segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Duendes de sunga, crónica publicada no Diário de Notícias



Da mesma forma que um brasileiro olhará para o Carnaval dos portugueses com a sensação de que há algo de errado num corso debaixo de chuva, no frio de fevereiro, em que mulatas importadas tiritam sambas enquanto escoltadas por Cabeçudos de Torres Vedras, também um português tem essa impressão de profundo deslocamento num Natal no Rio de Janeiro.
De certa maneira, Vincent Vega, em Pulp Fiction, tinha razão. “A lot of the same shit we got here they got there”, ou seja, também há uma árvore de Natal gigantesca, patrocinada por um banco, uma companhia de seguros ou outro colosso do género, que atrai multidões e entope ainda mais o trânsito caótico e agressivo; os shoppings estão cheios, é difícil apanhar um táxi, há infinitas festas de empresa, filas, multibancos sem dinheiro, um vomitar de anúncios de telemóveis e um frenesi de compras, reuniões familiares e excessos alcoólicos e gastronómicos. Até se come bacalhau, embora o animal fetiche para a consoada seja o chester – uma ave que eu desconhecia e cuja popularidade me intrigou desde o início, mais ainda porque a primeira noite de Natal que passei no Rio, desembarcado havia dias, foi na festa do “Arrasta o chester” – conceito de uma amiga, em que, depois de jantar com as famílias, os seus convidados levam os restos de comida e de bebida para sua casa e, livres dos contragimentos familiares, só desligam a música ao amanhecer.
O chester, vim a descobrir, é uma galinha gigante e desengonçada, resultado de doze anos de seleção artificial de uma empresa brasileira, que queria encontrar um concorrente para o peru de uma marca rival. Hoje, o chester (sobre o qual há um role longo de teorias da conspiração) parece ter ganho a guerra das aves no Brasil. 
E depois há a extravagância da neve artificial com 40 graus, as musiquinhas natalícias (aqui dize-se “natalinas”) tocadas em cavaquinho em estilo samba, dias de praia lotada e mendigos negros com gorros de Papai Noel, catando latas do chão para vender; anões vestidos de super-homem e de super-mulher (a sério) promovendo uma pet-shop com megafones – um desfilar de personagens e cenários que entretêm um português mais habituado ao torpor do Natal lusitano, com mantas nos joelhos, overdose de comida e o coro de Santo Amaro de Oeiras na TV.
Estar longe da família – e das conversas sobre natais antigos e o coelhinho que foi com o Pai Natal e o palhaço, no comboio, ao circo – intensifica a estranheza que, nesta época, aflige o emigrante, porque a saudade e a nostalgia não encaixam no fluxo festivo da cidade. É que não se trata apenas do Natal de família – a que estamos habituados. Por esta altura, começa o verão e as férias grandes das escolas e universidades, faz muito calor e os dias são longos, celebra-se a passagem de ano com dois milhões de pessoas na praia de Copacabana, dispara-se a toda a velocidade dionísica para o Carnaval apoteótico. Enquanto o emigrante fala no Skype com a família, perguntando se está muito frio em Portugal, enquanto o seu bacalhau no forno eleva a temperatura do pequeno apartamento a 50 graus, o carioca está a dar o tiro de partida para mais uma temporada estival de festa, sangue bom e bagunça erótica.
                O verão é sexy, não será preciso invocar estudos para perceber que, na quadra natalícia carioca, aumenta a rotação nos motéis e que, com menos roupa, mais álcool, festas e a impunidade das férias, rola sempre, por estes dias de celebração do nascimento do Menino, uma sacanagem extra. Já em Portugal: a consoada, avós e tios, stress festivo, sonolência, “Sozinho em Casa” na TV, um frio de rachar na viagem da casa de banho para a cama, enfim, vamos assumir que lascívia, libido e luxúria, não são as L words daestação.
                Há muitos anos sonhava escapar da obrigação e da repetição natalícia, fugindo para um país tropical. Concretizei o sonho, e talvez sejam resquícios do perene dilema de António Variações – só estou bem onde não estou – ou então a inevitável atração do eterno retorno, mas hoje, preparando-me para o quinto Natal consecutivo de “Arrasta o chester”, trocava, num abrir e fechar de olhos, os cinco minutos que demoro a chegar de casa à praia, pelas dez horas de voo até ao cheiro das lareiras, dos pinheiros e do frio numa rua antiga que me faz falta.
               


terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come - crónica publicada no Diário de Notícias




O cão
O sono profundo é interrompido pelo ladrar da cadela. Quatro e meia da manhã. Levanto-me, tropeço, e vou ver o que se passa na sala. Digo-lhe que se cale, mas ela insiste, o pelo eriçado, uma rafeira de guarda. Só então me aproximo da janela e vejo um homem do outro lado, tentando entrar. Não recordo o que gritei – entre a obscuridade do sono e a surpresa de um intruso, o cérebro não foi capaz de registar tudo –, mas lembro-me de que eram dois e que desapareceram num ápice, pulando o muro, para o prédio vizinho, com uma destreza de acrobatas chineses.

Durante o dia seguinte senti-me um bicho – não falo apenas da sensação física de sobressalto com que, há milhares de anos, éramos acordados pelos predadores, mas uma viscosidade estranha, o subconsciente a mil, uma inédita insegurança. De dez em dez minutos uma pessoa é assassinada no Brasil, mas talvez porque os ladrões não pareciam armados e fugiram de imediato, não foi um medo físico que me dominou. Fui antes acossado por uma sensação de impotência e violação de algo íntimo, como se o susto, a meio da noite, tivesse as qualidades invasivas de um sonho no qual um carniceiro nos remexe as entranhas. Tal como há certas emoções que apenas experimentamos nos sonhos – fugir de um assassino, cair de um arranha céus, ser esfaqueado, matar alguém –, as emoções que perduraram em mim recuperavam esse temor genético resultante da fragilidade e da desproteção da espécie, algo uterino e primitivamente humano.


O gato
Ela tem três gatos e um está muito doente. Somos amigos há anos, moramos no mesmo prédio, e, quando me disse que teria de sacrificar o gato, achei que deveria poupá-la e ofereci-me para essa missão penosa. Imaginei-me sozinho, transportando a caixa, pensando “e se fosse a minha cadela?”, ponderando se teria de ficar quando fosse aplicada a injeção porque, afinal, aquele gato estivera no meu colo, dera-lhe comida e festas, fora seduzido pela sua elegância negra e pelos tremores do seu ronronar.

Na hora marcada, bati à porta da minha amiga. Apenas por acaso, eu vestia uma camisa preta e assim que perguntaram “Quem é?”, juro que pensei: “É o carrasco”. Tenho, desde o primeiro funeral em que participei, uma estranha maneira de lidar com a morte. O meu humor perde toda a compaixão, sentido de oportunidade e fica obscuro. É uma forma de enfrentar, por exemplo, os nervos e o desconforto de transportar um gato, numa caixa, para que o possam matar.

O calor humano
Os dois acontecimentos aqui relatados passaram-se na mesma semana e é fácil perceber porque se entrelaçaram na minha cabeça e no meu estômago. Tendo em conta mais episódios estranhos e recentes na minha vida, e num lugar espiritual como o Rio, uns diriam que se trata de mau olhado, de uma fase energética ruim, de um mapa astral destrambelhado. Prefiro acreditar no acaso, no calor tropical implacável e na tensão, exagero e descontrolo que tomam o Rio de Janeiro entre dezembro e o fim do Carnaval.

