sábado, 28 de maio de 2011

O teu cheiro


És toda partículas que se espalham pela casa, és toda moléculas de pele que pairam como bandos de pássaros numa casa de janelas abertas para a cidade das palmeiras, dos jacarandás, das árvores que conspiram para plagiar o teu cheiro. Escuta como digo: o teu cheiro. Está nos vincos da almofada que te marcam a cara quando dormes toda a manhã, está nas meias coloridas e nas pastilhas elásticas que deixas nos recantos do quarto, está nas mãos que não se cansam de te apertar. O teu cheiro: milhões de partículas que se despegam desses lugares em ti, do cabelo molhado quando sais do banho e um rádio toca alto na sala, das mãos escrevendo bilhetes com caligrafia de carta antiga, da curva do pescoço que serve de casa, de templo, de falésia ao resto do teu corpo.

Não há outra maneira de o dizer: farejo-te como um bicho, o nariz imitando os dedos, deslizando pela tua pele como um peregrino ou um caçador. O teu cheiro: infinitos fragmentos de ti, o teu código genético, tudo aquilo que já foste - mergulhos na praia Grande, mortais de ginasta, sobrancelhas levantadas pela curiosidade de perceber e viver tudo o que te rodeia. O teu cheiro, ainda o teu cheiro. Se te toco altera-se, se acordas é outra coisa, se te vais embora fica por aqui, balançando todo o dia como uma cama de rede num alpendre. O teu cheiro: tantos e tantos pedaços de ti que respiro agora mesmo, suaves estilhaços que pousam nos pulmões e entram na circulação sanguínea, instalando-se em cada célula, forrando o lado interior do coração. O teu cheiro és tu a pulsar dentro de mim.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Relatos masculinos sobre mulheres estereotipadas, publicado no jornal i




Diogo e a cock teaser

Ela era loira e magra e muito beta. Mas também era tão gira que passei um mês a dar-lhe boleias, a escrever bilhetinhos e a cortejá-la com jantares e apontamentos da faculdade e presentes originais que ela, tenho agora a certeza, achava inúteis. Os seus cabelos manipulavam-me como se eu fosse um golfinho amestrado, sempre pronto para a salvar. Eu escondia o meu tesão, escondia a minha natureza. Ela não ia dar-me nada que estivesse além da fronteira da roupa. Repara, não era pudica, de certeza que havia quem lhe pusesse as mãos nas mamas. Mas eu era o microondas, a volta de aquecimento, caindo no seu jogo de vai-vem, o anda cá agora que preciso de tua atenção, artolas, e toma lá um inunendo sexual para continuares na minha órbita, ou um bater de pestanas que queria dizer: sei que vais para casa brincar com o teu corpo como se fosse um jogo de flippers enquanto pensas na minha boca que comia um cornetto pago por ti.
Já reparaste que não há uma palavra, em português, para classificar as mulheres que provocam mas não dão nada? Os espanhóis têm “calienta pollas”, os franceses dizem “rôtisseuse”, os anglo-saxónicos dispõem de “cockteaser”. Faz-nos falta uma palavra assim na nossa língua, alguma coisa que nos avisasse da existência perigosa destas mulheres que nos têm presos pelas partes baixas.
No fundo, sabia o que ela estava a fazer. Sabemos sempre. Um dia fomos lanchar e ela começou a falar-me de outro gajo. Declarou-me o seu amor por um beto mais giro, mais alto e que a desejava menos do que eu.
Podia dizer que isto aconteceu porque eu era um miúdo. Mas não. Eu caí então como caio agora, ainda hoje, com esta idade, porque sigo a incontornável lei biológica que mantém viva a espécie: espalha a semente. Parece-te um disparate? Então como explicas que mesmo conhecendo a existência destas mulheres tantos homens se enfiem contra a parede, uma e outra vez, qual carrinho (mal) telecomandado? Meu amigo, o predador desata a correr ainda que saiba que a presa é mais rápida e engenhosa. Uns chamam-lhe estupidez. Eu sou apenas um escravo estúpido do sangue animal que herdei.


