terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Crónica de hoje no jornal i


Uma ilha

O mais perto que estive da Madeira de hoje aconteceu há dez anos, durante os dias de chuva que arrancaram as casas dos morros que rodeiam Caracas, forçando carros, hotéis, bairros, famílias inteiras, toneladas de lama, num punho demasiado apertado. Uma emigrante madeirense, descalça sobre os destroços, falou para o meu bloco de notas. Nesses dias, morreram mais de dez mil pessoas, algumas delas tinham emigrado da Madeira. Ontem, na televisão, outra madeirense falou para um microfone, no Funchal. Tinha estado nas duas tragédias: na Madeira e em Caracas. Lembrei-me, por isso, do homem deitado na cama de um centro de acolhimento de Caracas, tão velho que não sabia a idade, a sua mão apertando a minha, contando como perdera toda a família e queria regressar ao Funchal. Nesse momento, a minha mão livre não procurou o bloco de notas. Quem escreve sobre o que aconteceu em Caracas ou na Madeira fica sempre aquém: há uma debilidade que não nos abandona o pulso e que não nos permite encher toda a tinta das palavras. Mas também há o consolo do ensinamento do jornalista Ferreira Fernandes, que me disse: “Quando as histórias são grandes, as palavras são pequenas.” Na Venezuela, falei com um homem enlameado, que transportava um frigorífico – não tinha mais nada. Disse-me: “Adelante amigo, buena suerte”, como se as suas costas, carregando o frigorífico, fossem já a reconstrução de tudo. Gostava que esse venezuelano lançasse agora essas palavras sobre os madeirenses. Palavras pequenas, curtas, cheias, tão fundamentais como as suas costas carregando o frigorífico.

Nota: por causa do tema desta crónica, resolvi prolongar mais um dia as crónicas do jornal i neste blog.

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