Faz agora muito calor, um calor que enlouquece os termómetros nas praças, que empapa uma camisa assim que a colocamos sobre a pele, que impede o sono e enfurece os humanos. Uma cidade adversária. O crime aumenta, há apagões, tudo fica mais caro. Há uma euforia crescente, que explode com os fogos de artifício no último dia do ano. Há uma agressividade nos transportes, uma eletricidade feroz, consumista e hedonista nas ruas – uma hiperbolização de tudo, o exagero de um lugar exagerado. O verão no Rio é como as drogas duras. As primeiras vezes são maravilhosas, mas, com o uso, a relação prazer/dor inverte-se. Nesta cidade é preciso andar sempre com a guarda levantada. E, mesmo assim, somos derrotados sistematicamente. Há qualquer coisa de trágico neste paraíso.

Fosse eu supersticioso e colocaria na porta o amuleto para o mau olhado que me trouxeram da Turquia. Mas prefiro encontrar consolo e paz em saber que, por vezes, mesmo que acompanhados, revisitaremos sempre uma antiquíssima sensação de medo e de finitude – e julgamo-nos inapelavelmente sozinhos contra o mundo. São fases. Tudo passa. Do acaso e da estranheza espreme-se um pouco de sentido e, espera-se, de sabedoria. Escreve-se uma crónica, desamarram-se uns nós. Tudo volta a ser como antes. E o gato, que até estava para morrer, afinal continua vivo.



segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O Papa e o Grande Líder, crónica de sábado, no Diário de Notícias




Nota: esta não é uma crónica sobre futebol ou clubes, que nada me interessam. 

Pinto da Costa foi recebido por José Eduardo dos Santos. Uns terão pensado em Lex Luthor e Darth Vader, outros viram o Papa e o Grande Líder. Tanto o presidente do FC Porto como o chefe de Estado angolano têm longos e controversos reinados e uma imagem que oscila entre o salvador e o vilão. Julgo que todos os portugueses poderiam oferecer uma opinião sobre Pinto da Costa – a sua imagem tem pontos comuns seja qual for o lado da barricada: um homem de sucesso, que transformou um clube de bairro numa marca mundial, que ganhou tudo, e capaz de declamar poemas com o fulgor romântico do século XIX. Mas tem também a imagem de um homem cujos métodos levantam suspeitas, que usou metáforas simplistas em escutas, alguém que pratica uma retórica infantil, maniqueísta, incentivadora do ódio (os mouros) com fervor propagandista e esperteza estratégica.
Interessa-me o que essa imagem de Pinto da Costa representa (seja ela correspondente à verdade ou não) no imaginário do país, mas também o que diz sobre nós, porque demasiadas vezes ouvi adeptos de outros clubes dizerem que não se importavam de ter um presidente que agisse fora da lei, prepotente, provinciano e bélico, desde que ganhasse os títulos que o FC Porto conseguiu nos últimos 30 anos.
O futebol é uma reserva onde são permitidos fanatismos, burrice e engano – desde que se marque o penálti a favor da nossa equipa. Suspendem-se os princípios e aceita-se que apoiemos algo desonesto com a desculpa que precisamos de paixões e catarse. Tal como parece normal que a imprensa reproduza, com dramatismo e entusiasmo, as baboseira dos dirigentes, sublinhando sempre, mas sempre, a ironia quando se trata de Pinto da Costa. Talvez, em tempos. Hoje, essa ironia tem as qualidades cómicas e a pertinência dos Malucos do Riso.
Num texto, após a visita a Luanda, Pinto da Costa vitimizava-se, exultava as autoridades africanas e, claro, ironizava: “Sonhei que (em Angola) a imprensa se referia com grande respeito ao FC Porto (...), que altas individualidades se tinham ido despedir da nossa comitiva (...) Mas (...) tudo era passado e aterrara num Portugal democrático em que se detém um primeiro-ministro ao aterrar no seu país.”
Chegado da impoluta e livre Angola, Pinto da Costa deve ter sentido que as suas liberdades ficavam brutamente limitadas ao passar a alfândega de um país onde sempre foi vítima e jamais teve reconhecimento, impunidade ou vénias institucionais.
José Eduardo dos Santos é presidente de Angola desde 1979. Chefes de Estado seus contemporâneos que estão (ou estiveram) no poder durante décadas: Ali Khamenei, Irão; Robert Mugabé, Zimbabwé; Teodoro Mbaso, Guiné Equatorial; Ali Saleh, Iémen.
O progresso e a melhoria de vida de um povo não são apenas as gruas e os arranha-céus que Pinto da Costa elogiou em Luanda, contrapondo a pasmaceira de Portugal, onde não ele lamenta não ver gruas nenhumas. O país africano é gerido como uma oligarquia cleptocrata, em que as oportunidades e a riqueza são distribuídas entre militares, burocratas e a família do presidente. As histórias de ostentação e esbanjamento multiplicam-se há anos. O presidente pode mostrar estradas, pontes e prédios altos, mas 70% da população sobrevive com dois dólares por dia e o país ocupa o 161º lugar (em 176) no índice de perceção de corrupção da Transparência Internacional.
                Em 2010, entrevistei um angolano que, fugido de Angola, dizia ter sido ameaçado de morte. Luís Araújo pertencia à SOS Habitat, que queria impedir a destruição de milhares de casas de gente pobre para se construírem condomínios de luxo. Dizia: “(A elite governamental) serve-se bem da hierarquia e do culto do chefe para preservar o poder. E é com essa gente que se quer construir uma democracia? Isso é querer que um jindungueiro dê laranjas doces.”
Dias depois de Pinto da Costa ter sido tratado em Luanda como acha que não o tratam em Portugal, Laurinda Gouveia, que participava num protesto contra o governo angolano, foi detida, agredida (com as mãos algemadas) e questionada: “Porquê tanto ódio contra o presidente?”
Que não existe liberdade de expressão em Angola não é novidade, mas, no último ano, dois ex jornalistas do i disseram-me que, nesse diário, não se podiam escrever textos que beliscassem os interesses angolanos. A ser verdade, e acredito que seja, é grave. Não estou certo de que os capitães de Abril tivessem feito uma revolução a pensar no futuro da liberdade de expressão em África, mas foi o golpe em Lisboa que despoletou a independência de Angola e, esperava-se, a democracia angolana. Não deixa de ser perversamente cómico que uma empresa de comunicação angolana, proprietária do i, censure um jornal português e nos faça recuar 40 anos.

Consta que o realizador John Ford, quando confrontado com algo inequivocamente errado, tinha apenas um argumento, que lhe saía das entranhas: “Somethings are just wrong.” Foi nessa frase que pensei diante da fotografia do presidente do FC Porto com Eduardo dos Santos e do título: “Angolanos elogiam Pinto da Costa e dizem que é exemplo a seguir.” 