Pedro e a papa-hóstias
Eu estava no Rio de Janeiro de férias, estavas lá comigo, Hugo, conheces a história tão bem como eu. Mas está bem, eu falo disso: nós com um apartamento ao lado da casa de meninas mais famosa da cidade, perto da praia com corpos resplandecentes de bronze e possibilidades, as nossas amigas cariocas giras na cabeça e sem teias de aranha na moral, mas calha-me uma miúda que, sempre que passávamos diante de uma igreja, se benzia e dava um beijinho no Cristo de prata no fio ao pescoço. Numa noite pós jantar/chopp/passeio na praia, lá nos beijámos à porta do prédio dela (vivia com os pais). Eu arrisquei uma mão na bunda, e a mão dela, manipulada pelos ensinamentos do senhor padre, rapidamente me pôs na linha.
Já viste como a religião escavacou a sexualidade das mulheres? E dos homens? Mas com as mulheres é pior. Na doutrina clerical bafienta, as mulheres ou são putas – Maria Madalena – ou são santas – Maria imaculada mãe de Cristo. Devassa ou virgem mãe – por mais bizarro que seja a ideia de uma mãe com o hímen intacto. Faz algum sentido? Não tem que fazer, é religião, essa forma burocrática que a superstição encontrou para parecer mais legítima e chamar-se religião. E depois foram séculos a destruir a auto-estima feminina, a constante tentativa de controlar as pessoas, cintos de castidade, uma campanha de medo e castigo, a ameaça definitiva em jeito de exortação: cuida do templo que é o teu corpo, os homens vão tentar abusar de ti e poluir a tua pureza, ama apenas o Senhor e não os senhores que te convidam para jantar. Caso contrário és uma quenga que arderá no inferno da fornicação eterna – e serás escorraçada por nós, queimada, excluída, achincalhada em praça pública. Um banqueiro tem mais hipóteses de entrar no Paraíso que uma mãe solteira com três one night stands na sua carreira de cama.
No último dia no Rio, ela quis levar-me a passear. Sabes onde fomos, não sabes? Lá a cima, mais perto do Céu, onde vive o Cristo Redentor de braços abertos sobre o assombro que é aquela cidade onde todos se comem – menos eu e a papa-hóstias.

Rodrigo e a mulher casada
O sexo era tão bom que os vizinhos acendiam um cigarro. Ela estava em forma, quase não se percebia a cicatriz da cesariana e a hora de almoço sempre foi das minhas preferidas para foder (podes escrever foder, no jornal? Se puderes, melhor, porque aquilo não era fazer amor). Ela chegava a minha casa, fumávamos uma ganza, ela trazia sempre um Cd novo, punha a música a tocar e comíamos japonês, bebíamos cerveja gelada, ela dizia: “Vou almoçar-te”. Minutos depois estávamos na cama, a transpiração arrefecida por causa das janelas abertas para a luz da cidade. No final, cada um caía para seu lado da cama, pensando coisas muito diferentes, o coração a bater numa veia do pescoço, o fôlego recuperado aos poucos, uma espécie de trip com levitação.
Regressados à realidade, dizíamos umas piadas, ela tomava um duche e eu fumava um cigarro a olhar os jacarandás da rua. Ela nunca se demorava. Eu gostava disso. Era muito bom, muito cinemático, e até durou um par de meses. Mas havia coisas que me faziam perder o equilíbrio sobre a corda. Mais que uma vez ela atendeu o telefone para falar com o marido. Nós dois nus, o lençol tão desarrumado que se via parte do colchão, uma caixa de preservativos no soalho e ela, “Baixa a música”, antes de atender, enquanto se cobria com uma almofada.
Então eu tentava ficar longe, mas por vezes ouvia a voz do marido, coisas sobre familiares e cartões de crédito e miúdos para apanhar na escola. Na última vez que ela entrou lá em casa o telefone tocou quando, entre as suas coxas, eu parecia um crocodilo camuflado, instantes antes do ataque. Sentei-me na cama e ela atendeu. Ouvi um dos filhos perguntar: “Mãe, onde estão os patins em linha?”
Eu sei que tu és um libertário armado ao libertino e mais não sei quê, mas aquilo atirou-me ao chão. Não te rias, ela podia ser a tua mãe. Pois. E até aposto que não metes isto no jornal.
Só mais uma coisa: tem cuidado quando te puseres a reduzir as mulheres a conceitos, como se fosses um publicitário. Funciona muito bem numa página de jornal ou no teu facebook. Mas na vida, na cama, no mano-a-mano que são estas coisas, nada nunca é tão simples como queres que pareça nas tuas histórias.


PS - Após a publicação deste texto, recebi um email de um leitor tão engraçado como pertinente. Transcrevo parte desse email, pela importante informação contém: "Talvez
por ser uma pessoa com "tendência" para passar por situações semelhantes àquela que o Diogo descreve, há muito que aprendi a classificar essas mulheres.

