terça-feira, 30 de novembro de 2010

Supermercado


Uma ida às compras aqui.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Duas crónicas de outono


Fado de Outono

Na praça da cidade montam um carrossel e cruzo-me com os miúdos pequenos nalguma visita de estudo, as professoras atentas como sentinelas de uma manada de crias, dois a dois e de mãos dadas, a idade de quem acabou de perder os dentes da frente, uma daquelas tardes sem cor no céu e com o vapor de transpiração infantil nas janelas embaciadas da sala de aula, exactamente como quando na segunda classe a Sónia de olhos azuis e franja de escandinava estragou uma das minhas canetas de feltro molin – logo a vermelha, num estojo de 12. Quando fosse grande como o meu irmão, dizia a minha mãe, receberia um estojo de 48 canetas que parecia um órgão com teclas a tripar LSD. Sónia, se te dei um pontapé na canela foi porque gostava demasiado de ti – quando fazias um desenho a ponta da tua língua equilibrava-te, apertando-se entre os lábios cor de melancia sem sementes. Sónia, se fui mandado para a rua e te deixei a chorar, foi porque desde o primeiro período da Infantil que queria encostar a minha boca nas tuas bochechas cor-de-rosa, tão quentes e pegajosas como a sala de aula naquela tarde, e tu nunca sequer suspeitaste. Sónia, agora que passou tanto tempo, agora que os outros miúdos estão no recreio e nós de castigo, presos na idade adulta, não chores mais porque o rimmel que usas não é à prova de prantos. Sónia, não podia ser mais importante: deixa que a minha boca sinta a tua pele de fim de tarde e prometo-te que um dia vou ter um estojo com 48 canetas de feltro. A vermelha é para ti.


Comer, odiar, amar

O homem mastiga um panado como quem aspira a saliva por um tubo no dentista. O barulho húmido da carne de porco roça nas gengivas. Penso: um porco a comer um porco. Mais tarde, bebe um café coberto por espuma de leite. O seu bigode assemelha-se a natas pegajosas boiando na caneca. No final, palita os dentes, uma actividade que deveria ser tão solitária como espremer pontos negros. Noutro sítio, noutro lugar, ela tinha olhos de praia e a primeira vez que nos sentámos fazia calor. Por vezes, ela deixava a colher descansar sobre a língua, a boca fechada, o gelado derretendo no calor da saliva silenciosa. Ela era tão doce e suave e necessária como um cone de bolacha com morango e limão. Comer junto de outras pessoas pode ser incómodo ou reconfortante, asqueroso ou lascivo, mau para os nervos ou bom para o caminho da paz. Se um dos meus irmãos se punha a molhar o pão com manteiga no café com leite eu odiava-o, sugeria que o dessem ao Homem do Saco. Mas, muitos anos mais tarde, se a filha dela, que também tinha olhos de praia, se punha a comer bolo de chocolate como quem esfrega protector solar na cara, eu tinha um ataque de riso e queria apertá-la contra mim. Diz o senso comum e os manuais de auto-ajuda que só odiamos ou amamos aquilo que realmente nos importa. Comer não é apenas abastecer o corpo. E o estômago, acreditem, pode ser muito mais sensível que o coração. Felizmente, há sempre a esperança que para cada comedor sonoro de suínos panados haja uma miúda de cabelo amarelo com uma máscara de chocolate.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Basta!


A greve na crónica do i, é clicar neste clicar.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Triologia de crónicas numa semana estranha


Filme noir

Ray Cortese chegou a Lisboa uma semana antes do prazo de execução do contrato. O agente dera-lhe as indicações do serviço. Ficaria num quarto de pensão na Praça da Figueira, levantaria a encomenda numa pastelaria do Martim Moniz, não frequentaria mulheres ou copos de whisky. Ray Cortese: filho de emigrantes portugueses em Newark, duas comissões no Iraque como atirador especial, inclinação para apostar em cavalos errados, amigo de agiotas e strippers latinas. Para pagar as dívidas e a hipoteca da casa dos pais começou a trabalhar com um agente de Long Island. Este era o primeiro trabalho fora de fronteiras e escolheram-no por causa do seu português de segunda geração: "Bom noite, querer saber casa de fados. Ya know, Amália and Marceneiro." Ray crescera a ouvir o pai a cantar a "Casa da Mariquinhas". O agente tinha-lhe dito: "Não uses esse teu chapéu de Boggart, dá muito nas vistas." Em Lisboa, por causa da cimeira, havia mais polícias que mulheres bonitas. Na noite antes do serviço, Ray foi ouvir fados e acabou na cama com Rosa Maria, fadista galdéria e amante de turistas generosos. Quando acordou ela já não estava. E a encomenda com balas e silenciador também não: "Fucking cunt from hell." Mas ela apareceu minutos depois com o pequeno-almoço: "Não faças o que te mandaram fazer." Hoje há um chefe de Estado que deve a vida a uma fadista. O que poderia ter sido um atentado transformou-se num casamento marcado para o dia de Santo António. Ray e Rosa vivem numas águas-furtadas na Pena. Talvez sejam felizes para sempre.