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Portugal por um canudo




1
Sábado de manhã, bem cedo, corri com a minha cadela, pelo calçadão, e depois tomei um sumo de tangerina. O sol da primavera carioca atravessava tudo com um brilho cristalino. Era um dia bonito. Cheguei a casa e abri a página online deste jornal, ficando a conhecer a detenção de José Sócrates e iniciando de imediato, como a maioria dos portugueses (imagino), um período intensivo de consumo de notícias sobre o caso. No entanto, porque vivo a oito mil quilómetros de Portugal, a minha perceção do que se passa é constrita pelo canudo da internet – jornais, telejornais, redes sociais etc. E, desligada a conexão, regresso ao mundo que, de facto, me rodeia: o Rio de Janeiro – seja na sua beleza praiana e solar ou nos seus problemas ancestrais e endémicos, que fazem as chagas de Portugal parecer arranhões. Não é que a detenção de um ex-primeiro-ministro do meu país não seja de primordial importância, ainda mais se tivermos em conta a personalidade em questão e todo o simbolismo do seu legado e da sua prisão, mas, com um oceano pelo meio, e recebendo a informação através da internet, esta semana revelou-me, como já acontecera antes, um país novelesco e cómico, passionalmente palavroso, em que o ciclo de notícias de 24 horas parece desenrolar-se como um reality show.

2
Os diretos de TV a encher chouriços são ingratos para os jornalistas. A voracidade da informação resulta em redundância – repetem-se as mesmas coisas vezes infinitas – e desemboca numa obsessão com o nada, como o repórter que insistia na palavra “movimentações” e, no meio de tanta tautologia e gaguez, exultou de alívio ao ver um carro aproximando-se da prisão onde, eventualmente, ficaria Sócrates – não ficou. Além da obsessão com as “movimentações” de veículos, há também uma fome de detalhes gastronómicos – as pausas para almoço dos advogados, o cozido à portuguesa com que o ex-primeiro ministro se estreou na cadeia e o menu do restaurante onde almoçava em Paris. Depois, claro, há os maluquinhos da celebridade instantânea, que se colam aos repórteres, e sabotam o seu trabalho, para aparecer na TV. Se é para termos entretenimento informativo non stop, então gostaria que um desses jornalistas tivesse a iniciativa de pedir licença aos telespectadores e, fazendo uma pausa, fosse espetar uma galheta de professor da quarta classe antiga numa dessas figuras (estou sozinho nesta pulsão?).

3
No Portugal visto por um canudo, julgo encontrar um país que quer mais justiça do que vingança (posso estar enganado), ainda que, se alguma coisa se conhece dos homens, seja ingénuo fingir que uma condenação não providenciaria o primário prazer do ajuste de contas – com Sócrates e com todos os podres do regime nos últimos 40 anos. Outros protagonistas da política poderiam certamente estar no lugar de Sócrates, dificilmente outro representaria tão bem o papel do cordeiro de deus que, sacrificado, tira o pecado do mundo. Pode ser lamentável, injusta, exagerada, mas é uma pulsão de purga, previsivelmente humana e explicada por Clemenza a Michael Corleone, em “O Padrinho”: “É provável que as outras famílias se juntem, contra nós. Está tudo bem. Estas coisas têm que acontecer. É uma maneira do nos livrarmos do mau sangue”.  

4
Prefiro, sem hesitar, que um homem inocente custe a seriedade e o prestígio da Justiça do que condenar quem não tem culpa para salvar a cara do sistema. Respeito a presunção de inocência como respeito a liberdade de expressão. Mário Soares, que lutou e se sacrificou para que tivéssemos ambas, escolheu achar que Sócrates é alvo de uma “infâmia”, de um esquema organizado por “malandros”, e, portanto, inocente. Também disse que todo o processo era uma “bandalha”, exercendo o seu direito de liberdade de expressão. É verdade que quem escreve nos jornais, como eu, deverá mostrar um cuidado que não se tem com os amigos, falando sobre o tema, ao ritmo da cerveja. Mas isso não implica que eu tenha de anular o meu pensamento dedutivo, ainda que saiba que ele não substitui nem é mais válido do que o tão mencionado “regular curso da justiça”.

5
Esta semana, usando o tal pensamento dedutivo e um pouco de imaginação, pensei no escritor John Le Carré a ler os jornais e a anotar os primeiros apontamentos para um romance: “Primeiro-ministro, estudante de filosofia em Paris. Amigo de Hugo Chávez. Empresa construtora com negócios na Venezuela (onde trabalha um amigo de infância do primeiro-ministro, com uma conta de X milhões, na Suíça). Farmacêutica com negócios na América do Sul. Um super juiz de cognome Herói dos Tabloides. Epígrafe do livro – frase do protagonista: “A prepotência atraiçoa o prepotente”
              Título provisório: Cicuta.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Dança da solidão - crónica publicada no Diário de Notícias




Retrato de rapariga

Está sentada a meu lado, bonita, jovem, um piercing no nariz. Passam as estações de metro e ela não tira os olhos do reflexo do seu rosto no telemóvel – não se trata de um espelho, mas da câmara que serve para ensaiar a sua beleza. O comboio lasca a escuridão das entranhas do Rio, e ela prossegue, agora fazendo dezenas de selfies – beicinho e olhos de eyeliner. No resto do vagão, mais pessoas olham para os seus insetos eletrónicos, mantendo contacto com o mundo exterior, teclando para prosseguirem sempre presentes, para existirem continuamente diante de uma audiência que não veem.   
                Ninguém quer estar sozinho, o cérebro liberto, um minuto de sossego. A promoção permanente do eu tornou-se compulsiva. Tudo o que fazemos, pensamos ou fotografamos é suscetível de nos engrandecer se ampliado no éter do ciberespaço – uma patética ilusão de eternidade e de autoimportância. Esse egocentrismo e essa alienação impedem, por exemplo, o entendimento do que deveria ser tão óbvio: usar o telefone enquanto conduzimos implica o risco da própria morte ou de matar alguém. No entanto, nem a possibilidade de morrermos impede a burrice de teclar ao volante.


Lições de um comediante ruivo

Louis C.K., humorista norte-americano, diz que as suas filhas pequenas não têm telemóveis porque ele os considera tóxicos, viciantes, sabotadores da empatia e das relações com os outros – quantas vezes o nosso interlocutor olha para o aparelho e agita os dedos como pernas de centopeia em vez de nos prestar atenção?     
                “Precisamos da habilidade de estar sozinhos, apenas estar, sem fazer outra coisa ao mesmo tempo. Foi isso que os telemóveis nos roubaram, porque agora queremos saber o que se passa a todo o momento.” Numa entrevista, o comediante contou que sentiu-se melancólico ao ouvir Bruce Springsteen na rádio do carro. Pensou pegar no telefone, postar o que sentia, enviar uma mensagem, mas concluiu: “Não lhe pegues, fica triste, deixa que a tristeza venha e te atropele como um camião.” Parou o carro, chorou muito. “Há beleza e poesia na tristeza. Estava feliz por me ter sentido triste. Depois do choro há uma felicidade, temos anticorpos para a tristeza, é uma espécie de trip.”
                Hoje, impedimos a plenitude das emoções humanas porque mitigamos e filtramos tudo com os telefones, os computadores, a incessante necessidade de uma conexão. “Nunca nos sentimos completamente tristes ou felizes”, diz Louis C.K., “apenas contentes com os produtos que temos”.