"ESTICA-PIÇAS"

Não sou o criador da expressão. Ouvi-a pela primeira vez
numa discussão de amigas quando uma delas acusava a outra de ser uma
"estica-piças". Acho que o seu amigo Diogo ficará feliz por conhecer este vocábulo."

sábado, 21 de maio de 2011

Palavra (En)cantada


Não percam este documentário sobre a música brasileira, passa manhã, domingo, na RTP2, às 15h00, com a participação de Chico Buarque, Maria Bethânia, Adriana Calcanhotto, Lenine e muitos mais. E aqui fica uma entrevista no jornal i, que fiz ao autor e guionista do filme.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Bolas de Berlim na praia e melão na varanda, publicado no i


Proust e sua madalena
Pergunte-se a um chefe de cozinha que menu escolheria para última refeição antes de ir desta para pior e quase todos incluirão um ou mais sabores da infância.
Pergunte-se a um daqueles cientistas que investigam cérebros sobre os artifícios da memória, e quase todos dirão que é mais fácil guardar uma recordação marcada pelos sentidos do que é decorar um número de telefone, essa sequência desinteressante de algarismos sem memórias de uma cara lambuzada de fruta com o mar ao fundo e os pés descalços.
Pergunte-se ao fantasma de Proust sobre os contributos de uma madalena mergulhada no chá para a ciência das viagens no tempo, e ele responderá com sete volumes.
Há no nosso sangue rabanadas de Natal com cheiro a lareira e irmãos em pijama, há o espanto do primeiro caracol na língua, há rissóis de camarão que a vizinha do 2º Esquerdo vendia para fora.
Nós somos aquilo que já comemos.


O anjo de chapeuzinho branco
Ele tinha cara de irmão Metralha – quantos fósforos acendeu na lixa da barba? – e óculos espessos como as lentes de um telescópio. Usava sandálias de cabedal sobre meias turcas. Tinha o cheiro do suor e do vinho e, no entanto, era um anjo branco que marchava sobre a areia, distribuindo milagres a troco de moedas, cantando com voz de taberna o mais belo dos pregões: “Eeeeh boli Berlim, olha a bolinha quentinha.”
Esqueçam os perdigueiros de caça e os poderes Jedi e o sentido de aranha de Peter Parker. Ouvia o chamamento do anjo branco ainda ele estava a sair da padaria. Podia estar a meio de uma competição de carreirinhas, mas sabia perfeitamente quando é que o anjo trocava o seu chapeuzinho de marinheiro pelo capacete e montava a moto com atrelado onde transportava, numa cesta, o tesouro de açúcar. Ele metia o pé na areia da praia e eu tornava-me tão rápido como uma falsa partida, disparava praia fora, saltando sobre bifas com pele de churrasco, desinteressado do topless estrangeiro, galopando para o chapéu-de-sol onde a minha mãe começava a fazer contas – “Para ti, para o teu irmão, para o teu primo, e compra mais duas para os filhos da São.”
Mãe, como é que podias atrasar dessa maneira adulta e preocupada toda a urgência que eu tinha no corpo? Claro que me davas as moedas – lenta na execução, mas davas – e já tinha um atraso para os outros miúdos em corrida. Mas eu era rápido como o metabolismo de um hamster. Lá ia, miúdo bala, no encalço do loirinho que tinha uma prancha de skimming e acesso às revistas pornográficas do pai; pela minha esquerda apresentava-se a ameaça de uma gazela algarvia ainda sem maminhas que um dia me chamou “lisboeta escarreta” durante um jogo de apanhada. Mesmo a meu lado, tentando ganhar posição, vinha o gordo que ia ao banho de T-shirt e que se limitou a ficar para trás, comendo a areia largada pela rapidez das minhas pernas.
Nem sempre chegava em primeiro. Por vezes, o anjo branco já tinha aberto a cesta, começando a distribuir os milagres.
Regressava ao chapéu-de-sol depois de entregar as moedas, caminhando como um cowboy depois de salvar mais uma cidade dos bandidos. Comia a primeira bola de Berlim antes de chegar ao chapéu-de-sol. Guardava a segunda para mais tarde, quando toda a praia celebrasse a minha glória de campeão de carreirinhas.