Filme noir II

Amável de Jesus, polícia na cidade de Lisboa, acordou quando os candeeiros públicos ainda iluminavam a rua e apanhou o autocarro. No primeiro dia da cimeira da Nato, vestido com um colete laranja por cima da farda, viu passar o trânsito mas nenhum dignitário internacional. Amável de Jesus: detentor de um coração amarfanhado e abandonado pela fadista Rosa Maria, leitor de jornais desportivos, comedor solitário da sopa do dia numa casa de pasto, cidadão que não conseguia perceber os mercados internacionais, os gastos chupistas do governo da Madeira ou a antecipação da entrega de lucros, por parte de grandes empresas nacionais, a fim de fugirem ao aumento de impostos no próximo ano. No final do turno, Amável regressou ao apartamento sem cortinados ou aquecimento central e meteu uma lasanha congelada no forno. Seria um fim-de-semana sem jogo do Benfica e, com a televisão escangalhada, não podia sequer ver as séries de polícias - em tempos, por causa de um Sherlock Holmes televisivo, Amável sonhou ser detective mas acabou a ver passar carros na estrada com um apito na mão. Nessa noite, metido nos lençóis que pareciam feitos de granito, mandou um sms a Rosa Maria. Ela não respondeu. De manhã não foi trabalhar. Em vez da farda vestiu roupa preta e foi juntar-se a uma manifestação anti-qualquer coisa. Os seus colegas de profissão não o reconheceram. Não houve bastões castigadores nem cocktails molotov nem nada que pudesse compensar o seu anonimato aborrecido. Voltaria a ser polícia. E o dia seguinte seria igual a todos os outros dias.

Filme noir III

Fátima Libério começou a guiar o táxi quando uma embolia cerebral congelou metade do marido, taxista e poeta popular, deixando-o a comer papas diante da televisão a preto-e-branco do quarto. No táxi, Fátima ouvia as notícias na rádio, telefonava para os fóruns, contava muitas vezes como a sua mãe distribuíra cravos na manhã de 25 de Abril de 1974. No primeiro dia da cimeira da NATO, Fátima sentiu uma pontada nos rins, apanhou menos clientes e foi mandada parar por um polícia que, embora se tivesse apresentado como Amável de Jesus, lhe passou uma multa porque um passageiro fumava dentro do táxi. Fátima disse ao polícia: "Não me faças ir para a rua gritar." Fátima: um ventre danificado e sem filhos, lavadora de escadas e vendedora de rissóis para fora durante anos, ia ao cabeleireiro uma vez por mês, fazia umas iscas de prémio gastronómico mas não tinha audiência, o marido não podia mastigar. Nos dias da cimeira o taxímetro trabalhou pouco. O negócio estava mau. E os boletins meteorológicos da contestação anunciavam uma greve geral. Nem metro, nem autocarros, nem comboios. "Mais pessoas a apanhar táxis", dizia a minoria de taxistas-copo-meio-cheio, gente que ainda não sofria de amargura ou hérnias discais. Mas Fátima não quis aproveitar a oportunidade. No dia da greve deu banho ao marido, foi ao cabeleireiro pela segunda vez em 30 dias e deixou o táxi parado. Foi para a rua gritar. Mesmo em crise, há coisas que o dinheiro não compra

sábado, 20 de novembro de 2010

Carta ao pai Natal

Take It Easy 'Dear Santa Claus' from Marco Espirito Santo on Vimeo.