  
Os escravizados

A velocidade da vida não está em sintonia com a rapidez da internet. Não falo do quotidiano, também acelerado, mas do arco da existência – a dor, a superação, a perda, as epifanias, a derrota, o processamento de tudo aquilo que passa por nós e não pode ser medido em likes ou bytes. Talvez o ofício de escritor e editor me tenha ajudado a entender a discrepância entre a velocidade fragmentada a que funcionam hoje os nossos cérebros e o movimento de rotação da existência. Um livro, para ser pensado, escrito e editado, precisa de tempo e paciência. O aceleramento do processo, sem ponderação, trabalho e amadurecimento, deixa os livros aquém do que poderiam ser. E é isso que julgo que acontece hoje com as nossas vidas – ficamos aquém, nem completamente felizes, nem completamente tristes.
`              Num jantar de grupo há sempre o clube do iPhone. Tenho vários amigos que não se sentam na retrete sem um tablet que os distraia. Nos pontos de ônibus ou na fila do banco parece que já ninguém consegue apenas esperar. Os momentos a sós são escassos – falta tempo para interpretar, ponderar e sentir sem cuidados paliativos.
(Mais de metade dos livros que leio são digitais. Oiço música no Spotify. Vejo TV na internet. Sou assinante de e-papers e tenho um smartphone – mas só ligo a internet em caso de necessidade, o que é raro, e o aparelho fica muitas vezes desaparecido sem que lhe preste atenção, porque não me apetece, nem sinto a obrigação, de estar sempre disponível ou visível. Não estou a par dos temas do dia no Facebook e nem por isso sinto que esteja em falta ou a perder algo importante.)
Não sou tão velho para renunciar a tecnologia nem tão controlador que tenha de decretar os hábitos dos outros. Mas lamento o alheamento constante e a falta de concentração por mais de dois minutos, a incapacidade do silêncio, do sossego, da divagação, de não fazer nada, ou essa ideia de que a vida se desata com a facilidade com que se atualiza o status na rede social. As benesses da tecnologia são uma dádiva, mas estão aqui para nos servir e não para nos escravizar. É por isso uma pena que os smartphones revelem agora tantos stupid users.



quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Cadernos de Buenos Aires - crónica publicada no Diário de Notícias





Para a família Bridger


Os jacarandás em flor

Buenos Aires não é como Nova Iorque, que parece familiar logo que pisamos a cidade. Ainda assim, diz-se que esta é a capital mais europeia da América do Sul, que as fachadas são de Paris, certas ruas parecem Madrid e que os parques são londrinos. Precisamos sempre de buscar familiaridade, comparar o novo com o que conhecemos. Mas Buenos Aires pareceu-me tão singular e inédita como os infinitos jacarandás – púrpuras, roxos, rosa – que, por toda a cidade, tornam ainda mais celeste o azul do céu.


La abuelita de hierro

A ditadura argentina (1976-83) reservou todos os eufemismos para o nome com que se autobatizou – Processo de Reorganização Nacional –, porque em tudo o resto era bruta, implacável e canalha. Logo no primeiro ano, o marido de Estela Carlotto foi sequestrado por militares, que exigiram um resgate (pago) ainda que o raptado não tivesse atividade política. Depois foi Laura, a filha, opositora do regime, que desapareceu. Estela encontrou-se com um militar de alta patente, que lhe disse que não voltaria a ver a filha. Confirmou-se a sentença. Contrariamente a muitas outras mães, Estela recebeu o cadáver de Laura – 30 mil argentinos “desapareceram”– e, anos mais tarde, mandou exumar o corpo. A autópsia provou aquilo que Estela já ouvira de uma ex presa da ditadura, que a informara que a filha estava grávida antes de morrer e que lhe tinha dito que, caso fosse um rapaz, lhe chamaria Guido, como o avô paterno.
                Durante mais de trinta anos Estela procurou o neto e ajudou outras avós a encontrar as crianças roubadas, de mulheres grávidas e mães recentes, para serem entregues a famílias de adoção – muitas delas de militares. Até 2014 foram encontrados 113 bebés (agora adultos), graças um banco genético argentino, que desenvolveu uma fórmula para apurar o que chama de “índice de abuelidade”, estabelecido entre netos e avós, uma vez que os pais dessas crianças estão mortos.
Estela é presidente das Avós da Praça de Maio, associação conhecida por reivindicar o paradeiro dos netos e o julgamento dos culpados. Em Agosto, a Argentina sentiu na pele a resolução de uma angústia e de uma luta de 36 anos, um desses momentos coletivos em que se desata um nó e todos (ou quase todos) torcem pelo mesmo lado. Tinham encontrado a 114º criança sequestrada.
Ignácio, músico, já tocara em concertos organizados pelas Avós da Praça de Maio. Descobrira recentemente que fora adotado e registou o seu ADN no banco genético. Quando chamaram Estela, com 83 anos, pediram-lhe que se sentasse. Só depois deram a notícia. Ela disse: “O meu neto? Vou poder abraçar meu neto? Devolveram-me parte da minha filha.” Depois de conhecer a avó, Ignácio acrescentou Guido ao seu nome.       


Cem pesos

Qualquer argentino é um analista económico e financeiro. Falar de política é como beber mate ou comer churrasco. Não me refiro à fama de povo aguerrido, educado e politizado, mas a algo palpável que resulta da necessidade do dia a dia – e da história recente.
Depois de mais de três anos a viver no Brasil, percebi que os problemas deste continente fazem a crise europeia parecer uma dor de dentes – no Brasil, uma pessoa é assassinada a cada dez minutos. Um carioca, mostrando a diferença entre as nossas vivências, perguntava-me “Você já teve racionamento de carne?
                Os últimos 40 anos da Argentina foram uma montanha russa lancinante. Mas todos os governos, democráticos ou ditatoriais, tiveram uma coisa em comum. Pediram muito dinheiro emprestado. E não pagaram. A palestra de uma amiga porteña, num café do Rio, ajudou-me a entender uma coisa: a volatilidade com que se viveu e vive na Argentina é estranha para um português que, apesar da crise recente, cresceu num país estável em que a qualidade de vida foi sempre a subir durante quase 40 anos.   
                Num banco um dólar vale oito pesos. Nas “consultoras” ou “cuevas” são 14 pesos. Os taxistas queriam que trocasse os meus dólares pelos seus pesos. O dinheiro argentino desvaloriza, a inflação anual está nos 40 por cento, o governo manipula os números, e, apesar disso, há um impulso consumista, gastar hoje porque amanhã vai valer menos.
Um porteño ensinou-me todos os passos para identificar uma nota falsa de cem pesos – largamente disseminadas. Já no aeroporto, de regresso ao Rio, a menina da caixa alertou-me para o defeito de uma nota e, gentilmente, pediu-me desculpa, como se temesse que eu fosse embora mal impressionado. Não fui. Porque mesmo perante notas falsas, relatos de amigos que tiveram de buscar a vida fora da Argentina e histórias da selvajaria da ditadura, Buenos Aires parece existir ainda e sempre, pelo menos na minha imaginação, de acordo com um louvável postulado de Hemingway: graciosidade sob pressão.


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O cadáver de Evita

(Crónica de sábado passado, no Diário de Notícias. Para ler as crónicas no dia em que saem, é só assinar a versão digital - 9 euros ao mês.)