Sobre a hierarquia familiar das refeições
Não havia naquela casa de Verão regras austeras para o comportamento à mesa. Não se lambiam facas nem se arrotava, é verdade, mas havia quem comesse em tronco nu, quem pusesse música no rádio em cima do frigorífico, quem me ameaçasse com uma sequela do Alien: “Se engulires um caroço de cereja [degluti vários], cresce-te uma árvore na barriga.” Naquela casa não havia protocolos diplomáticos na hora do almoço. Mas ninguém se sentava à mesa antes que o meu avô chegasse.
Era fácil saber quando ele se aproximava – outra vez os meus super poderes. Da longa varanda do segundo andar – andei lá de patins – ou do terraço mais acima – andei lá num carrinho Fórmula 1 a pedais – podíamos vê-lo chegar, o boné na cabeça transpirada, os seus pés pesados e a barriga de melancia subindo as escadas de mármore, uma melodia que nos punha em sobressalto.
Mesmo sem super poderes, os adultos também podiam antecipar a chegada do meu avô. Onde quer que ele fosse, ia a assobiar: fados, marchas e mais fados. O seu assobio era motivo de plágio por parte dos canários, habitantes amarelos da gaiola que todas as noites a minha avó cobria com um pano como quem aconchega os netos na cama.
O meu avô, além de alto e grande e com mãos de Hulk, tinha o atributo de saber tudo sobre a qualidade da fruta. Ele apertava um melão, cheirava um pêssego, via uns morangos de esguelha e tinha uma sentença em poucos segundos. Nenhum vendedor de melão casca de carvalho ou nêsperas, à beira da estrada, conseguiu passar-lhe a perna.
Os miúdos comiam na varanda, numa mesa desmontável. Os grandes almoçavam na cozinha. Mas a circulação era livre entre as mesas. E havia sempre fruta. Mas não era fruta impingida, não nos sentíamos prisioneiros molestados como acontecia quando nos serviam fígado. Nós comíamos fruta com o (quase) entusiasmo de quem trinca o chocolate de um Perna de Pau.
O meu avô sabia que uma melancia de seis quilos – “A maior e melhor que lá havia” – tinha em nós o efeito de um um cão com duas cabeças. Queríamos a maior melancia, o pêssego que parecia uma toranja, as bananas que serviriam de sabre de Sandokan em duelos à mesa.
Mais que o número de circo da melancia gigante, o que se entranhou em nós foi a colher a entrar na meloa cortada ao meio – “Metade para ti, metade para o teu irmão” –, o sabor vermelho das cerejas, a frescura aquática da melancia, o queixo a pingar pêssego, os gomos das tangerinas fazendo a vez de barcos que naufragavam nas nossas bocas, a perfeição das talhadas de melão quando o meu avô pegava na faca e produzia cubos de felicidade tão fria que magoava os dentes.
Proust, espero que não me leves a mal estar aqui a falar dos poderes mágicos da comida sem ter lido um volume sequer da tua obra-mestra. Mas acabei de comer uma bola de Berlim numa tarde de primavera que me pareceu de verão. O resto do dia, passei-o a assobiar.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Palavra (En)cantada

Não percam este documentário e ficarão a perceber porque as letras namoram tão bem com as músicas no Brasil. Passa na RTP 2, no domingo, às 15h00.

sábado, 14 de maio de 2011

Relicário de um homem solteiro, crónica semanal no i


Retrato possível do cérebro do escritor enquanto (mais ou menos) jovem

Parece masturbação mas não é
Não estou aqui para enganar ninguém. Este texto tem o centro no meu umbigo, é sobre mim, fala da pessoa que aqui escreve. Será, como já se percebeu, redundante. Mas não saiam já da sala, ainda que isto possa parecer um teatro de vaidades estranhas. Fiquem mais um bocadinho e aproveitem a viagem no comboio fantasma do parque de diversões para freaks e desadaptados que, por vezes, pode ser o cérebro deste narrador que vos fala.
Talvez a origem desta crónica sirva para diminuir a gravidade do meu exibicionismo: quero escrever sobre o prazer orgásmico de uma ideia. Não se falará aqui de onanismo, mas do deleite do processo criativo de quem escreve. Imaginem-se a marcar um golo, a beijar a boca de alguém por quem estão apaixonados desde o jardim infantil, a ganhar um campeonato de tango, a saltar da prancha mais alta, a entrar na igreja em dia de casamento – basta de imagens estilizadas antes que isto se torne num anúncio televisivo de cerveja. O que quero dizer é isto: dá um prazer do camandro agarrar uma ideia, ver como cresce em poucos minutos ou ao longo de semanas, e depois a explosão, a chave para a última porta fechada, o tal momento Eureka, um shot de qualquer coisa que podia ser bourbon e cocaína e intravenoso de cacau. É tão bom. Ilumina o dia, torna-me mais simpático, mais como gostaria de ser.