História de amor, crónica no i



Pilar debruça-se para executar alguma tarefa caseira, o seu corpo entre o computador e José, nunca um obstáculo, o seu corpo dobrado e José dando-lhe uma palmada malandra no rabo, depois o nariz do escritor encostando-se na pele das costas da sua mulher. Ou a voz espanhola de Pilar lendo um livro de Saramago, sobreposta na voz portuguesa de José - é um artifício da montagem do filme "José e Pilar", mas é também a vida real, duas vozes coladas uma na outra, duas línguas entrelaçadas como as mãos que se agarram várias vezes durante a vida e durante um documentário que merece todos os elogios. O tempo aperta e a doença reduz a voz do escritor, ameaçando-o com a morte, com a impossibilidade de escrever mais, de amar ainda mais. Saramago tem muita graça, mesmo muita, como quando, cansado da correria mediática, propõe a história do escritor que mata jornalistas em série. São um casal: Pilar e José discordam um do outro no banco traseiro do carro ou discutem por causa de Hillary e Obama. São um par de namorados: ela apoia-se na porta do quarto de hospital de José, triste e irritada com os jornais que querem escrever um obituário precoce; ele diz: "Se eu tivesse morrido antes de conhecer Pilar teria morrido muito mais velho." Talvez só o amor impeça a morte. Talvez por isso José diga que quer que Pilar o continue. O escritor que vivia desassossegado e escrevia para desassossegar também diz, sozinho e apaixonado, para a câmara: "Pilar, encontramo-nos noutro sítio." E nós acreditamos, nós só podemos acreditar.

Diário de um tatuador


História de uma tatuagem e de um tatuador que já foi mórmone, para ler aqui.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Três crónicas no i


Testículos de bronze, Fado da Sina e Obituário de um adeus

Respira fundo, crónica no i


Porque é fim-de-semana e tens sentido a tristeza gasta de um falhado, sai da cama devagar, abre as janelas e toma um bom pequeno-almoço – omelete de tomate, laranjas espremidas com as mãos, pão alentejano no consolo da torradeira. Depois, quente e preguiçoso, regressa aos lençóis frescos, encontra o teu sítio na almofada e se tiveres a fortuna de poder beijar alguém, pousa primeiro os lábios na curva entre o ombro e o pescoço. Então, ataca, mas que sejas leve, que tenhas tempo para tudo. Mais tarde, já com o coração a reduzir o galope, os músculos em levitação e a boca a pedir água, podes dormir mais. Hoje, não ligues o telemóvel, abdica de narrar a tua vida em emails e redes sociais. Não alimentes a electricidade estática do teu cérebro nem a ansiedade televisiva de querer saber tudo em tão pouco tempo. Tem calma. Caminha longe dos motores, procura um jardim onde ainda sobrevivam buganvílias. Não digas nada. Experimenta viver sem ruído. No final da tarde liga aos teus amigos ou fala com a família. Marca um jantar, pega numa faca e acende o fogão, serve vinho a quem aparecer, toca no corpo daqueles que te fariam falta se ficassem doentes e --------, toca-lhes porque também precisam. Nunca nada é tão dramático como parece. Vai ser fodido, Portugal, mas quando tudo parecer em chamas lembra-te do admirável poder do toque – a cara barbeada do teu pai quando o beijas, a mão que te compõe a franja, um pé procurando outro pé, sobre o lençol, a meio da noite – e talvez percebas que tudo tem que voltar a ser muito mais simples.

Passeio com poeta morto, crónica no i


Era de noite quando Fernando Pessoa me tocou no ombro mas não me assustei. Já tinha lido nalgum relatório da OCDE que os poetas portugueses estão entre os mortos que mais aparecem aos vivos, logo a seguir aos portageiros gregos e aos guardas-nocturnos irlandeses. Disse-me que queria companhia para um passeio. Na Baixa, o poeta comentou que as decorações de Natal pareciam papel higiénico amarrotado e assustou-se com um vendedor de haxixe. Quis mostrar-lhe que o modernismo não era apenas um movimento artístico e entrámos na engenharia fluorescente do metro da Baixa, aproveitando a boleia das escadas rolantes para subir ao Chiado. Emergimos quando passava o eléctrico – um postal da cidade, pensei. Talvez me safe como guia turístico de defuntos. Percebi a vaidade e levei-o aos restaurantes dos Armazéns do Chiado. Disse: “Quereres uma pita?” Fernando Pessoa olhava para as adolescentes maquilhadas e de calções tão curtos como uma peça de roupa que encolheu na máquina. Repeti: “Queres uma pita shoarma?” Ele disse-me que aquele lugar era triste como as casas de pasto onde jantava sozinho do poeta ao ver a estátua de si mesmo. Perguntei-lhe se, no além, era amigo de Van Gogh. Ele desviou a conversa, dizendo que morrera sem pagar uma conta na Brasileira e que era melhor arrepiar caminho. Ponderei perguntar-lhe pela Ofelinha mas tínhamos fome. No Rossio perguntei: “Chamo-te um táxi?” Ele: “Obrigado, mas uma das coisas boas de estar morto é o dinheiro que se poupa em transportes. Isto não anda fácil”. E depois bebemos uma ginginha sem dizer uma palavra.