O cemitério da Recoleta, em Buenos Aires – com os seus jazigos megalómanos e suficiente estatuária para atafulhar um museu –, é um legado da grandiosidade e da fortuna de outros tempos. Uma cidade dos mortos, com as moradas egrégias de clãs que podiam protagonizar romances históricos de vários tomos. O luxo do mármore italiano e a decadência das cúpulas. Os monumentos aos heróis da nação e os vitrais despedaçados. E, para quem visita, há ainda o bónus de um assombroso sentimento de viagem no tempo e de pequenez existencial.
Mas o presente impõe-se ao passado, mais atual do que nunca, e a cultura das celebridades e da documentação constante da vida é expressa diligentemente pelos turistas diante do mausoléu de Eva Perón. Agitados como se num concerto de Madonna, engatilham telefones e tablets, e fotografam o jazigo, encostando o próprio rosto a uma Evita de pedra, incrustada na parede.
O espectro peronista e a sua herança nos últimos 70 anos da história da Argentina não caberiam numa crónica. Mas, porque me faz espécie que se confunda um cemitério com a Disneylândia ou um treino da seleção, e porque ainda acredito que viajar serve mais para aprender do que para atualizar o Facebook a cada cinco minutos, não pude deixar de sentir uma revolta com os mirones da selfie, bem como uma solenidade estranha, mas desejável, ao pensar na proximidade do cadáver de Eva Perón – a mesma que senti ao ver a mudança da guarda no túmulo do libertador das Américas, José San Martín. Não tanto porque me tremam os joelhos diante de celebridades – póstumas ou vivas –, mas porque aquele corpo embalsamado faz parte da novelesca, e profundamente dolorosa, história da Argentina.
                Evita morreu em 1953, o seu corpo foi embalsamado por um mestre espanhol e guardado no edifício da Confederación General de Trabajadores. Mas a ditadura – poeticamente designada “Revolución Libertadora” (1955-58) –, que colocaria Juan Perón no exílio, quis impedir o culto ao maior símbolo do peronismo – Evita – e um grupo liderado por Carlos Moori Koening, chefe dos serviços de inteligência, sequestrou o corpo numa carrinha de flores. Embora o presidente Aramburu tivesse pedido um enterro cristão, o corpo foi guardado na casa de um amigo de Moori Koening, o major Arandía. Certa noite, Arandía viu uma silhueta e julgou ser um comando de peronistas em busca do cadáver. Descarregou a pistola, matando a sua mulher grávida.
Moori Koening tentou então levar Evita para casa. Não o deixaram. Segundo a filha: “O meu pai queria trazê-la, mas a minha mãe ficou ciumenta.” Moori Koening manteve Evita, enfiada numa caixa, no seu escritório, durante quase um ano, até que as histórias de deboche com o cadáver começaram a circular e o general Aramburu afastou Moori Koening e ordenou o “Operativo Translado”, que secretamente levou Evita para um cemitério de Milão.
                Durante 14 anos ninguém soube onde estava o cadáver, até que, em 1970, os Montoneros – grupo radical peronista – sequestrou o ex-presidente Aramburu, obrigando-o a confessar onde se encontrava Evita. Julgado sumariamente pelos captores, Aramburu foi executado com três tiros.
                O governo argentino, sob pressão popular e dos Montoneros, entregou o corpo de Evita ao marido, exilado em Espanha. Em 1973, Perón regressou à Argentina e ganhou as eleições presidenciais, mas, ao fim de um ano, morreu de ataque cardíaco e foi substituído pela terceira mulher, Isabel Perón. No ano seguinte, os Montoneros voltaram a usar o general Aramburu para reclamar o corpo de Evita. Roubaram o cadáver do ditador e só o devolveram quando Isabel Perón trouxe Evita de volta a Buenos Aires, em 17 de novembro, dia do militante peronista.
                Em 1976, outra ditadura – responsável pelo desaparecimento de 30 mil pessoas e cujos abusos incluem, entre muitos outros, raptos de crianças e assaltos à mão armada – tomou conta da Argentina e os seus dignitários debateram longamente sobre que destino dar a Evita. Ponderaram lançá-la de um avião para o mar, como faziam com as suas vítimas, esventrando-lhes a barriga, ainda vivos, para que fossem rápida e inapelavelmente para o fundo do oceano.
Quando perguntaram a um assessor de Videla – ditador que, como tantos outros, tinha cara e bigode de facínora – porque haviam deixado Evita no jazigo da Recoleta, ele disse: “Talvez porque ela seja a única de quem sempre – mesmo depois de morta – tivemos medo”.
                Hoje, Evita é estrela de musicais, presença estampada em “recuerdos” e figura de espetáculos de tango. A sua cara aparece também nas notas de cem pesos – amplamente falsificadas na Argentina.


sábado, 8 de novembro de 2014

Postais dos Trópicos

Depois de três anos adormecido, este blog volta para, sempre com uma semana de atraso, publicar as minhas crónicas - Postais dos trópicos - no Diário de Notícias. 



O jornal decidiu que as colunas de opinião só poderão ser lidas por assinantes. Não há jornalismo de qualidade de graça. O e-paper é apenas 9 euros por mês. Mesmo que só leiam as minhas crónias, dá 2,25 euros por crónica, e se acharem caro dividam os 9 euros pelas 30 crónicas mensais do Ferreira Fernandes. O jornal está em mudança, tem um excelente diretor, vale a pena. Para assinar clique aqui.



Para já ficam aqui as crónicas publicadas até agora. 

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Romance Policial



O caso von Richthofen
Suzane: a herdeira loira e sagaz, de boca carnuda e cintura estreita. Daniel: o rapaz mediano da Classe C paulistana, que desistira de tirar Direito por causa do aeromodelismo. Viviam cosidos pela boca e pela ilharga. Faziam tudo juntos. As notas de Suzane descambaram. O casal passava as tardes em motéis, amor maconheiro, room service, espelhos no teto. Suzane, com 19 anos, pediu um apartamento ao pai para ir morar com Daniel. Manfred von Richthofen, que se opunha ao namoro, disse que não. No Dia da Mãe, quando ela se recusou a almoçar com a família e o insultou, Manfred estreou-se na tarefa paternal do bofetão. Nunca tinha batido na filha.

Suzane fugiu, mas voltou, sem o anel que Daniel lhe oferecera – ainda que fosse ela que o sustentasse. Passaram ao namoro clandestino e montaram um plano. Recrutaram o irmão de Daniel – Cristian, um truculento cheirador de cocaína, de torso tatuado e passagens pela polícia. No dia 31 de outubro de 2002, os irmãos subiram ao primeiro andar da mansão com luvas de látex – separadas por Suzane do inventário da mãe, médica. Os pais dela dormiam. No piso de baixo, a filha disse não ter ouvido as barras de ferro e os baques de traumatismo craniano, repetidos, grossos, definitivos com um pizzicato de contrabaixo.

Paulino Boto, polícia: “Ela perguntou como estavam os pais. Quando eu disse (mentindo) que estavam bem, ela ficou espantada. ‘Como?’ É um crime de amadores.”

Antes de tirar uma foto para Departamento de Homicídios, Suzane penteou-se e perguntou a Daniel: “Estou bonita?”