Uma história
Passei o dia com senhas na mão, conferindo o número no papel (A124) e no quadro electrónico (A198) – em repartições, nos correios, na Loja do Cidadão, no talho do supermercado. Foi um desses dias de papéis fotocopiados, assinaturas e salas de espera. Não havia nada activo no território criativo da minha cabeça. Eu era o robot programado para desempenhar as mais aborrecidas tarefas no mundo da realidade. No final do dia, chegado a casa, abri as janelas para forçar a chegada do Verão. Não fazia calor mas a luz suavizava os telhados na outra colina, uma palmeira ao longe pareceu-me mais tropical que um coqueiro de catálogo turístico.
Sentei-me ao computador e descobri que o meu pai se estreara no Facebook e queria ser meu amigo. Não quis sequer reflectir sobre a estranheza de imaginar o meu pai a clicar em Likes, a comentar vídeos, a mandar-me despejar o lixo com um post no meu mural. Mas assim que vi um álbum que dizia “Tropa” e outro “Amigos”, com fotografias a preto e branco, escancarou-se em meu redor a armadura de robot dos recados, e acenderam-se todos os pirilampos que habitam o caótico mundo da imaginação intra-craniana.
Eu não via aquelas fotos há anos. Rapazes mais novos que eu, uns putos charilas com cigarros de malandro, sentados em jipes, a fazer poses de galã de cinema. O meu pai num campo pelado com o resto da equipa da Torre muito antes da tropa. O Russo que tinha caparro de Conan o Bárbaro sem recurso a esteróides. Os jeans apertados, os polegares nos bolsos, as popas meladas e inspiradas nos actores que apareciam no ecrã gigante do cinema São José.
Eu já não estava nesta casa, não estava sequer nas histórias que o meu pai me contou e cujos protagonistas apareciam em fotografias digitalizadas e colocadas numa rede social. Desta vez foi rápido (mas intenso). De repente tinha a génese de uma história – uma crónica? Um conto? Um livro? Não me podia distrair, quando estas ideias aparecem como um espasmo, um ataque de coração, uma epifania, tenho de concentrar-me, andar de um lado para o outro, meter os pirilampos em combustão máxima.
E a história foi-se construindo, tomei notas e recorri a outro truque – como se fosse um treino específico para bolas paradas. Quando tenho uma ideia que me entusiasma muito, telefono a pessoas que têm paciência para me ouvir, e conto-lhes a história. O acto de contar a história – como se conta a um amigo algo que nos aconteceu no emprego – e o acto de verbalizar uma coisa abstracta que até então apenas existiu nas sinapses ou em pequenos apontamentos, permitem-me ganhar músculo, preencher lacunas, acrescentar pormenores. É como ir ao ginásio. E aos poucos, como se fosse possível acelerar o processo de crescimento, uma ideia recém-nascida já tem o buço de um adolescente.
Não interessa aqui contar qual a história que construi nesse dia. O que importa é o espanto que sinto sempre que isto acontece, como se pudesse repetir o assombro de uma criança quando anda de moto ou toca na língua de um cão ou pisa a areia da praia pela primeira vez. É sempre bom. É sempre empolgante.
Não posso ser mais exacto quanto ao aparecimento de uma ideia. Há coisas que nem eu percebo. Mas posso dizer que, por vezes, só é preciso uma fotografia de um pai, uma frase graffitada na parede, uma mulher na esplanada, uma janela sobre a cidade para que, de repente, tudo aquilo que se acumulou nas traseiras do coração e da cabeça, se precipite para a sala de controlo da minha vida a fim de activar e telecomandar os pirilampos em chamas.


Como nossos pais
Quando sou arrebatado por uma ideia, depois de repeti-la ao telefone, de tirar notas, há um momento em que a história não aceita mais atenção ou trabalho. Tenho de voltar mais tarde. Por isso, decido celebrar. São coisas pequenas. Fumar um cigarro, sentar-me na praça a apreciar as pessoas, beber cerveja com amigos. Desta vez foi música. Quando falava ao telefone da tal história que aparecera enquanto via fotografias antigas, a minha interlocutora disse, já no final da conversa: “Somos como os nossos pais”, e as sinapses trouxeram de imediato a canção de Elis Regina: “Como nossos pais.” Esse seria o título da história. Desliguei o telefone e fiz algo que não fazia há muito tempo. Fechei as portadas do quarto, pus a música a tocar, deitei-me na cama, apaguei a luz e ouvi a música, uma e outra vez. Ouvi mesmo, com atenção a todas as palavras, ao baixo, à bateria espalhando-se no diafragma, ao poder da voz fumada e vivida e filha da mãe de Elis Regina.
Perdoem-me o exibicionismo. A minha motivação é, palavra de honra, cândida e infantil. Neste tempo de anúncios apocalípticos, em que nos sentimos contaminados pela mentira, pelo desperdício de oportunidades, pelo desgoverno das almas, eu só queria partilhar uma coisa pequena mas que me faz muito feliz. Talvez isso me sirva de atenuante.