Marina & Leonid, crónica no i


Na praça do Rossio, ela segura uma câmara fotográfica e pergunta-me: “Do you speak English?” E depois de apertar o botão fico a saber que se chama Marina, que o marido, Leonid, fugiu da Letónia, então URSS, durante a Segunda Guerra Mundial, escondendo o seu sangue judeu no Uzbequistão. Regressou no final da guerra e casou com Marina, também judia – “Ele teve de identificar os irmãos mortos durante a ocupação alemã”. Mais tarde, Leonid serviu no exército soviético junto da fronteira com a China, a mais de nove mil quilómetros de casa: “Era muito duro, demorámos um mês para lá chegar”. Em 1977 Marina e Leonid tinham um filho: “Por causa dele fugimos para Berlim Ocidental. Queríamos que tivesse uma vida melhor”. Marina e Leonid saíram de um país que os tinha sob controlo para um país que, quatro décadas antes, os invadira. Falam de Berlim como a sua casa: “Já voltei à Letónia, mas é diferente, há gente muito rica ou muito pobre, não há nada no meio. Tens de vir a Berlim.” Marina fala um inglês eloquente – “Fiz um curso de línguas” – e os seus olhos agigantam-se ao mencionar o filho: “Estudou hotelaria na Suíça, foi para os Estados Unidos, casou-se com uma israelita e tenho dois netos.” Fala-me da importância da família. Tem tantas saudades do filho. Percebe-se tão bem quando me abraça e se despede e lhe digo: “Goodbye”. Ela responde: “Never say goodbye”. Já em casa descubro que os nazis mataram 90 mil lituanos entre 1941 e 1944. Tanto tempo depois Marina e Leonid estão na praça que cruzo todos os dias. Marina tinha razão: “Never say goodbye”.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Crónicas com banda sonora





E agora as crónicas no i já estão no site do jornal. Ficam as últimas duas: Respira fundo e Fado da Solidão.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Leis da atracção


Várias vezes por semana corres num jardim da cidade, no sentido contrário aos ponteiros do relógio, o que te faz pensar que ficarás com uma perna mais curta que outra. Corres depressa, roçando a imobilidade dos visitantes do jardim. No entanto, és invisível para os velhos que batem a manilha de paus na mesa como quem esbofeteia o adversário. Há bocados de palavras que se colam na tua velocidade – “Oiça, mas estou aqui bem?”, diz a mulher, segurando uma revista de telenovelas, para o homem sedutor no banco de jardim. Mais adiante, os bêbedos despejam pacotes de litro, falam com sílabas ensopadas pelo mosto e incentivam-te como se fosses um ciclista na montanha. Mais do que uma vez ficaste irritado com os solitários que lançam pão aos pombos. Bates palmas para abrir caminho como se disparasses um revólver de fulminantes, mas já percebeste que não te podes zangar com os pássaros ou com aqueles que, quando atiram migalhas, gostariam de receber alguma coisa em troca, mesmo que fosse um abraço de asas. E há o puto gordinho que levanta a mão – “High five” – de cada vez que passas por ele, há as indianas, sentadas lado a lado, tão coloridas nos trajes como sossegadas na voz, há mulheres bonitas na esplanada que (vá lá, reconhece) esperas que olhem para ti. É por causa destas pessoas que melhor percebes a descoberta de Copérnico adaptada aos humanos – nada gira em teu redor, não és o centro de nada, e um dia, quando te apoiares numa bengala para compensar a perna mais curta, também tu podes vir a precisar de um abraço de asas.

Uma casa com vista para o mar


E se o OE fosse chumbado? E se o FMI chegasse? Como seria Portugal se tudo tivesse corrido da pior forma possível? Um conto futurista que escrevi para o jornal i, é só clicar aqui.


Ilustração de Tiago Albuquerque.