O caso Kitano

Elize foi enfermeira antes de ser prostituta. Saiu do desterro de Copinzinho, no interior do Paraná, e mandou-se para a metrópole babilónica dos 20 milhões de habitantes. São Paulo do anonimato, onde a internet dispensa chulos e amplia o negócio.

Marcos Kitano, casado, escolhido pelo avô para presidir o império alimentício Yoki, descobriu Elize num site e pagou para ver – e tocar. Foram amantes durante três anos, até que Marcos se separou da mulher e, logo de seguida, bancou um casamento para 300 convidados.

Elize descobriu rapidamente o sentido do adágio “Nas costas dos outros vejo as minhas” – Marcos era tão infiel com fora com a primeira mulher. Ela contratou um detetive. Disse ao marido que ia visitar a mãe. Esperou a volta do correio em Copinzinho. Chegaram-lhe as fotos. Marcos a entrar no Hotel Mercure para o fellatio da tarde. Marcos manjando um steak Diana e bebendo Malbec com a amante no Alucci Alucci. Marcos voltando ao hotel para a faena noturna.
            
Elize regressou a São Paulo e dispensou a empregada. Marcos fez o último telefonema da sua vida no dia 6 de Julho de 2012 – para o pai – antes de levar um tiro de um revólver 38 na cabeça. Elize desmontou o corpo com uma faca de cozinha. A filha dormia e ela esperou a chegada da babá para sair com três malas. As câmaras do prédio também gravaram o regresso – sem bagagem. Na estrada, tinha sido parada numa operação de rotina. Mas o polícia não mandara abrir a bagageira. Os destroços do cadáver de Marcos apareceram nos arredores de São Paulo. Elize confessou o crime – ciúmes, paixão, vingança.

Natália, nome de guerra Lara, garota de programa e amante do falecido, tinha direito a uma mesada de 9 mil euros e recebera um carro de 25 mil – igualzinho ao que Marcos oferecera a Elize.

O caso Sandrão

Sandra Ruiz Gomes chegou a Tremembé, transferida de outro presídio, com 27 anos de pena e mais três meses por agredir um guarda. Barra pesada, conhecida como Sandrão, raptara um adolescente, com três homens, em 2003. O crime acabara com o pagamento do resgate – apenas mil euros – e o refém Talison Castro, 14 anos, descartado com um tiro na cabeça.Sandrão veste-se como um homem, tem cabelo curto, disciplinado com gel, e apesar da fama de quebra ossos veste um smoking e faz de mestre de cerimónias nos desfiles de moda na prisão.

Este ano, Sandrão, que vivia maritalmente com Elize Kitano na ala de casais de Tremembé, deixou-a e passou seis meses na ala comum – essas são as regras da prisão –para poder voltar a viver numa cela para casais com o seu novo amor: uma loira de lábios polposos que já tinha sido a razão da rixa entre duas guardas, que a disputavam. Um procurador foi até suspenso por tentar seduzi-la. Essa mulher, condenada a 39 anos, tornara-se religiosa na cadeia, mas deixou a ala das evangélicas e abdicou do regime semiaberto para poder casar-se com Sandrão. Essa mulher é a supervisora de Sandrão e de Elize na fábrica de roupa da prisão. Chama-se Suzane von Richthofen e, quando tinha 18 anos, o pai depositou na Suíça, em seu nome, sem ela saber – porque era dinheiro de corrupção e desvios –  30 milhões de euros.
               
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Os pobres



No Brasil ser pobre é foda – não no sentido positivo do termo (algo de bom, como “Aquele Zico era muito foda”), mas num sentido fadista, de destino traçado na palma da mão, um estigma quase sempre vitalício.

No Brasil, pobre não tem direito a artigo nem plural. Só “pobre”. Um dia disseram-me: “Não vou na praia, está cheia de pobre.” Pobre é desdentado. Mesmo o astro literário Nelson Rodrigues – que vestia o mesmo casaco puído dias a fio e que tinha mil trabalhos para pagar as contas – não conservava um dente na boca antes dos 40. Mas os pobres – mesmo pobres – que não mudaram a dramaturgia do Brasil como Rodrigues, sempre foram desdentados perpétuos sem esperanças de glória ou justiça, párias cujo desmerecimento e a exclusão vão muito além da falta de dentes.

“Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma punheta”, diz uma personagem em Feliz ano Novo, de Rubem Fonseca.

Pobre é preto – mesmo quando é branco. Pobre vale menos. Às vezes vale nada. A escritora americana Julia Michaels, com 30 anos de Brasil, escreveu que uma mulher fofocava com as amigas sobre o namoro da sua empregada e, quando perguntaram se a empregada era bonita, a patroa respondeu: “Para eles é”. Nós e eles. Quem manda e quem obedece. Os privilegiados e os “fudidos”, como por vezes se escreve no Brasil, uma vez que há aqueles que nem merecem a vogal certa.

Questionei uma amiga sobre o motivo de alguns anúncios de TV terem o som bastante mais alto do que os restantes. “Porque é anúncio para pobre”. Pobre viaja esmagado em ônibus sem ar condicionado. Pobre morre porque o médico não apareceu no hospital. Pobre não vale um tostão furado para a polícia. Pobre causa mais repulsa que compaixão. Pobre diz, sobre o vereador, o prefeito, o pastor: “Ele rouba, mas faz”, uma subversão a condescender porque, por norma, nunca ninguém faz nada pelo pobre.

Os norte-americanos têm nigger, kike, spick, chink, guinea, tudo epítetos raciais. Em Espanha chamam sudacas aos sul-americanos (certo dia vi uma porrada no metro de Madrid e alguém gritava “Soy argentino, no soy sudaca”). Já ouvi chamar “o preto”, “o gordo”, “o cigano”, “o anão”, “o mongoloide”, mas nunca, como no Brasil, ouvira “pobre” como uma designação tão depreciativa e amplamente usada – um chega para lá social, a arrogância de quem se acha escolhido em oposição à subserviência de quem, desde sempre, baixa a cabeça e se cala.

Caco Antibes, personagem da sitcom brasileira Sai de Baixo, ficou famoso por ter “horror a pobre” e pelos aforismos: “Pobre precisa entender que só passeia no shopping de havaiana quem é rico.” Presumível caricatura de ficção, Caco Antibes tem muitos sucedâneos na vida real.
            
Pobre faz parte do imaginário do Brasil, como o boteco, o arroz com feijão ou Carinhoso, de Pixinguinha. A designação “pobre”, para definir um grupo de milhões – mesmo os que não são pobres –, diz muito sobre o teimoso legado da escravidão e as conservadoras e pouco lubrificadas estruturas sociais neste país.

O Brasil já não é, de facto, desdentado. Antes pelo contrário, a democratização dos aparelhos odontológicos faz com que hoje a maioria – até “pobre” – tenha a brancura dental das estrelas de Hollywood. Há mais gente na universidade, menos a passar fome, muitas famílias podem agora ter algum conforto, manter os filhos na escola, aspirar a mais do que subsistir da mão para a boca.

Mas mesmo a vida dos que deixaram de ser oficialmente pobres continua impedida pelo descaso das autoridades e pela estrutura de castas. Horas de martírio para ir de casa para o emprego, medíocre prestação do Estado na saúde e educação, corrupção, favoritismo, discriminação, desamparo e muito pouca mobilidade social. Ser pobre não é apenas uma designação do governo federal – aqueles com menos de 25 euros de rendimento mensal. É também uma sina e uma opressão.    