Pentelho, pentelhinho


O país, Catroga e a importância de um pentelho, crónica no i

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Relicário de um homem solteiro, crónica semanal no i


Mulheres sem nome em Nova Iorque

Jersey City

Tinha acabado de chegar, moreno como um mouro, a barba por fazer, escura e cerrada, e as torres tinham caído há três semanas. Estava a viver em Jersey City, a meia hora de Nova Iorque. Entre a minha casa e a estação de comboios, passava todos os dias pelo prédio onde viveram os terroristas do primeiro ataque ao World Trade Center, em 1993. Jersey City tinha lixo na rua, os corredores do supermercado guatemalteco pareciam os corredores do hotel do “Shining” em versão centro americana, e não havia nada para fazer a partir das oito da noite.
Sentia-me estrangeiro. Tinha sotaque, olhava para mapas e procurava o nome das ruas em placas, não percebia a necessidade das sanduíches que pareciam majestosas catedrais da abundância e dos ataques de coração. Não processava o nome de produtos como “I can’t belive it’s not butter”. Não gostava dos polícias nem dos soldados de metralhadora que protegiam o sul de Manhattan nem da mulher que vendia bilhetes de metro e que, sem conseguir perceber a minha pergunta, me tratou como se eu tivesse sarna. Ela era negra e apeteceu-me falar-lhe da luta pelos direitos civis. Eu tinha direito de estar ali. Mas não consegui eloquência nem coragem para sermões. Meti a cauda de imigrante entre as pernas e senti a estranheza de não fazer parte, de não pertencer.
Vivia no primeiro andar de uma casa de madeira. No piso térreo morava uma mulher alta, cabelo grisalho, magra, com uma sala cheia de caixas de cartão. Nunca entrei, mas por vezes falávamos na ombreira da porta. E um dia, ela, que era negra e crescera no sul dos Estados Unidos, contou-me como uma mulher branca lhe cuspiu na cara, castigando-a por ser uma criança negra que se sentara num banco exclusivo para brancos.
Não me lembro do nome da minha vizinha. Tenho pena. Por causa dela senti-me menos estrangeiro. O meu desconforto, nas primeiras semanas naquele país, era muito mais insegurança de menino que estigma xenófobo. Tinha de ganhar juízo, olhar para aquela mulher a quem tinham cuspido na cara, tirar-lhe o chapéu. Pouco tempo depois mudei-me, por fim, para Manhattan.

Sway with me
Tinham passado uns quantos meses e comecei a trabalhar num restaurante. Numa noite de segunda-feira, depois de acabar o turno, cansado, a cheirar a vapores da cozinha, pronto para adormecer no sofá enquanto via má televisão, saí para a rua e lá estava G. – um cliente do restaurante onde eu trabalhava, milionário excêntrico (se fosse pobre seria louco), que um dia me apanhou a ler um livro de Sade e reapareceu mais tarde com as fotografias e o menu do jantar, que tinha organizado em sua casa, em homenagem às obras do fornicador e filósofo francês. Eu estava na companhia de outro empregado de mesa, Frederico, um brasileiro de São Paulo, que cedeu ao encanto de G. quando este disse: “Venham comigo ao Sway, a segunda-feira é a melhor noite. Pago-vos uns copos”.
Sway: discoteca pequena com mesas cheias de pessoas que me pareceram bonitas – estava sóbrio, tinha critério. Sway: uma espécie de speak easy para gente com dinheiro que gosta de bas-fond – músicos, chefes de cozinha, senhores que usam gravata de dia e t-shirts esgaçadas de noite, mulheres que iniciam conversas, que pagam bebidas e que são entusiastas do sexo oral.
G. arranjou uma mesa e apresentou-nos ao grupo. Uma das miúdas, estrangeira como eu, ficou a meu lado e, segundos depois de nos apresentarmos com um aperto de mão, estávamos a beber shots. Eu estava indeciso – ir para casa descansar ou continuar? Precisava de tempo, de ver o que a minha cara me dizia no espelho. Informei-a: “I’m going to the little boys’ room”. Ela respondeu: “Do you want company?”
Nessa noite perdi uma luva, vi o rio Hudson num jardim num sétimo andar, acordei numa casa que não era a minha. Regressei ao meu micro apartamento de manhã, quando as pessoas iam para o emprego. O pequeno-almoço soube-me tão bem.

