos. É um exercício de memória, uma vez que os códigos são parecidos. Se falasse agora consigo, em vez de escrever esta carta, diria que nunca percebi as pessoas que diziam que a Rosa é uma mulher muito bonita para a sua idade. É uma mulher bonita, ponto. Sei que se a Rosa tivesse nascido em Itália teria filmado na Cinecittà, tanto na década de 50 como agora. A Rosa é muito bonita. E caso eu estivesse agora com a chávena de chá na mão, escutando as suas ideias para o próximo livro, diria que me fascina o amor que põe em tudo o que faz, que aprendi muito com o aprumo delicado com que escreve e pronuncia todas as palavras, como um músico que toca por intuição, que já não precisa de ler a pauta.

Junto de si nunca me senti ridículo, nem julgado, nem vítima da condescendência dos mais velhos. Podia escrever-lhe agora sobre os livros que li, sobre coisas que quero escrever ou perguntar-lhe qual a história do seu próximo romance. Não, prefiro dizer que, se hoje não sou apenas aquele miúdo formatado num colégio mui católico e masculino, se já não sou tão bruto no tom e rapazola no peito insuflado de certezas, devo-o muito a si.

Consigo, Rosa, aprendi a aceitar mais pacificamente a ternura e percebi o maravilhoso dom da elegância das mulheres. Em sua casa, recebido pelos braços do Joaquim e pela sua paciência graciosa, eu nunca fui um estranho. Hoje, que penso que gostaria de ter filhos em vez de andar a incendiar o próprio corpo pelo planeta, penso também que gostaria que os meus filhos fossem lanchar a sua casa.

Mas também lhe agradeço a irreverência subversiva, como se lançasse cocktail molotovs com luvas Hermès. Sei que foi sempre dona da sua vontade, mesmo num país machista e provinciano, que pouco se importou com a opinião dos outros e que acreditava que uma coisa é a classe e outra é uma sociedade de classes.

Vimo-nos a última vez na feira do livro. E talvez o escritor encontrasse aqui o sentido para toda esta narrativa, para o ponto em que as nossas vidas se cruzaram - afinal, foi por causa dos livros que nos conhecemos. Sim, é verdade. Mas hoje a literatura não me interessa nada. O que tenho para lhe dizer não encontra forma - nenhum poema, nenhum livro, nem sequer esta carta -, o que tenho para lhe dizer chega atrasado. Se morremos para que a vida seja importante, então, sim, faz todo o sentido: a sua vida foi importante para mim. E sei que se entrasse esta tarde em sua casa, não precisava de dizer nada, nem pedir desculpa pelo meu silêncio, nem explicar por onde andei. Sentar-me-ia a comer o bolo de laranja e ficaria calado. Juro-lhe que ficaria calado. Tão calado como ficámos os dois quando descobriu que a minha mãe também se chamou Rosa.

Tenho saudades, um beijo,

Hugo

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Sugus


Em tempos, julgo que numa entrevista, o escritor António Lobos Antunes usou vocabulário de advogado quando disse: "As infâncias são retroactivamente felizes". Foi nesta frase que pensei, na fila do supermercado, ao ver as embalagens de sugus. Tirando o espisódio do ferro de engomar a queimar-me a perna (acidental) ou a tareia que os ciganos da Alapraia me deram (provocada), a minha infância foi de t-shirts do super-homem, gelados do Santini, tardes de bicicleta e 7Up no frigorífico, bebida nas noites de verão, quando a casa dormia e ninguém castigaria a minha insolência higiénica - beber directamente da garrafa de vidro de litro e meio.

Quando são questionados sobre a última refeição que gostariam de comer antes de ir desta para pior, a maioria dos chefes de cozinha costuma apontar algum prato da sua infância. Não é de estranhar, portanto, que os sugus estejam, para mim, associados a essa felicidade retroactiva.

Mas, desde os tempos do Naranjito e dos calquitos de animais, algo mudou - o mundo e os sugus. Hoje, o pacote de sugus foi, certamente, definido por inúmeros estudos de mercado: o pacote é de abertura fácil, traz sugus de vários sabores e os sugus já não têm aquele papel branco, impossível de tirar, e que tantas vezes foi digerido pelo meu estomâgo.

Numa era em que desesperamos se a página de internet demora dois segundos a abrir, num tempo em que domesticamos a solidão, na paragem de autocarro, a mandar sms, numa vida em que o Blackberry nos avisa, e nos agita, sempre que recebemos mais um email, os sugus adaptaram-se a estas novas pulsões humanas pela facilidade, rapidez e diversidade. São mais fáceis de abrir, têm cores - pelo menos o de limão é amarelo - e, tendo diferentes sabores, satisfazem a nossa frustração da mesma forma que a tv ligada, o facebook aberto e uma sms a apitar no telemóvel satisfazem o nosso aborrecimento.

A verdade é que os sugus que comprei (já comi todos) parecem-me mais artificiais que aqueles com que me debatia, no banco de trás do carro, cuspindo pedaços de papel branco que não conseguia arrancar do sugu preso entre os meus dedos peganhentos de saliva e açúcar

Os sugus de agora, acreditem, são mais ou menos como um one night stand sob o efeito de drogas: coloridos, fáceis de consumir, contêm produtos químicos, comem-se todos de uma vez, satisfazem uma necessidade imediata e não precisam de empenho - descascar um sugo aos 6 anos era tão difícil como abrir um soutien aos 16, hoje, nenhuma das tarefas apresenta grandes obstáculos.

Enfim, as coisas são mais fáceis, o que não quer dizer que tenham o mesmo sabor. Hoje, percebo muito melhor os ensinamentos do mister Miyagi ao Karate Kid: "Wax on, wax off" - há um caminho de paciência para as coisas bem feitas, e nem sempre o caminho mais fácil, sem o papel branco, é o melhor.