terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come - crónica publicada no Diário de Notícias




O cão
O sono profundo é interrompido pelo ladrar da cadela. Quatro e meia da manhã. Levanto-me, tropeço, e vou ver o que se passa na sala. Digo-lhe que se cale, mas ela insiste, o pelo eriçado, uma rafeira de guarda. Só então me aproximo da janela e vejo um homem do outro lado, tentando entrar. Não recordo o que gritei – entre a obscuridade do sono e a surpresa de um intruso, o cérebro não foi capaz de registar tudo –, mas lembro-me de que eram dois e que desapareceram num ápice, pulando o muro, para o prédio vizinho, com uma destreza de acrobatas chineses.

Durante o dia seguinte senti-me um bicho – não falo apenas da sensação física de sobressalto com que, há milhares de anos, éramos acordados pelos predadores, mas uma viscosidade estranha, o subconsciente a mil, uma inédita insegurança. De dez em dez minutos uma pessoa é assassinada no Brasil, mas talvez porque os ladrões não pareciam armados e fugiram de imediato, não foi um medo físico que me dominou. Fui antes acossado por uma sensação de impotência e violação de algo íntimo, como se o susto, a meio da noite, tivesse as qualidades invasivas de um sonho no qual um carniceiro nos remexe as entranhas. Tal como há certas emoções que apenas experimentamos nos sonhos – fugir de um assassino, cair de um arranha céus, ser esfaqueado, matar alguém –, as emoções que perduraram em mim recuperavam esse temor genético resultante da fragilidade e da desproteção da espécie, algo uterino e primitivamente humano.


O gato
Ela tem três gatos e um está muito doente. Somos amigos há anos, moramos no mesmo prédio, e, quando me disse que teria de sacrificar o gato, achei que deveria poupá-la e ofereci-me para essa missão penosa. Imaginei-me sozinho, transportando a caixa, pensando “e se fosse a minha cadela?”, ponderando se teria de ficar quando fosse aplicada a injeção porque, afinal, aquele gato estivera no meu colo, dera-lhe comida e festas, fora seduzido pela sua elegância negra e pelos tremores do seu ronronar.

Na hora marcada, bati à porta da minha amiga. Apenas por acaso, eu vestia uma camisa preta e assim que perguntaram “Quem é?”, juro que pensei: “É o carrasco”. Tenho, desde o primeiro funeral em que participei, uma estranha maneira de lidar com a morte. O meu humor perde toda a compaixão, sentido de oportunidade e fica obscuro. É uma forma de enfrentar, por exemplo, os nervos e o desconforto de transportar um gato, numa caixa, para que o possam matar.

O calor humano
Os dois acontecimentos aqui relatados passaram-se na mesma semana e é fácil perceber porque se entrelaçaram na minha cabeça e no meu estômago. Tendo em conta mais episódios estranhos e recentes na minha vida, e num lugar espiritual como o Rio, uns diriam que se trata de mau olhado, de uma fase energética ruim, de um mapa astral destrambelhado. Prefiro acreditar no acaso, no calor tropical implacável e na tensão, exagero e descontrolo que tomam o Rio de Janeiro entre dezembro e o fim do Carnaval.

Faz agora muito calor, um calor que enlouquece os termómetros nas praças, que empapa uma camisa assim que a colocamos sobre a pele, que impede o sono e enfurece os humanos. Uma cidade adversária. O crime aumenta, há apagões, tudo fica mais caro. Há uma euforia crescente, que explode com os fogos de artifício no último dia do ano. Há uma agressividade nos transportes, uma eletricidade feroz, consumista e hedonista nas ruas – uma hiperbolização de tudo, o exagero de um lugar exagerado. O verão no Rio é como as drogas duras. As primeiras vezes são maravilhosas, mas, com o uso, a relação prazer/dor inverte-se. Nesta cidade é preciso andar sempre com a guarda levantada. E, mesmo assim, somos derrotados sistematicamente. Há qualquer coisa de trágico neste paraíso.

Fosse eu supersticioso e colocaria na porta o amuleto para o mau olhado que me trouxeram da Turquia. Mas prefiro encontrar consolo e paz em saber que, por vezes, mesmo que acompanhados, revisitaremos sempre uma antiquíssima sensação de medo e de finitude – e julgamo-nos inapelavelmente sozinhos contra o mundo. São fases. Tudo passa. Do acaso e da estranheza espreme-se um pouco de sentido e, espera-se, de sabedoria. Escreve-se uma crónica, desamarram-se uns nós. Tudo volta a ser como antes. E o gato, que até estava para morrer, afinal continua vivo.



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