Stand clear of the closing doors please
Ela entrou na estação 86th Street e sentou-se à minha frente. Não havia muita gente na carruagem e ela não esperou, começando a falar como se nos conhecêssemos do liceu. Estava sem casa, tinha de ir buscar as suas coisas ao apartamento de um amigo, ia a uma festa vestida de cantora pop dos anos 80: “Madonna rules”, e apontou para o seu kit da noite – uns trapos estranhos e sujos, uma mistura de folhos com luvas sem dedos.
Ela era polaca e tinha sotaque como eu. Também me pareceu louca (se fosse rica era excêntrica). Depois pareceu-me apenas perdida, com as unhas sujas e o cabelo oleoso: “Tenho fome, não me podes ajudar com alguma coisa?” Saímos do metro para a superfície. Fomos a um restaurante de hamburguers e ela pediu um menu económico. Não falámos muito e despedimo-nos no passeio. Ela insinuou-se, chegou perto, depois sentiu vergonha quando a tratei como a familiar acabada de chegar à grande cidade. Ela percebeu que eu tinha pena. Foi-se embora zangada.
Voltei a vê-la uma semana mais tarde, na mesma estação. Passou por mim com a mesma roupa e a mesma mochila. Não me reconheceu. Nunca cheguei a perguntar-lhe como se chamava.

Expect the unexpected
Em Nova Iorque a pessoas cruzam-se, tocam-se, indagam quem são os outros habitantes da Babilónia. Falei com gente sem nome enquanto esperava na passadeira pelo sinal verde ou no conforto do café com leite e jornal de domingo nalgum coffee shop. Primeiro a cidade oprime, mostra que somos apenas mais um entre milhares e milhares – uma centopeia de ambições que todos os dias se agita, criando uma efervescência de ideias e negócios e grandiosas histórias de amor, de sucesso e de desgraça. Mas depois a cidade ensina-nos a ser mais disponíveis, a perceber a quantidade de histórias que acontecem a todo o momento, e andamos mais curiosos, queremos conhecer quem viaja a nosso lado no metro, saímos de casa a pensar que qualquer improvável coisa pode acontecer. Nova Iorque enlaça-nos pela garganta, obriga-nos a viver.
Cheguei a Jersey City a sentir-me estrangeiro e saí de Manhattan, anos mais tarde, seguro de que pertenceria para sempre àquela cidade. Nova Iorque é agora como uma mulher sem nome. Há anos que não a vejo, que não falo com ela. No entanto, sei que se nos sentássemos na mesma carruagem de metro, se nos cruzássemos nas escadas do prédio, se dormíssemos juntos na primeira noite, retomaríamos a conversa onde a deixámos, disponíveis para a vida, prontos a ser parte do enredo, prontos para tudo.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Feira do Livro


Estarei na feira do livro de Lisboa, amanhã, pelas 16h30, e no domingo a partir das 18h00. Na pior da hipóteses bebem-se umas survias. Apareçam.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Relicário de um homem solteiro, crónica semanal no i


