segunda-feira, 9 de maio de 2011

Relicário de um homem solteiro, crónica semanal no i


Mulheres sem nome em Nova Iorque

Jersey City

Tinha acabado de chegar, moreno como um mouro, a barba por fazer, escura e cerrada, e as torres tinham caído há três semanas. Estava a viver em Jersey City, a meia hora de Nova Iorque. Entre a minha casa e a estação de comboios, passava todos os dias pelo prédio onde viveram os terroristas do primeiro ataque ao World Trade Center, em 1993. Jersey City tinha lixo na rua, os corredores do supermercado guatemalteco pareciam os corredores do hotel do “Shining” em versão centro americana, e não havia nada para fazer a partir das oito da noite.
Sentia-me estrangeiro. Tinha sotaque, olhava para mapas e procurava o nome das ruas em placas, não percebia a necessidade das sanduíches que pareciam majestosas catedrais da abundância e dos ataques de coração. Não processava o nome de produtos como “I can’t belive it’s not butter”. Não gostava dos polícias nem dos soldados de metralhadora que protegiam o sul de Manhattan nem da mulher que vendia bilhetes de metro e que, sem conseguir perceber a minha pergunta, me tratou como se eu tivesse sarna. Ela era negra e apeteceu-me falar-lhe da luta pelos direitos civis. Eu tinha direito de estar ali. Mas não consegui eloquência nem coragem para sermões. Meti a cauda de imigrante entre as pernas e senti a estranheza de não fazer parte, de não pertencer.
Vivia no primeiro andar de uma casa de madeira. No piso térreo morava uma mulher alta, cabelo grisalho, magra, com uma sala cheia de caixas de cartão. Nunca entrei, mas por vezes falávamos na ombreira da porta. E um dia, ela, que era negra e crescera no sul dos Estados Unidos, contou-me como uma mulher branca lhe cuspiu na cara, castigando-a por ser uma criança negra que se sentara num banco exclusivo para brancos.
Não me lembro do nome da minha vizinha. Tenho pena. Por causa dela senti-me menos estrangeiro. O meu desconforto, nas primeiras semanas naquele país, era muito mais insegurança de menino que estigma xenófobo. Tinha de ganhar juízo, olhar para aquela mulher a quem tinham cuspido na cara, tirar-lhe o chapéu. Pouco tempo depois mudei-me, por fim, para Manhattan.

Sway with me
Tinham passado uns quantos meses e comecei a trabalhar num restaurante. Numa noite de segunda-feira, depois de acabar o turno, cansado, a cheirar a vapores da cozinha, pronto para adormecer no sofá enquanto via má televisão, saí para a rua e lá estava G. – um cliente do restaurante onde eu trabalhava, milionário excêntrico (se fosse pobre seria louco), que um dia me apanhou a ler um livro de Sade e reapareceu mais tarde com as fotografias e o menu do jantar, que tinha organizado em sua casa, em homenagem às obras do fornicador e filósofo francês. Eu estava na companhia de outro empregado de mesa, Frederico, um brasileiro de São Paulo, que cedeu ao encanto de G. quando este disse: “Venham comigo ao Sway, a segunda-feira é a melhor noite. Pago-vos uns copos”.
Sway: discoteca pequena com mesas cheias de pessoas que me pareceram bonitas – estava sóbrio, tinha critério. Sway: uma espécie de speak easy para gente com dinheiro que gosta de bas-fond – músicos, chefes de cozinha, senhores que usam gravata de dia e t-shirts esgaçadas de noite, mulheres que iniciam conversas, que pagam bebidas e que são entusiastas do sexo oral.
G. arranjou uma mesa e apresentou-nos ao grupo. Uma das miúdas, estrangeira como eu, ficou a meu lado e, segundos depois de nos apresentarmos com um aperto de mão, estávamos a beber shots. Eu estava indeciso – ir para casa descansar ou continuar? Precisava de tempo, de ver o que a minha cara me dizia no espelho. Informei-a: “I’m going to the little boys’ room”. Ela respondeu: “Do you want company?”
Nessa noite perdi uma luva, vi o rio Hudson num jardim num sétimo andar, acordei numa casa que não era a minha. Regressei ao meu micro apartamento de manhã, quando as pessoas iam para o emprego. O pequeno-almoço soube-me tão bem.

Stand clear of the closing doors please
Ela entrou na estação 86th Street e sentou-se à minha frente. Não havia muita gente na carruagem e ela não esperou, começando a falar como se nos conhecêssemos do liceu. Estava sem casa, tinha de ir buscar as suas coisas ao apartamento de um amigo, ia a uma festa vestida de cantora pop dos anos 80: “Madonna rules”, e apontou para o seu kit da noite – uns trapos estranhos e sujos, uma mistura de folhos com luvas sem dedos.
Ela era polaca e tinha sotaque como eu. Também me pareceu louca (se fosse rica era excêntrica). Depois pareceu-me apenas perdida, com as unhas sujas e o cabelo oleoso: “Tenho fome, não me podes ajudar com alguma coisa?” Saímos do metro para a superfície. Fomos a um restaurante de hamburguers e ela pediu um menu económico. Não falámos muito e despedimo-nos no passeio. Ela insinuou-se, chegou perto, depois sentiu vergonha quando a tratei como a familiar acabada de chegar à grande cidade. Ela percebeu que eu tinha pena. Foi-se embora zangada.
Voltei a vê-la uma semana mais tarde, na mesma estação. Passou por mim com a mesma roupa e a mesma mochila. Não me reconheceu. Nunca cheguei a perguntar-lhe como se chamava.

Expect the unexpected
Em Nova Iorque a pessoas cruzam-se, tocam-se, indagam quem são os outros habitantes da Babilónia. Falei com gente sem nome enquanto esperava na passadeira pelo sinal verde ou no conforto do café com leite e jornal de domingo nalgum coffee shop. Primeiro a cidade oprime, mostra que somos apenas mais um entre milhares e milhares – uma centopeia de ambições que todos os dias se agita, criando uma efervescência de ideias e negócios e grandiosas histórias de amor, de sucesso e de desgraça. Mas depois a cidade ensina-nos a ser mais disponíveis, a perceber a quantidade de histórias que acontecem a todo o momento, e andamos mais curiosos, queremos conhecer quem viaja a nosso lado no metro, saímos de casa a pensar que qualquer improvável coisa pode acontecer. Nova Iorque enlaça-nos pela garganta, obriga-nos a viver.
Cheguei a Jersey City a sentir-me estrangeiro e saí de Manhattan, anos mais tarde, seguro de que pertenceria para sempre àquela cidade. Nova Iorque é agora como uma mulher sem nome. Há anos que não a vejo, que não falo com ela. No entanto, sei que se nos sentássemos na mesma carruagem de metro, se nos cruzássemos nas escadas do prédio, se dormíssemos juntos na primeira noite, retomaríamos a conversa onde a deixámos, disponíveis para a vida, prontos a ser parte do enredo, prontos para tudo.

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