Encontrei o porteiro do meu prédio, que deveria estar de férias, a lavar um carro no parque de estacionamento às sete da manhã. Perguntei-lhe o que fazia ali. “O coroa vai viajar e pediu para eu lavar o carro dele.” O porteiro tinha vindo de propósito de São Gonçalo (longe para burro), de madrugada, interrompendo as férias, para obedecer ao pedido (à ordem) de um inquilino. Quando me indignei, ele não pareceu especialmente vingado. “Faz parte”, disse-me – a ordem natural das coisas como ele sempre as conheceu e que se perpetua ainda, apesar do aumento dos rendimentos dos pobres.

Milhões podem ter saído oficialmente da pobreza. Mas, no Brasil, que por vezes parece o país dos coronéis, ser pobre ainda continua a ser foda – mesmo que se tenham os dentes todos. 


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Peito, bunda e coxas




Desde que, há mais de 500 anos, se escreveu pela primeira vez sobre as mulheres brasileiras, a sua cotação tem andado em alta. As relíquias são amplamente celebradas no imaginário global – as bundas do Posto 9, as mulatas do sambódromo, as modelos da Victoria’s Secret com asas endiabradas e pernas de asfixia erótica. Se Pero Vaz de Caminha se estreou no assunto elogiosamente, mas com alguma reserva – “Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal” –, os anúncios da Reef, com bundas douradas e formidavelmente redondas, bem como a poesia de Vinicius de Moraes, exprimiram plenamente, cada um à sua maneira, o magnetismo da mulher brasileira.
Só que, no Brasil de hoje, a beleza nada tem a ver com garotas de Ipanema ou sequer com a imagem batida da mulher com pouco peito, bunda empinada e uma sexualidade incendiária. Em primeiro lugar, porque não há um cânone da beleza brasileira. Se é verdade que, nas revistas de moda, ainda se veem, exclusivamente, as mesmas modelos galgazes e internacionais, que deslizam com lascívia e facilidade para dentro de uns skinny jeans, também é verdade que novos padrões se tornaram mais populares, contagiosos e duradouros do que o “Ai seu eu te pego”, do Michel Teló.

Peito

Cresci a ouvir que as mulheres brasileiras tinham pouco peito. Era uma verdade tão incontroversa como a genialidade supersónica e os cojones de Ayrton Senna. Talvez tenha sido assim um dia. No Brasil de hoje, que ultrapassou os Estados Unidos enquanto país onde se fazem mais cirurgias estéticas, é normal oferecer uma operação plástica às filhas adolescentes pelo aniversário. Rinoplastias estão entre as mais escolhidas, tal como o aumento de peito. Há até um tamanho oficioso, supostamente popularizado pelas atrizes da TV Globo: 250 ml para cada mama, o que parece uma frugalidade se tivermos em conta os peitos propagandeados – e disseminados com sucesso – por vedetas de reality shows, cantoras de funk e mulheres fruta. Pouco importa a proporção ou a aparência ciborgue da caixa toráxica: estão na moda as mamas com formato de balas de canhão de desenho animado.

Bunda

As mulheres fruta, exageradamente redondas, ícones sexuais desejados e imitados, enchem literalmente as capas dos jornais populares. Com bundas entre a melancia e a bola de pilates, estas mulheres têm em fartura o que as bundas da Reef tinham em equilíbro, contenção e resistência à força da gravidade.

                A “Playboy”, antes acostumada a cativar leitores com atrizes de telenovela, fez uma produção na favela da Rocinha, com a estrela do funk Valesca Popozuda – 970 ml de silicone no peito e 1100 ml na bunda. Por causa do seu sucesso “Beijinho no ombro”, Valesca já superou o estatuto tabloide de mulher fruta e entrou com estrondo, coxas musculadas e stilettos, na cultura popular.    

Coxas

Jenny Barchfield, jornalista americana, definiu assim um novo estilo de beleza, muito popular no Brasil, após ter conversado com um personal trainer em São Paulo: “(Ele) descreveu o seu ideal de beleza feminina e parecia o resultado da experiência do doutor Frankenstein, aos 12 anos, equipado com um maçarico, uma Barbie e um boneco G.I. Joe: ‘Feminina e elegante da cintura para cima, músculo sólido das ancas para bai­xo’”.

Mulheres com pernas que parecem pénis musculados entraram no main stream. O consumo de esteroides aumentou e, entre os inúmeros problemas de saúde causados pelas injeções, está a hipertrofia do clitóris – o que se ganha em tamanho, no entanto, perde-se em sensibilidade num genocídio de células nervosas.

O peito nem sempre é pequeno, a bunda não necessariamente empinada, e o apetite sexual perde agora para um reflexo musculado no espelho.

O doce balanço

Uma das coisas que mais aprecio no Brasil é a descontração e a aceitação do corpo, a forma como negras imensas, em biquínis mini, caminham triunfantemente pelo areal – mais confiantes do que estrelas pop apuradas por estilistas, dietistas e maquilhadoras. O Brasil tem mulheres lindíssimas e de todos os géneros, mas custa-me que muitas se mutilem na busca de um padrão homogéneo – as mesmas coxas, o mesmo peito, as mesmas caras repuxadas e botoxadas, entre o travesti e o lagarto. Será hoje a uniformização – e a masculinização – o que as gorduchinhas eram para Botticelli e as heroinómanas para Calvin Klein?

Sem meninas que vão e que vêm num doce balanço a caminho do mar, talvez as músicas, no futuro, celebrem implantes de glúteos, imortalizem personal trainers e declarem amor eterno – “enquanto duro” – aos clitóris culturistas.

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O português à solta




1
Galgávamos o asfalto com o habitual desvario assassino dos ônibus cariocas quando percebi o fio de voz do homem de cabelos brancos. Falava com a macieza dos patriarcas na poltrona da sala, perguntando à cobradora sobre a possibilidade de baixar o ar-condicionado. Reconheci, imediatamente, o tato e a mudez sem ossos das vogais portuguesas apesar de ter ouvido “Estou resfriado” em vez de constipado – as sílabas dele ainda não totalmente meladas por décadas de “você” e “gerúndios” e a triste, mas inevitável, substituição de “gajo” por “cara”. Meti conversa. Ele mudou-se para o meu lado.

2
“Tenho 85 anos, sou tripeiro e moro no Rio desde 1952. Os meus pais não queriam que eu viesse, a minha mãe chorou muito. Vim pela aventura. Embarquei num cargueiro – era um antigo navio de guerra italiano, o Génova. Demorámos 19 dias. Eu nunca tinha visto sequer uma foto do Rio. Voltei a primeira vez ao Porto onze anos depois. Só a minha irmã estava viva. O meu irmão morreu de tétano, tinha dez anos. Cortou os dedos da mão numa máquina. Trabalhei para a mesma fábrica 40 anos, sempre fui vendedor, já era vendedor na rua Sá da Bandeira, no Porto. Comprei o meu primeiro apartamento, no Leblon, nesta rua onde estamos, 17 anos depois de ter chegado. O meu nome é Francisco Silva Peralta.”