Dois contra dois com balizas pequenas

“O futebol é a recuperação semanal da infância”
Javier Marías

Há qualquer coisa que se desmancha quando percebemos que, caso se tivesse concretizado o sonho de sermos jogadores de futebol, estaríamos agora no final da carreira ou nos primeiros anos da reforma. Olhamos para os atletas em campo e, fossemos nós jogadores da nossa equipa favorita, estaríamos no banco, seríamos o decano do plantel que entra a cinco minutos do fim para ser aplaudido. Mesmo que joguemos com amigos em campos de relva sintética uma vez por semana, há qualquer coisa que se desvanece no ego futebolístico quando percebemos que a nossa carreira imaginária – com golos na final do Mundial e, pelo menos, uma Bota de Ouro – chegou ao fim.
Sabemos que jamais poderemos reviver as tardes no alcatrão da rua, com pedras ou mochilas a servir de balizas, bolas defeituosas que desapareciam no quintal de algum vizinho maldisposto, o corpo incansável durante tardes inteiras – mais uma finta, mais um sprint, mais um corte de carrinho e os joelhos raspados. Perdemos o fulgor dos jogos na praia, com os pés doridos e as pernas pesadas na areia molhada da maré baixa, quando um golo de calcanhar, num “muda aos três acaba aos seis”, fechava o encontro e autorizava os corpos cansados e quentes a esfaquear as ondas. Será difícil experimentar outra vez a vergonha de falhar um penalti, o desespero de pontapear lama nos pelados em manhãs de chuva ou a ansiedade no dia antes do jogo, a preocupação com o equipamento, as caneleiras e as meias e a camisola, o nosso número nas costas.
Não voltaremos ao recreio da manhã onde se jogava aos centros, ao torneio de futebol de salão onde estragámos um joelho, ao descontrolo dos gritos e da corrida sem destino certo quando se marcava um golo num clássico entre escolas rivais.
Mas temos outras coisas. Coisas que não se despegam de nós por mais anos que passem e os tornozelos não aguentem mais que três toques na bola e o coração entupido impeça que vejamos os jogos importantes do nosso clube. Sabem do que falo. Conversas com amigos sobre o penalti falhado do Veloso, o empenho canino de Jaime Magalhães, as fintas fotocópia do Paneira, o golo bala de Figo contra a Inglaterra no Euro 2000 – qualquer coisa que resgate da memória factos dispensáveis mas tão importantes. Não sabemos como armazenamos dados e pormenores de histórias que aconteceram há tanto tempo – Platini a beijar a bola antes do penalti em 86, Chalana a partir a loiça em 84, Zidane a mostrar o seu futebol matrix slow motion em 98.
Resgatamos, com os amigos, informações e recordações de jogos do Euro de 88 como quem troca cromos – aquele golo de Van Basten, sem ângulo, tão espantoso como um quadro de museu ou a estreia no território dos soutiens desapertados. Esta é a nossa forma de comunicarmos. O nosso passado em comum – como aquela noite de chuva torrencial em que andámos de moto e comemos numa pizzaria do Estoril e quase houve porrada entre amigos: Sporting 3 – Benfica 6.
Mas aquilo que temos é mais do que a compilação de factos e histórias, é um impulso que precisa de ser satisfeito. Por exemplo, se descemos a rua e reparamos num café onde passa futebol, olhamos para a televisão tentando encontrar o resultado no canto do ecrã. Gostamos de entrar num táxi a meio de um relato e ficar atentos enquanto não chegamos ao restaurante. E quando chegamos a casa, depois de um dia cruel trabalho, prontos para comer o que seja e aterrar onde seja, se por acaso percebemos que vão passar os resumos da Liga dos Campeões, perdemos o sono por, pelo menos, meia hora.
Talvez seja a pulsão de regressarmos ao tal lugar onde fomos felizes – a bola no pé direito, uma tabelinha, outra vez em mim, remate cruzado ao ângulo, a pulsação a galopar em todos os músculos. Esse lugar onde nada mais importava que a bola, sem contas para pagar, sem medo das feridas por fora e por dentro do corpo, e com a certeza que um dia jogaríamos na Luz, em Alvalade, na Antas, no Maracanã.
É um impulso ainda mais incontrolável se temos uma bola ao alcance do olhar. Se alguém na praia chuta uma bola para junto de nós, corremos para devolvê-la, pomos empenho no passe, regressamos felizes. Se os putos jogam na rua, desejamos que alguém com menos pontaria chute na nossa direcção. Pisamos o esférico com o pé e atiramos para o lado direito do guarda-redes de rua. Se os sobrinhos têm uma bola mínima, que faz trajectórias escanifobéticas, organizamos logo um concurso de penaltis – e não vamos à baliza.
Porque o tempo passa, porque temos outros interesses na vida, mas também por causa do lixo verbal e das manhas dos dirigentes, por causa da boçalidade animal das claques, alguns de nós fomos perdendo o interesse obsessivo pelo futebol. Mas esperamos ainda encontrar todas as semanas o assombro de uma finta, de um petardo de fora da área ou de uma defesa com a ponta dos dedos de um guarda-redes com lombares de gato.
Já chorámos depois de uma derrota da selecção, já perdemos a cabeça, a voz e a compostura, já fomos tão incendiários e idiotas como os presidentes dos clubes. Mas isso é apenas folclore. Aquilo que mais interessa está nalgum fim de tarde, quando o carro passava na rua e por fim podíamos regressar ao jogo e marcar o livre. Tínhamos a boca seca e uma ferida em chamas na coxa, ainda com marcas do asfalto. Havia suor nas patilhas, a nossa equipa jogava sem t-shirt, os ténis sobreaqueciam, e queríamos bater a bola por cima da barreira. Faltava pouco para que alguém nos viesse chamar para casa, a comida está na mesa, não te volto a avisar. Faltava pouco para ficar escuro e havia um livre para marcar.
Aquilo que mais interessa hoje, quando vemos Messi ou Ronaldo ou Xabi, é que eles sejam sempre essa tarde de futebol na rua quando batemos o livre e – estas coisas sabem-se – já estávamos de braço no ar quando a bola passou entre uma mochila do He-Man e o guarda-redes sem luvas. Depois disso, não precisávamos de mais nada para saber que íamos ser felizes na final do campeonato do mundo.