3
E há outro Francisco, o da feira da Gávea, que me guarda melões do Algarve e que, apesar da bata azul e das socas, inclina na cabeça um chapéu fedora que podia ser herança de Don Draper. Chegou ao Rio em 1965 e só voltou a Lisboa em 1998. “Nasci em Trás-os-Montes, mas sou de Campo de Ourique”, disse-me, uma manhã, o peito cheio e os galões de quem parece estar ainda no Jardim da Parada antes de partir para uma ginjinha no Rossio. E há o Luís, da farmácia, onze anos sem pisar em Figueiró dos Vinhos, e que no outro dia me chamou para junto do balcão como se quisesse comprovar as façanhas do pai. “Diga lá aqui ao meu colega se as estradas em Portugal não são um espetáculo?”

3
Quando converso com estes homens, duas coisas se repetem: nas palavras deles aflora mais forte, porque nunca desapareceu, o sotaque do lugar de onde partiram. E eu pergunto sobre a chegada ao Brasil, quantos anos estiveram sem ir a Portugal, como foi esse regresso. Imagino o Génova aproximando-se do porto com um vagar de baleia transatlântica e Francisco Silva Peralta olhando o Rio pela primeira vez, o pasmo dos dias iniciais, ensopado de humidade e clorofila (ficou em casa de um amigo, tirou umas semanas para conhecer a cidade, arranjou emprego com um português); tal como imagino o outro Francisco, de Campo de Ourique, a regressar a Lisboa, em ano de Expo 98, no esplendor da década de ouro, depois de ter largado o país quando Salazar nem sequer tinha caído da cadeira à espera do calista Hilário.

4
Eça de Queirós cunhou a frase: “O brasileiro é o português – dilatado”. Agostinho da Silva escreveu: “O brasileiro é o português à solta.” Embora estas frases tenham servido de refrão ao tema de abertura da vida de muitos portugueses no Rio de Janeiro, sinto que não desvelam plenamente a experiência de viver cá. É que, por mais que eu hoje saiba fintar as marés vivas no Posto 11, por mais tapioca com goiabada e Bloco Me Beija que Sou Cineasta e shows de rock no Circo Voador e a bicicleta a rolar na orla entre miúdas de skate e uma paisagem bom astral, a verdade é que, de cada vez que falo com estes homens, e depois de alguns anos de Rio, parece-me que a expansividade da estreia resulta quase sempre numa desejada volta ao recato.

5
Talvez seja apenas um simples caso de saudades – do que vivemos em Portugal e do que deixámos de viver por estar aqui. Mas quando converso com estes portugueses da velha guarda, sinto o consolo de um regresso, de um refúgio, e as palavras do nosso sotaque, por mais desossadas e afónicas que pareçam aos nativos, ressoam em nós como os sinos numa praça de casas caiadas onde, além dos gritos das gaivotas do Tejo, podemos escutar as vozes dos pais, dos irmãos e dos amigos no fôlego das alfarrobeiras, dizendo, com carinho, sem pressas, aquilo que nós já aprendemos: podes ir o mais longe que puderes, é aqui que mais pertences.
     

O Brasil não é para principiantes




1
Antes da tomada pose de Dilma Rousseff, em 2011, muito se discutiu: chamar presidente ou presidenta à primeira mulher eleita para o cargo no Brasil? Ficou presidenta. Uma legislatura depois, e com duas mulheres como principais candidatas – além de Dilma, Marina Silva –, a escolha de um “a” em vez de um “e”, ainda que simbólica, parece um detalhe prosaico na grande fotografia do Brasil.

A morte recente de duas mulheres em consequência de abortos clandestinos reavivou números indesejáveis: um milhão de abortos e cerca de 150 mil mulheres que precisam de assistência médica, como resultado dessas intervenções. Uma morte a cada dois dias. Nenhuma das candidatas pretende mudar a lei – a interrupção só está autorizada em caso de violação ou deficiência do feto. Sequer falaram profundamente sobre o problema. E ambas poderão ser presidentas. Com “a”.

Para quem vive no Brasil, não é estranho que a realidade mais inclemente seja tratada com um assobio para o ar. No ano passado, 50 mil pessoas morreram assassinadas, 42 mil em acidentes de trânsito, e mais de 40 mil mulheres foram violadas. Não deviam estes números ser uma sirene tocando incessantemente durante a campanha? Não. Porque se é verdade que nas democracias de todo o mundo há uma crise de representatividade e um fosso entre o discurso político e os problemas dos cidadãos, esse fosso é colossal no Brasil – e a cara de pau dos políticos também.

2
Marina Silva, evangélica, recuou no tema do casamento gay quando o pastor evangélico Silas Malafaia ameaçou retirar-lhe o apoio num post do Twitter. Os partidos evangélicos podem conseguir 18% dos lugares do Congresso. Malafaia, conhecido pelas suas tiradas homofóbicas, estrela dos televangelistas e entusiasta da teologia da prosperidade que promete riqueza terrena, disse aos fiéis, num programa de TV: “Você quer saber o valor do meu anel? Quatro mil dólares. Tá vendo o Mercedes e500, blindado na Alemanha? Foi um parceiro meu que me deu de presente de aniversário”.

Durante os protestos de 2013, quando o Brasil saiu à rua, Dilma Rousseff prometeu mudanças no sistema político e eleitoral, medidas excecionais para combater a corrupção, até um plebiscito para alterar a constituição. Um ano e três meses depois nada aconteceu.

3
Tom Phillips, inglês, correspondente em Xangai, participou num livro escrito por jornalistas estrangeiros, sobre o Brasil, que organizei recentemente. No seu texto, conta que, quando saiu do Rio, em 2010, só produzia artigos sobre as grandes mudanças e o otimismo do país. No regresso, em 2014, visitou os lugares por onde andara nos seus dez anos de Rio. Na favela da Coreia, com um amigo pastor, conheceu Denis, o rapaz que cometera um crime no Complexo do Alemão e fora condenado pelos traficantes. No texto, Tom sublinha o absurdo: Denis fora condenado por traficantes e salvo por um evangélico. O Estado estava ausente em todo o processo.

Parte da população está desamparada, nas mãos de traficantes, de milícias (máfias policiais), de presidentes do Senado que viajam no avião oficial para ir de Brasília a Recife fazer um implante de cabelo.     

No Rio, os dois principais candidatos a governador – Garotinho e Pezão – têm ou tiveram problemas com a justiça. Traficantes e milícias controlam o voto das populações que subjugam. Projeta-se um porto futurista no Centro, com arranha céus e hotéis espelhados, mas despeja-se grande parte do esgoto da cidade na Baía de Guanabara.

O maior drama do Brasil não é ter problemas – tudo aqui é complexo, excessivo, intenso –, mas que esses problemas continuem a ser desprezados, adiados e maquilhados de uma forma descarada e impune, com Copas do Mundo, Jogos Olímpicos e uma narrativa que parece extraída do livro “O Segredo”: pensa positivo, que vai dar certo.

No final da sua viagem de regresso ao Brasil, Tom concluiu – como muitos cariocas – que pouco mudara desde 2010, que a insegurança se agravara novamente, e que a propaganda oficial do sucesso, em tempos credível, parece hoje tão falsa como uma mala Fendi comprada nos chineses.

Estas eleições são, pelo menos para mim, uma evidência dolorosa: no eterno país do futuro, o presente continua (ainda e sempre) espetacularmente ignorado.